A junta militar que ocupa o poder, em Myanmar (antiga
Birmânia), desde o golpe de Estado de 1 de fevereiro de 2021, pratica atos de terror, designadamente massacres,
violações, tortura e incêndio de aldeias, segundo um grupo de ativistas que
pede à União Europeia (UE) a urgente imposição de mais sanções aos militares e à
“rede de negócios” que os sustenta. Ao mesmo tempo, reduz penas, para conseguir
o alívio das sanções. Entretanto, prossegue o “genocídio” de “uma das minorias
menos desejadas do Mundo” e, agora, sem atenção mediática.
De acordo com um relatório do Peace Research Institute Oslo, da
Noruega, “pelo menos 6337 civis foram mortos e 2614 ficaram feridos por razões
políticas em Myanmar” nos primeiros 20 meses após o golpe de Estado. O
principal perpetrador desta violência foi a junta militar, responsável por 3003
baixas civis neste período, mas também opositores armados do golpe contribuíram
para o derramamento de sangue, tirando a vida a 2152 alegados colaboradores,
escrevem os autores do relatório, publicado em junho pelo instituto norueguês
de investigação sobre paz e conflito. E mais de mil outros civis foram
assassinados por “perpetradores não especificados”, entre 1 de fevereiro de
2021 e 30 de setembro de 2022.
Surpreendentemente, a 31 de julho, a junta anunciou o
prolongamento do estado de emergência por seis meses; a 1 de agosto, anunciou
um perdão parcial a Aung San Suu Kyi, antiga líder de facto do
país do Sudeste Asiático e Prémio Nobel da Paz; e, no dia seguinte, anunciou
uma remodelação, com a substituição de cinco ministros.
O prolongamento do estado de emergência, que já vai em
dois anos e meio (em vigor desde o golpe de Estado), significa o adiamento sine die das eleições, previstas para o
mês de agosto. No termos da Constituição, os atos eleitorais só podem
realizar-se num prazo de seis meses após o levantamento do estado de
emergência. E, a 31 de julho, quando expiraria o estado de emergência, Myint Swe, presidente
interino, declarou ao Conselho de Defesa a sua prorrogação por mais
meio ano, “a partir de 1 de agosto de 2023”, ou seja, a partir do dia seguinte,
o que levou Min Aung Hlaing, líder da junta, a justificar a decisão com os
combates e ataques no pais, nas regiões de Sagaing, no Noroeste, de Magway e Bago, no Centro, e de Tanintharyi,
no Sul. Foi, mais uma vez, adiada a democracia!
Já Suu Kyi, de 77 anos, teve a sua pena de 33 anos de
prisão reduzida em seis. A conselheira de Estado (equivalente a primeira-ministra)
aquando do golpe viu, também, serem-lhe anuladas cinco das 19 condenações. A
junta perdoou, ainda, dois dos oito crimes a que Win Myint, o presidente
deposto, fora condenado, equivalente à redução de quatro na sua pena de 12 anos
de prisão. Assim, a antiga chefe do governo e o ex-presidente terão de cumprir
penas de 27 e oito anos de prisão, respetivamente. O perdão parcial ocorreu no
âmbito de uma amnistia para mais de sete mil prisioneiros, por ocasião de um
dos principais festivais budistas.
E a remodelação governamental está a ser vista como medida
compensatória do adiamento, em cima da hora e sine die, das eleições.
Os ministros responsáveis pelas pastas da Religião, da Eletricidade, da Energia,
do Trabalho e da Justiça deixaram os seus cargos. Em comunicado, a junta
revelou que os dois primeiros o fizeram por motivos de saúde, mas omitiu às
razões da saída dos restantes, bem como os nomes dos sucessores dos cinco
governantes. Os presidentes da Comissão Anticorrupção e da Comissão dos
Direitos Humanos também foram afastados.
Um dos exonerados, U Myo Myint Oo, foi sancionado
pelos Estados Unidos da América (EUA) no início do ano. O ex-ministro da
Energia era o responsável pela gestão de atividades conexas com a produção e com
a exportação de gás e petróleo, a principal fonte de divisas da junta.
Yadanar Maung, porta-voz do Justice for Myanmar,
sustenta que “a junta militar de Myanmar é um órgão ilegítimo que tomou o poder
ilegalmente, através de um golpe. Não foi bem-sucedida a assumir o controlo e
recorre a atos repetidos de terror contra o povo de Myanmar, incluindo
massacres, violações, tortura e incêndio de aldeias. Este grupo de ativistas,
que já existia antes do mais recente golpe no país, faz “investigação,
visualização de dados e relatórios” para “expor e desmantelar as redes de
negócios que alimentam a brutalidade, a corrupção e o sofrimento em larga
escala”. E a porta-voz diz que “o povo de Myanmar quer o fim da tirania
militar”, o que “só pode ser alcançado com o desmantelamento dos militares, que
operam como um cartel, e [com] a responsabilização dos perpetradores de
genocídio, [de] crimes de guerra e [de] crimes contra a humanidade, à luz do
direito internacional”.
Yadanar Maung considera que a UE tem “um importante papel
a desempenhar” na ajuda ao bloqueio do “acesso dos militares a fundos, armas e
equipamento de que necessitam para levarem a cabo os seus ataques”. Por isso, o
grupo insta a UE “a impor urgentemente mais sanções” à junta e à sua rede de
negócios”, incluindo o Banco de Comércio Externo e o Banco Comercial e de
Investimento, “controlados pela junta” e “já sancionados pelos EUA”.
A UE impôs, em julho, uma sétima ronda de sanções a
pessoas e a empresas associadas à junta militar. Todavia, como assinalou
recentemente a “Deutsche Welle” (empresa pública de radiodifusão da Alemanha, com sedes em
Bonn e Berlim), o
comércio do bloco europeu com este país do Sudoeste Asiático aumentou 80%, em
2022, comparativamente com 2021, o ano do golpe. Aquela rede pública alemã de
rádio e televisão, com base em dados da Comissão Europeia, pormenorizava que a
UE importou bens de Myanmar no valor de 4,3 mil milhões de euros, em 2022,
enquanto, em 2021, esse valor era de 2,6 mil milhões. As exportações da UE para
Myanmar aumentaram no mesmo período, de cerca de 300 milhões para 368 milhões
de euros. E o comércio dos EUA com Myanmar subiu de um ano para o outro, mas
apenas 4%.
O relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU)
para Myanmar afirmou que o povo birmanês precisa de “menos retórica e de mais
ação”. Na 53.ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em
Genebra, Tom Andrews exortou a comunidade internacional a fazer mais, para negar
armas, dinheiro e legitimidade à junta militar. Com o golpe militar e com a insurreição (pacífica e armada)
subsequente, os Rohingyas, tornaram-se, nos últimos dois anos e meio, o ângulo
morto das notícias que chegam de Myanmar. São uma etnia maioritariamente
muçulmana que vive no estado de Raquine, no Noroeste de Myanmar, país predominantemente
budista. A ONU descreveu-os como “uma das minorias mais perseguidas e menos
desejadas do Mundo”. Antes do genocídio de 2016-17, estimava-se que vivessem
1,4 milhões de Rohingyas em Myanmar, mas parte substancial deles fugiu para o
Bangladesh.
Nay San Lwin, um dos coordenadores da Free Rohingya Coalition, rede global de
ativistas e refugiados Rohingyas, saiu de Myanmar há mais de duas décadas,
reconhece que muito dificilmente voltará e diz que a Causa Rohingya foi
praticamente esquecida desde o golpe. Porém, o genocídio está em curso e a
situação piorou, por causa do golpe e da passagem do ciclone tropical Mocha em
maio passado. Por um lado, o país inteiro sofre com o golpe militar; por outro,
os Rohingyas sofrem os efeitos do ciclone devastador, com a dificuldade de não
estarem a receber qualquer ajuda. Por isso, a situação não melhorará, enquanto
a junta governar o país.
É certo que Suu Kyi, a anterior chefe do governo, não
fez muito pela Causa Rohingya. Até, pelo contrário, foi ao Tribunal
Internacional de Justiça defender os militares, complacência que levou à
retirada ou à suspensão de algumas das distinções que até então acumulava. Uma
das mais emblemáticas foi o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento, que
o Parlamento Europeu (PE) lhe concedeu em 1990 (um ano antes de ser laureada
com o Nobel da Paz). Três décadas depois, em 2020, foi formalmente
suspensa da Comunidade do Prémio Sakharov.
Como destaca San Lwin, “a junta militar quer mostrar à
comunidade internacional que está a fazer progressos”. Por isso, reduziu a pena
à antiga chefe do governo e a outras figuras de relevo, para mostrar que está a
fazer algo para alívio da pressão e das sanções.
Os militares também jogam no plano regional, sobretudo
com a proximidade da 43.ª cimeira da Associação de Nações do Sudeste Asiático
(ASEAN, acrónimo em inglês), do início de setembro, em Jacarta. Myanmar integra
a ASEAN com outros países da região: Brunei, Camboja, Filipinas, Indonésia, Laos,
Malásia, Singapura, Tailândia, Vietname e, agora, Timor-Leste. A 24 de abril de
2021, quase três meses após o golpe de Estado, a ASEAN convocou uma reunião
especial, tendo o líder da junta representado Myanmar. Daí saiu um “consenso em
cinco pontos” com o general Min Aung Hlaing, que inclui a cessação da violência
no país, o diálogo construtivo entre todas as partes e a designação de um
enviado especial da ASEAN para facilitar as conversações. Contudo, a violência
continuou e os líderes militares foram impedidos de participar nas cimeiras
seguintes, recusando-se a enviar um “representante não político”, como sugeriam
os convites.
San Lwin acredita que a junta militar estará
interessada em normalizar as relações com os parceiros regionais. Porém, o
alargamento do estado de emergência por seis meses é uma demonstração de força
interna: “Serve para mostrar que são eles que detêm o poder, ano após ano.
Depois destes seis meses, vão continuar a prolongar o estado de emergência até
que as pessoas acabem por votar no Partido União, Solidariedade e
Desenvolvimento.” Este partido é uma formação política ultranacionalista e
pró-militar. Ora, a realização de eleições, previstas para este mês de agosto,
não seria fácil, porque os militares não controlam todo o território; em
particular, não controlam o Centro.
***
Desde 1960,
os Rohingyas, tratados como apátridas, enfrentam perseguição e violência, o que
levou a deslocamentos em massa, criando problemas graves
a mais de um milhão de pessoas que sofrem o trauma da violência e as condições
precárias dos acampamentos superlotados em que vivem. Ao redor de Cox’s Bazar,
no Bangladesh, está o maior campo de refugiados do Mundo, com quase 900 mil
pessoas, sendo cerca de 50% mulheres e crianças.
MSF (Médicos
Sem Fronteiras) apoia, desde 1985, a resposta das autoridades de Bangladesh,
administra nove instalações sanitárias em Cox’s Bazar e apoia a instalação e a
manutenção de uma rede de bombas de água. Já em Mianmar, fornece aos Rohingyas cuidados
básicos de saúde, apoio à saúde mental e encaminhamentos para cuidados
especializados e de emergência.
Em 1978, Myanmar,
ainda denominada Birmânia e governada pelos militares, lançou a “Operação Rei
Dragão”. Confiscaram os cartões de identificação nacional do povo Rohingya. Usaram
a violência para levar 200 mil Rohingyas para o Bangladesh. Posteriormente, os
militares permitiram que retornassem à Birmânia, mas muitos não tinham os cartões
de identificação, pelo que passaram a ser considerados “estrangeiros”.
Em 1982, foi
aprovada a nova lei de cidadania, reconhecendo legalmente 135 grupos étnicos
presentes no país. Entretanto, os Rohingya, com uma população de cerca de um
milhão de pessoas, não estavam na lista e tornaram apátridas. Em 1991, na
Birmânia, que passara a ser denominada como Myanmar, os militares lançaram a
“Operação Limpa e Bela Nação”. Os Rohingyas passaram a ser submetidos a
execuções, a agressões, a violência sexual, a trabalhos forçados, a restrições
matrimoniais, a apreensões de terras e a demolição de suas casas.
Em 1992, mais
de 250 mil refugiados fugiram para o Bangladesh. Os governos do Bangladesh e de
Myanmar assinaram um acordo para repatriar refugiados. Mais tarde, ainda nesse
ano, começou a repatriação forçada, apesar dos protestos da comunidade
internacional. A maioria dos refugiados foi devolvida a Mianmar até ao final de
1996.
Em 2012, eclodiu
nova onda de violência entre as comunidades budistas e muçulmanas, em Myanmar. Foram
mortas centenas de pessoas, arrasados bairros e destruídos edifícios religiosos.
Os Rohingyas que sobreviveram foram forçados a fugir de suas casas e,
posteriormente, foram segregados em acampamentos, onde hoje permanecem 140 mil
pessoas.
Até 2016, a
população Rohingya respondeu a anos de violência, a restrições legais cada vez
mais rigorosas e ao discurso de ódio com motivos raciais de inúmeras maneiras.
Muitos fugiram para outros países. E uma minoria Rohingya formou um grupo
armado.
Em 2017, as
forças de segurança estatais realizaram a maior campanha de violência contra os
Rohingyas na História moderna, alegadamente em retaliação ao ataque de um grupo
armado. Após esta violenta campanha, o MSF registou 6700 mortes entre os
Rohingya. Mais de 750 mil pessoas foram forçadas a fugir. O Bangladesh acolheu-as,
embora não lhes tenha concedido o status
de refugiados.
Hoje, cerca
de 600 mil Rohingyas permanecem em Mianmar, em acampamentos ou em vilarejos do
outro lado de Rakhine, mas com liberdade de movimentos limitada, o que lhes
impede o acesso a oportunidades de subsistência, de educação e de saúde. Centenas
de milhares a mais compõem atualmente uma diáspora apátrida em países como a Malásia,
a Índia e o Paquistão.
Mais de 900
mil Rohingyas vivem em acampamentos no Bangladesh. Não podem trabalhar, nem
receber educação formal e não têm alternativa senão contar com a assistência
humanitária para atender às necessidades básicas. Enfrentam a incerteza do
futuro para si e para os filhos. Nos acampamentos, as condições de vida das
pessoas são precárias, com acesso inadequado a água potável, a saneamento, a cuidados
de saúde e de abrigo, o que lhes afeta a capacidade de viver com dignidade e com
segurança. A sarna, doença infeciosa ligada às condições superlotadas de
acampamento, está nos níveis mais altos registrados em mais de três anos.
E, depois de
2021, é aquilo de que pouco sabemos.
***
Enfim,
propalam-se os direitos humanos, prega-se a dignidade da pessoa humana e o
direito à vida e à integridade física, porém muitos nem sequer são considerados
cidadãos e, como apátridas, não têm acesso às condições de vida mínimas e,
muito menos, aos benefícios da civilização.
2023.08.05 – Louro de Carvalho
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