quinta-feira, 1 de maio de 2025

“Efeito Trump” agrava retrocesso dos direitos humanos no Mundo

 

De acordo com o 35.º relatório anual da Amnistia Internacional (AI) intitulado “A Situação dos Direitos Humanos no Mundo”, com mais de 400 páginas, publicado a 29 de abril, os primeiros 100 dias “ de luxo” da administração de Donald Trump intensificaram as regressões globais de direitos humanos, pondo em risco milhares de milhões de pessoas, em todo o planeta.

Na verdade, o “efeito Trump”, como sustenta a AI, na avaliação da situação em 150 países, agravou os danos causados por outros líderes mundiais, em 2024, “corroendo décadas de trabalho meticuloso para construir e para fazer avançar os direitos humanos universais para todos e acelerando o mergulho da humanidade numa nova era de brutalidade caracterizada pela mistura de práticas autoritárias e ganância corporativa”.

A este respeito, Agnès Callamard, secretária-geral da AI, citada no relatório, considera que os acontecimentos dos últimos 12 meses (sobretudo, o genocídio dos Palestinianos, em Gaza, transmitido em direto, sem ouvir por Israel) “puseram a nu como o Mundo pode ser infernal para tantas pessoas, quando os Estados mais poderosos rejeitam o direito internacional e ignoram as instituições multilaterais”. E, referindo-se ao líder norte-americano, aponta que, “cem dias após o início do seu segundo mandato”, demonstrou absoluto desprezo pelos “direitos humanos universais”. Com efeito, na sua ótica, o presidente dos Estados Unidos da América (EUA) atacou, “rápida e deliberadamente, não só iniciativas vitais dos EUA como internacionais, concebidas para tornar o nosso Mundo mais seguro e mais justo”, nomeadamente, nas áreas do asilo, da justiça racial e de género, da saúde global e da ação climática.

Porém, a secretária-geral da AI, ressalvando que esta doença é muito mais profunda do que as ações de Donald Trump”, lamenta a “disseminação crescente de práticas autoritárias entre os estados de todo o Mundo, fomentadas por aspirantes a líderes e [por] líderes eleitos que atuam voluntariamente como motores de destruição”.

Em vários países, como o Bangladesh, Moçambique, a Turquia e a Coreia do Sul, as forças de segurança recorreram a detenções arbitrárias em massa, a desaparecimentos forçados e a uma força excessiva – por vezes letal – para reprimir a desobediência civil.

A multiplicação e a intensificação de conflitos puseram a nu graves violações dos direitos humanos, sobretudo, em Gaza, onde prosseguiu “o genocídio de Israel contra os Palestinianos”, ou na Ucrânia, tendo a Rússia matado mais civis ucranianos, em 2024, do que em 2023, atacando infraestruturas civis e sujeitando os detidos a tortura e a desaparecimentos forçados.

A AI alerta para as situações vividas no Sudão – onde as Forças de Apoio Rápido (RSF) infligiram violência sexual generalizada a mulheres e a raparigas, o equivalente a crimes de guerra e a crimes contra a Humanidade, enquanto o número de pessoas deslocadas, internamente, pela guerra civil de dois anos aumentou para 11 milhões – e em Myanmar, onde os Rohingya continuam a ser alvo de ataques racistas, a situação sido agravada com os cortes maciços na ajuda externa efetuados pela administração Trump, ao provocar o encerramento de hospitais em campos de refugiados na vizinha Tailândia. “A suspensão inicial da ajuda externa dos EUA também afetou os serviços de saúde e o apoio a crianças separadas à força das suas famílias em campos de detenção na Síria, e os cortes abruptos encerraram programas que salvam vidas, no Iémen, incluindo o tratamento da desnutrição para crianças, para mães grávidas e para lactantes, abrigos seguros para sobreviventes de violência baseada no género e cuidados de saúde para crianças que sofrem de cólera e de outras doenças”, denuncia a AI.

Para a AI, há “provas irrefutáveis de que o Mundo está a condenar as gerações futuras a existência cada vez mais dura, mercê do fracasso coletivo em enfrentar a crise climática, em inverter as desigualdades cada vez mais profundas e em restringir o poder das empresas.

O relatório recorda que 2024 foi o ano mais quente de que há registo e o primeiro a exceder 1,5°C (Celsius), acima dos níveis pré-industriais. Não obstante, a COP29 foi uma catástrofe, com um número recorde de lobistas dos combustíveis fósseis a inibir o processo da eliminação progressiva, enquanto “os países mais ricos intimidaram as nações com rendimentos mais baixos a aceitar acordos de financiamento climático irrisórios”. E Donald Trump decidiu abandonar o Acordo de Paris, o que agravou estas falhas e encorajou outros a seguir-lhe o exemplo.

“Com um aumento de 3°C projetado para este século, as nações mais ricas sabem que não estão imunes a catástrofes não naturais cada vez mais extremas – como os recentes incêndios florestais na Califórnia demonstraram – mas será que vão agir?”, questiona Agnès Callamard.

Além disso, segundo o documento, os governos estão a prejudicar, ainda mais, as gerações atuais e futuras, “ao não regularem, adequadamente, as novas tecnologias, ao abusarem das ferramentas de vigilância e ao reforçarem a discriminação e as desigualdades através de uma maior utilização da inteligência artificial”. E, neste campo, o presidente dos EUA deu importante contributo. “As empresas de tecnologia há muito que facilitam práticas discriminatórias e autoritárias, mas o presidente Trump exacerbou esta tendência, encorajando as empresas de redes sociais a reverter as proteções – incluindo a remoção pela Meta da verificação de factos por terceiros – e a duplicar um modelo de negócio que permite a disseminação de conteúdos odiosos e violentos”, lê-se no relatório, que sublinha: “O alinhamento entre a administração Trump e os bilionários da tecnologia também corre o risco de abrir a porta a uma era de corrupção desenfreada, desinformação, impunidade e captura corporativa do poder estatal.”

O relatório, além de fazer uma análise global da situação dos direitos humanos no Mundo, dedica uma ou mais páginas à situação particular de cada país. No caso de Portugal, refere que “existem relatos credíveis de tortura e de maus-tratos nas prisões” e recorda “as condições degradantes vividas por dezenas de migrantes, enquanto estiveram detidos no Aeroporto de Lisboa”.

O relatório sustenta que “a liberdade de reunião foi prejudicada pelo uso indevido de legislação com décadas de existência” e dá o exemplo de que “em julho, oito ativistas do clima, que interromperam o trânsito, durante um curto espaço de tempo, num protesto pacífico, receberam penas de prisão suspensas de 18 meses”. E evidencia que, em Portugal, o direito “à interrupção voluntária da gravidez (IVG) não está totalmente garantido, em todo o país, devido ao facto de as autoridades não terem regulamentado, adequadamente, as recusas por objeção de consciência de pessoal médico para realizar IVG”. Além disso, há outros dois direitos que não estão garantidos para todos, no país: o direito a um ambiente saudável e o direito à habitação.

No caso do primeiro, um estudo científico sobre as mortes conexas com as ondas de calor revelou que Portugal foi um dos 20 países mais afetados, a nível mundial, nos últimos 30 anos. A boa nova é que, “em outubro, o governo aprovou medidas para atenuar as alterações climáticas, aumentando o consumo de energias renováveis para 51%, até 2030, ultrapassando o objetivo global da UE de 42,5%”. Já no caso do segundo, entre maio e setembro, o governo revogou as medidas do programa “Mais Habitação”, para obviar à escassez de habitação a preços acessíveis. E, segundo os dados, de março, do Instituto Nacional de Estatística (INE), quase 13% de toda a população vivia em habitações sobrelotadas. Portanto, segundo a AI, o “acesso à habitação a preços acessíveis continua a ser insuficiente”.

***

Por sua vez, Tirana Hassan, diretora executiva da AI, falando do relatório, sustenta que 2024, ano de eleições, de resistência e de conflitos, evidenciou, de novo, que as democracias liberais nem sempre são defensoras confiáveis dos direitos humanos, em casa ou no exterior. 

Por exemplo, a política externa de Joe Biden, anterior presidente dos EUA, demonstrou duplo padrão, face aos direitos humanos, cedendo a Israel armas, sem restrições, apesar das atrocidades generalizadas em Gaza, e condenou a Rússia por violações similares, na Ucrânia, mas não abordou os graves abusos de direitos por parte de aliados, como os Emirados Árabes Unidos, a Índia e o Quénia. E o retorno de Donald Trump à Casa Branca não ameaça só os direitos nos EUA, mas afetará, por ação e por omissão, o respeito aos direitos humanos no exterior. Se eram premonitórios os ataques do seu primeiro mandato a instituições multilaterais, ao direito International e aos direitos de grupos marginalizados, agora, infligirá danos ainda maiores aos direitos humanos, inclusive, encorajando líderes não liberais, em todo o Mundo, a seguir essa via. 

Por seu turno, a Europa enfrenta significativos desafios, face aos direitos humanos. Um número cada vez maior dos seus governos usa a estagnação económica e as questões de segurança para justificar a restrição seletiva de direitos, em especial, de grupos marginalizados e de migrantes, de solicitantes de asilo e de refugiados. Ao mesmo tempo, falham em tomar medidas credíveis para melhorar os direitos económicos e sociais. Líderes autoritários têm conquistado espaço, em eleições, com retórica e com políticas discriminatórias, normalizadas pelos partidos que adotam essa agenda, mesmo quando muitos eleitores resistem ao avanço desses líderes.  

Esse fragmentado cenário político reflete que não estão garantidos os valores compartilhados e o compromisso com os direitos humanos para todos. De facto, líderes populistas fazem de minorias e de estrangeiros bodes expiatórios e dão aos eleitores a miragem de soluções, em troca da negociação dos seus direitos e do Estado de Direito. Ao invés, quando os direitos e a dignidade de todos são protegidos, a Humanidade floresce, mostrando o vínculo inseparável entre eles.  

O ano de 2024 reforçou a importância de todos os governos deterem uma liderança ousada em direitos humanos e justiça – o que deverá ocorrer com mais frequência. Neste âmbito, o México e a Gâmbia lideraram esforços para mobilizar o apoio inter-regional, na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a um projeto de convenção sobre crimes contra a Humanidade, etapa fundamental para apoiar processos nacionais contra crimes generalizados e sistemáticos contra populações civis, mesmo sem conflito armado. Paralelamente, a Serra Leoa e a República Dominicana uniram-se ao Luxemburgo na defesa de um novo tratado multinacional para fortalecer o direito à educação, garantindo ensino gratuito nos níveis pré-escolar e secundário para todas as crianças e adolescentes, o que poderá reduzir a pobreza e a desigualdade e apoiar a realização de outros direitos. 

Quando governos denunciam violações do direito internacional, como fez a África dos Sul, ao levar um caso ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), alegando violações da Convenção de Genocídio, por parte de Israel, em Gaza, ou quando vários estados questionam o Talibã, no Afeganistão, por violar a Convenção das Nações Unidas sobre os direitos das mulheres, isso eleva o padrão de aplicação dessas normas.  Assim, as medidas provisórias da TIJ a ordenar que Israel impeça mais danos à população palestiniana, em Gaza, embora possam ter efeito limitado, na contenção dos abusos israelitas, contribuíram para aumentar o escrutínio sobre governos que fornecem armas a Israel. Por exemplo, o Reino Unido suspendeu algumas licenças de exportação de armas para Israel, após a análise de que certas exportações constituíam claro risco de serem usadas para cometer ou para facilitar abusos, o que reflete a crescente pressão para que os governos repensem as transferências de armas para Israel.  

Enquanto enfrentamos as incertezas de 2025 e dos anos subsequentes, superar todos estes desafios exigirá evolução e imaginação. A incapacidade ou a falta de vontade dos governos de trabalharem, coletivamente, para salvar vidas em crises, como as da Ucrânia, de Gaza, do Sudão, do Sahel, do Haiti e de Mianmar, ressalta porque são fundamentais instituições independentes como o Tribunal Penal Internacional (TPI), na luta para proteger os direitos humanos. Em 2024, o TPI investigou e emitiu mandados de prisão para altos funcionários acusados de crimes na Ucrânia e na Palestina, com pedido de mandado pendente para um indivíduo de Myanmar. Porém, a grande dificuldade é mobilizar a vontade política dos governos para prenderem suspeitos e os entregarem ao tribunal – razão pela qual o consistente apoio de países membros do TPI é fundamental para garantir a justiça, quase sempre um esforço de longo prazo. O desafio é especialmente acentuado, devido à crescente pressão da Rússia, da China e dos EUA para minar o mandato e as operações do TPI e para reduzir o financiamento a mandatos de direitos humanos em todo o sistema multilateral.  

Por isso, todos os governos deveriam chamar tais ameaças pelo que elas são: disposição em aceitar a impunidade, quando a justiça ameaça os interesses dos estados, independentemente do alto custo para civis, tal como deveriam dobrar o apoio financeiro e político a órgãos independentes, como o TPI e as comissões de inquérito da ONU, para que possam cumprir vigorosamente os seus mandatos de responsabilização.  

Porém, como importa cada voz que apoia os direitos humanos, as organizações da sociedade civil são mais importantes do que nunca e desempenham papel fundamental na defesa dos direitos de todos, na proteção de minorias e na responsabilização de governos, inclusive, desafiando as narrativas populistas que têm os direitos como obstáculos ao progresso. E, porque muitos governos autoritários tomaram medidas para silenciar e para desmantelar organizações da sociedade civil que defendem os direitos humanos, governos e líderes de instituições multilaterais têm de se manter firmes contra os esforços para corroer os controlos independentes do poder – como organizações não governamentais e a imprensa. 

Os eventos de 2024 mostram a importância de defender o direito internacional, os direitos humanos e as instituições democráticas, ante a relutância de muitos governos em enfrentar o sofrimento e os abusos. O ano mostrou a resiliência dos que ousam resistir à opressão e o poder da coragem para gerar progresso, mesmo nos momentos mais sombrios. O TPI oferece um caminho para a justiça para vítimas e para sobreviventes, em Mianmar, em Israel e na Palestina e Ucrânia. Os ativistas lutam por mudanças na Geórgia, no Bangladesh, no Quénia e em outros países. E há eleitores que rejeitam o regime autoritário em eleições cruciais, como na Venezuela. Tudo isso são lembretes de que a luta pelos direitos humanos está muito viva.  

Por fim, de assentar em que é imperativo tomarem os governos a responsabilidade de resistir ao retrocesso das normas internacionais de direitos humanos, devendo defender o espaço para a liberdade de expressão e de reunião, reforçar a arquitetura e a eficácia da responsabilização, levar perpetradores de abusos à Justiça e amplificar as vozes dos que foram silenciados.

Também aos cidadãos, à sociedade civil e o povo, em geral, cabe o ónus de alimentar a cultura da liberdade, dos direitos humanos, em nome da dignidade da pessoa humana, bem como lutar contra o discurso de ódio e opor a necessária resistência, quando for necessário.    

Com efeito, se os direitos são protegidos, a Humanidade floresce; se são negados, o custo não é medido em princípios abstratos, mas em vidas humanas. Este é o desafio, a oportunidade de hoje.  

2025.05.01 – Louro de Carvalho

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