António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), assinalou,
a 19 de agosto, o Dia Mundial da Ajuda Humanitária, recordando o 20.º
aniversário da morte do diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, “tragédia
que mudou o trabalho humanitário”.
Na verdade, este 19 de agosto marca o 20.º aniversário do ataque mortal
ao Hotel Canal, em Bagdad, no Iraque. “Naquele dia sombrio, perdemos 22
colegas, inclusive o representante especial Sérgio Vieira de Mello”, vincou
Guterres, em mensagem oficial, sustentando que “esta tragédia marcou uma
mudança na forma como os trabalhadores humanitários operam”. Com efeito, embora
os trabalhadores humanitários sejam respeitados em todo o Mundo, também podem
ser visados em ataques.
A data de 19 de agosto foi estabelecida para o Dia Mundial da Ajuda
Humanitária, para assinalar a morte de 22 trabalhadores humanitários, incluindo
Sérgio Vieira de Mello, no ataque à bomba no Iraque. Em 2023, indicou o
ex-primeiro-ministro português, as operações humanitárias globais procuram
levar ajuda para salvar vidas de 250 milhões de pessoas em 69 países – dez
vezes mais do que na época do atentado ao Hotel Canal. “Neste Dia Mundial da
Ajuda Humanitária, saudamos a coragem e a dedicação dos trabalhadores de ajuda
humanitária em todos os lugares. […] Celebramos a sua dedicação inabalável para
atender todas os necessitados: não importa quem, não importa onde, não importa
o quê”, frisou o líder da ONU.
Há 20 anos, enquanto atuava como representante oficial do secretário-geral
da ONU para o Iraque, Vieira de Mello foi vítima de ataque à sede da ONU, em
Bagdad, onde morreu, aos 55 anos, ele que se tornara funcionário da ONU, aos 21
anos, e que passou a maior parte da carreira a servir em missões do Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
Atuou em crises humanitárias no Bangladesh, no Sudão, em Chipre, em Moçambique
e no Camboja, trabalhando com refugiados e em campos de guerra. Foi responsável
pela operação de repatriação e reintegração de moçambicanos que deixaram o país
durante a guerra. Foi então que, aos 28 anos, assumiu o comando do escritório
do ACNUR em Moçambique, tornando-se um dos mais jovens representantes do ACNUR
em operação de campo.
Entre 1999 e 2002, liderou a missão da ONU que acompanhou a transição de
Timor-Leste para a independência. O então secretário-geral da ONU, Kofi Annan,
afirmava que Vieira de Mello era “a pessoa certa para resolver qualquer
problema”.
O compromisso do brasileiro com as causas humanitárias acabou por levá-lo
ao cargo de alto comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, em 2002,
um ano antes de perder a vida no Iraque, num atentado reivindicado pela
organização extremista Al Qaeda.
A memória e o legado de Sérgio Vieira de Mello estão vivos em todos os que
dedicam as suas vidas às causas humanitárias e em todos os que cultivam valores
de paz, tolerância e cooperação. “A sua história é um marco para o ACNUR, para
o Brasil e para o Mundo, e as lições que a sua vida inspira sempre trarão a
esperança de um mundo melhor”, indicou o ACNUR Brasil.
***
Em entrevista ao UOL, Carolina
Larriera, economista da universidade de Nova Iorque e viúva do diplomata
referiu que a ONU resistiu em assumir as suas responsabilidades ante a família
brasileira de Vieira de Mello.
Há 20 anos, uma bomba pôs fim à vida do brasileiro que, para muitos, se perfilava
para secretário-geral da ONU. Um camião com explosivos foi estacionado ao lado
da sede do departamento das Nações Unidas em Bagdad. Vieira de Mello chefiava a missão. No total, 22 pessoas
morreram e 150 ficaram feridas. O atentado, porém, abriu novo capítulo na História
da entidade.
Uma das sobreviventes foi Carolina, que também trabalhava na missão da ONU
no Iraque, conta os detalhes dos processos das últimas duas décadas, para ser
reconhecida como parceira do diplomata. Formada na Universidade de Harvard, não
mede palavras para descrever o que viveu diante do prestigiado organismo
internacional. Tinham-nos avisado que precisavam
de saber que iam lutar com uma mão amarrada nas costas contra um adversário maior
que as famílias das vítimas e que
não respeitava as regras.
Segundo Carolina, as famílias jamais foram informadas dos resultados das
investigações internas sobre o atentado.
Vieira de Mello, nas palavras do Itamaraty, ingressou na ONU, em 1969, como
funcionário do ACNUR e atuou em operações humanitárias e de manutenção de paz
em diversos países. No Camboja, coordenou a repatriação de 360 mil refugiados.
E, entre 1999 e 2002, liderou a missão da ONU que acompanhou a transição do
Timor-Leste para a independência. “Dedicou a sua vida a apoiar a reconstrução
de comunidades afetadas por guerras e violências extremas, sempre atuando com
independência e imparcialidade na negociação pacífica de conflitos e na defesa
dos direitos humanos”, completou o governo.
Segundo Carolina, a ONU, que tinha a responsabilidade, nunca
a assumiu, pelo que, em novembro de 2022, as vítimas forçaram a ONU, na
Justiça, a reconhecer que tinha agido equivocadamente. O Tribunal Interno de
Apelações da ONU (UNAT) tem-lhes dado razão: provou que a ONU agiu de forma
errada, não respeitando a sua própria lei (e, por via da imunidade, a questão não
podia ser resolvida fora da organização). No total, tiveram um processo no
Brasil e cinco nos tribunais da ONU, durante estes 20 anos. É uma reivindicação
moral muito importante.
Havia uma decisão dos tribunais
brasileiros que a ONU não reconhecia: a união civil de Carolina e Sérgio.
Porém, o UNAT, o seu maior tribunal interno, confirmou a lei brasileira
e o status de Carolina como viúva e familiar.
A mais surpreendente descoberta foi que, nas Regras e Regulamentos da ONU,
o direito dos funcionários deve ser determinado, sempre, “com base no princípio,
há muito estabelecido, por referência à lei da nacionalidade do funcionário em
questão”, “para assegurar o respeito pelos direitos sociais, diversidade religiosa
e cultural dos Estados-membros e de seus nacionais”. Contudo, no caso de Sérgio,
que era brasileiro, apesar dessa regra elementar, durante 19 anos, a ONU recusou-se
a reconhecer a lei brasileira. Assim, negou a família brasileira em favor duma
narrativa insustentável. Em tempos de discussão de apropriações culturais e no
contexto do litígio pela retidão moral da guerra do Iraque, em 2003, entre a França
e os Estados Unidos da América (EUA), as vítimas ficaram estarrecidas com a
descoberta.
Carolina Larriera aponta que não assumir responsabilidades tem tido consequências:
entre outras, embaixadores de boa vontade, como a atriz Angelina Jolie, têm
encerrado os seus mandatos. E revela que, nestes anos, juntamente com Gilda,
sua sogra, fez um longo percurso, tendo sido doloroso ver como “uma velhinha de
86 anos e uma jovem mulher sobrevivente de um atentado terrorista viraram
ameaça só pelo facto de insistirem com perguntas legítimas sobre o pior
atentado em mais de 75 anos da História da ONU”, quando também Carolina foi
diplomata da Organização, durante quase uma década, em zonas de conflito. A ONU
aduziu várias desculpas, para não oferecer respostas – nem como sobrevivente nem
como família.
Porém, resolvida a questão de fundo, acabaram por organizar uma rede de
voluntários: peritos em direito, brasileiros e profissionais de vários países,
buscando soluções novas e de ponta.
É de lembrar que organizações como a ONU têm imunidade diplomática e não
respondem a tribunais nacionais. Assim, tiveram de enfrentar a organização no
seu tribunal interno, onde ela atua, tanto como juiz como como parte. E
Carolina interroga-se: “Num eventual atentado contra soldados brasileiros ao
serviço da ONU, será que a ONU vai respeitar a lei brasileira? Ou vai limitar-se
a acatar a lei dos poderes tradicionais como EUA e a França, se for do interesse
dessas potências, como fez durante quase 20 anos no caso do Sérgio?”
Sérgio e Carolina não concordavam com a guerra do Iraque, mas, à época, acreditavam
e viviam a missão da ONU, todos os dias, e sentiam-se fiéis aos valores a que haviam
dedicado as suas carreiras. Estavam preocupados com o que aconteceria com os
civis na Bagdade ocupada quando a operação militar terminasse. Há uma visita que ficou famosa, de Sérgio ao
presidente Bush. Dessa visita Sérgio entregou a Carolina uma taquigrafia, que
ela guardou, para garantir que a reunião não fosse tirada do contexto do
alto comissariado de direitos humanos, pois Sérgio acabava de alertar Marília
Gabriela, na TV, que estava com receio de “cair numa cilada”.
Após o atentado, Carolina dedicou a vida à procura da verdade e,
para garantir o legado do marido, ajudou a sogra na fundação do Centro Sérgio
Vieira de Mello, que inspira as novas gerações de jovens – em 20 anos, o curso
de Relações Internacionais tem-se multiplicado exponencialmente. Os jovens
sonham seguir o caminho na área internacional. Valores como a defesa da verdade
até ao fim e a dignidade humana são princípios inspirados na nossa História,
mais atuais do que nunca. Para as duas décadas, o Centro Sérgio Vieira de Mello
ofereceu, a 19 de agosto, uma conferência internacional, com todos os que o têm
apoiado: desde o primeiro fiscal do Tribunal Penal Internacional Luis Moreno
Ocampo até ao atual presidente de Timor-Leste, Prémio Nobel Ramos-Horta. O
ministro Mauro Vieira e o deputado Eduardo Suplicy também discursaram.
A ONU tem de ser neutra e eficaz e respeitar as suas próprias regras.
***
Do diplomata, agora evocado, reza, com brilho, o depoimento da diplomata Ana
Gomes, recolhido por João Pedro Henriques, para o Diário de Notícias (DN),
de 19 de agosto.
Conheceu Vieira de Mello, em 1986, em Genebra, quando
foi nomeada como diplomata na Missão Permanente de Portugal junto da ONU. Era mais
velho e mais rodado do que ela, nas andanças da política internacional. Ao
invés da portuguesa, nunca esteve ao serviço do seu governo, mas sempre ao
serviço a ONU, para a qual começou a trabalhar, quando o pai foi aposentado
compulsivamente da carreira diplomática, por ordens da ditadura militar que
governava o Brasil. Sérgio, contrariando os estereótipos associados à
diplomacia, era um homem aberto e jovial, extraordinariamente bem-humorado e
cultíssimo (tinha-se formado em Filosofia na Sorbonne). A diplomata não gostou
do filme que fizeram sobre a vida dele para a Netflix, por ter imensas
incorreções sobre Timor-Leste e pelo facto de o ator que o interpreta ser
inverso do homem lindo e de sorriso aberto que Sérgio era, “muito mais do
terreno do que das chancelarias”. Do que gostava mesmo “era de estar no terreno
a resolver problemas e a estabelecer pontes entre fações desavindas”.
E Ana Gomes dispara: “Quando o conheci, já tinha
passado pelo Bangladesh, pelo Sudão, por Chipre, por Moçambique, pelo Peru e
pelo Líbano. E, no entanto, apesar de ter trabalhado tanto em situações de
brutal violência, havia nele uma luz que o impediu sempre de sucumbir ao
desânimo e o impelia para a procura de soluções pacíficas e negociadas dos
problemas.”
Reencontraram-se em Nova Iorque, em 1997/98, quando
ele, nomeado pelo secretário-geral Kofi Anan, dirigia o Office for the
Coordination of Humanitarian Affairs (OCHA), prevendo-se que seria o próximo secretário-geral
da ONU. Nessa altura, já muita gente especulava que ele poderia suceder a Kofi
Anan como secretário-geral da ONU. Timor era um dos temas principais das nossas
conversas. E, concluído o referendo que abriu para a independência, criou-se a Administração
Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste (UNTAET), dirigida, até à independência,
por Vieira de Mello, o grande servidor da causa da Paz e
dos Direitos Humanos.
Depois da UNTAET, foi nomeado Alto-Comissário dos
Direitos Humanos. Em 2003, com o Iraque já ocupado, foi chefiar a representação
da ONU em Bagdad. Aí enfrentou o poder dos EUA, visitando Abu Ghraib. Foi vítima do ódio à paz,
de uns e de outros naquela guerra. Tanto Al Qaeda como os EUA sabiam que o diplomata punha a paz
e os direitos humanos acima de qualquer interesse militar, bélico ou económico.
Terá sacrificado a vida por este ideal!
2023.08.19 – Louro de Carvalho
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