De acordo com o 35.º relatório anual da Amnistia Internacional (AI) intitulado
“A Situação dos Direitos Humanos no Mundo”, com mais de 400 páginas, publicado a
29 de abril, os primeiros 100 dias “ de luxo” da administração de Donald Trump
intensificaram as regressões globais de direitos humanos, pondo em risco
milhares de milhões de pessoas, em todo o planeta.
Na verdade, o “efeito Trump”, como sustenta a AI, na avaliação da situação
em 150 países, agravou os danos causados por outros líderes mundiais, em 2024, “corroendo
décadas de trabalho meticuloso para construir e para fazer avançar os direitos
humanos universais para todos e acelerando o mergulho da humanidade numa nova
era de brutalidade caracterizada pela mistura de práticas autoritárias e
ganância corporativa”.
A este respeito, Agnès Callamard, secretária-geral da AI, citada no
relatório, considera que os acontecimentos dos últimos 12 meses (sobretudo, o
genocídio dos Palestinianos, em Gaza, transmitido em direto, sem ouvir por
Israel) “puseram a nu como o Mundo pode ser infernal para tantas pessoas,
quando os Estados mais poderosos rejeitam o direito internacional e ignoram as
instituições multilaterais”. E, referindo-se ao líder norte-americano, aponta
que, “cem dias após o início do seu segundo mandato”, demonstrou absoluto desprezo
pelos “direitos humanos universais”. Com efeito, na sua ótica, o presidente dos
Estados Unidos da América (EUA) atacou, “rápida e deliberadamente, não só
iniciativas vitais dos EUA como internacionais, concebidas para tornar o nosso
Mundo mais seguro e mais justo”, nomeadamente, nas áreas do asilo, da justiça
racial e de género, da saúde global e da ação climática.
Porém, a secretária-geral da AI, ressalvando que esta doença é muito mais
profunda do que as ações de Donald Trump”, lamenta a “disseminação crescente de
práticas autoritárias entre os estados de todo o Mundo, fomentadas por
aspirantes a líderes e [por] líderes eleitos que atuam voluntariamente como
motores de destruição”.
Em vários países, como o Bangladesh, Moçambique, a Turquia e a Coreia do
Sul, as forças de segurança recorreram a detenções arbitrárias em massa, a
desaparecimentos forçados e a uma força excessiva – por vezes letal – para
reprimir a desobediência civil.
A multiplicação e a intensificação de conflitos puseram a nu graves violações
dos direitos humanos, sobretudo, em Gaza, onde prosseguiu “o genocídio de
Israel contra os Palestinianos”, ou na Ucrânia, tendo a Rússia matado mais
civis ucranianos, em 2024, do que em 2023, atacando infraestruturas civis e
sujeitando os detidos a tortura e a desaparecimentos forçados.
A AI alerta para as situações vividas no Sudão – onde as Forças de Apoio
Rápido (RSF) infligiram violência sexual generalizada a mulheres e a raparigas,
o equivalente a crimes de guerra e a crimes contra a Humanidade, enquanto o
número de pessoas deslocadas, internamente, pela guerra civil de dois anos
aumentou para 11 milhões – e em Myanmar, onde os Rohingya continuam a ser alvo
de ataques racistas, a situação sido agravada com os cortes maciços na ajuda
externa efetuados pela administração Trump, ao provocar o encerramento de
hospitais em campos de refugiados na vizinha Tailândia. “A suspensão inicial da
ajuda externa dos EUA também afetou os serviços de saúde e o apoio a crianças
separadas à força das suas famílias em campos de detenção na Síria, e os cortes
abruptos encerraram programas que salvam vidas, no Iémen, incluindo o
tratamento da desnutrição para crianças, para mães grávidas e para lactantes,
abrigos seguros para sobreviventes de violência baseada no género e cuidados de
saúde para crianças que sofrem de cólera e de outras doenças”, denuncia a AI.
Para a AI, há “provas irrefutáveis de que o Mundo está a condenar as
gerações futuras a existência cada vez mais dura, mercê do fracasso coletivo em
enfrentar a crise climática, em inverter as desigualdades cada vez mais
profundas e em restringir o poder das empresas.
O relatório recorda que 2024 foi o ano mais quente de que há registo e o
primeiro a exceder 1,5°C (Celsius), acima dos níveis pré-industriais. Não
obstante, a COP29 foi uma catástrofe, com um número recorde de lobistas dos
combustíveis fósseis a inibir o processo da eliminação progressiva, enquanto “os
países mais ricos intimidaram as nações com rendimentos mais baixos a aceitar
acordos de financiamento climático irrisórios”. E Donald Trump decidiu abandonar
o Acordo de Paris, o que agravou estas falhas e encorajou outros a seguir-lhe o
exemplo.
“Com um aumento de 3°C projetado para este século, as nações mais ricas
sabem que não estão imunes a catástrofes não naturais cada vez mais extremas –
como os recentes incêndios florestais na Califórnia demonstraram – mas será que
vão agir?”, questiona Agnès Callamard.
Além disso, segundo o documento, os governos estão a prejudicar, ainda mais,
as gerações atuais e futuras, “ao não regularem, adequadamente, as novas
tecnologias, ao abusarem das ferramentas de vigilância e ao reforçarem a
discriminação e as desigualdades através de uma maior utilização da
inteligência artificial”. E, neste campo, o presidente dos EUA deu importante
contributo. “As empresas de tecnologia há muito que facilitam práticas discriminatórias
e autoritárias, mas o presidente Trump exacerbou esta tendência, encorajando as
empresas de redes sociais a reverter as proteções – incluindo a remoção
pela Meta da verificação de factos
por terceiros – e a duplicar um modelo de negócio que permite a disseminação de
conteúdos odiosos e violentos”, lê-se no relatório, que sublinha: “O
alinhamento entre a administração Trump e os bilionários da tecnologia também
corre o risco de abrir a porta a uma era de corrupção desenfreada, desinformação,
impunidade e captura corporativa do poder estatal.”
O relatório, além de fazer uma análise global da situação dos direitos
humanos no Mundo, dedica uma ou mais páginas à situação particular de cada país.
No caso de Portugal, refere que “existem relatos credíveis de tortura e de maus-tratos
nas prisões” e recorda “as condições degradantes vividas por dezenas de
migrantes, enquanto estiveram detidos no Aeroporto de Lisboa”.
O relatório sustenta que “a liberdade de reunião foi prejudicada pelo uso
indevido de legislação com décadas de existência” e dá o exemplo de que “em
julho, oito ativistas do clima, que interromperam o trânsito, durante um curto
espaço de tempo, num protesto pacífico, receberam penas de prisão suspensas de
18 meses”. E evidencia que, em Portugal, o direito “à interrupção voluntária da
gravidez (IVG) não está totalmente garantido, em todo o país, devido ao facto
de as autoridades não terem regulamentado, adequadamente, as recusas por
objeção de consciência de pessoal médico para realizar IVG”. Além disso, há
outros dois direitos que não estão garantidos para todos, no país: o direito a
um ambiente saudável e o direito à habitação.
No caso do primeiro, um estudo científico sobre as mortes conexas com as
ondas de calor revelou que Portugal foi um dos 20 países mais afetados, a nível
mundial, nos últimos 30 anos. A boa nova é que, “em outubro, o governo aprovou
medidas para atenuar as alterações climáticas, aumentando o consumo de energias
renováveis para 51%, até 2030, ultrapassando o objetivo global da UE de 42,5%”.
Já no caso do segundo, entre maio e setembro, o governo revogou as medidas do
programa “Mais Habitação”, para obviar à escassez de habitação a preços
acessíveis. E, segundo os dados, de março, do Instituto Nacional de Estatística
(INE), quase 13% de toda a população vivia em habitações sobrelotadas. Portanto,
segundo a AI, o “acesso à habitação a preços acessíveis continua a ser
insuficiente”.
***
Por sua vez, Tirana Hassan, diretora executiva da AI,
falando do relatório, sustenta que 2024, ano de eleições, de resistência e de conflitos,
evidenciou, de novo, que as democracias liberais nem sempre são defensoras
confiáveis dos direitos humanos, em casa ou no exterior.
Por
exemplo, a política externa de Joe Biden, anterior presidente dos EUA,
demonstrou duplo padrão, face aos direitos humanos, cedendo a Israel armas,
sem restrições, apesar das atrocidades generalizadas em Gaza, e condenou a
Rússia por violações similares, na Ucrânia, mas não abordou os graves abusos de
direitos por parte de aliados, como os Emirados Árabes Unidos, a Índia e o Quénia.
E o retorno de Donald Trump à Casa Branca não ameaça só os direitos nos EUA,
mas afetará, por ação e por omissão, o respeito aos direitos humanos no
exterior. Se eram premonitórios os ataques do seu primeiro mandato a
instituições multilaterais, ao direito International e aos direitos de grupos
marginalizados, agora, infligirá danos ainda maiores aos direitos humanos,
inclusive, encorajando líderes não liberais, em todo o Mundo, a seguir essa via.
Por seu
turno, a Europa enfrenta significativos desafios, face aos direitos humanos. Um
número cada vez maior dos seus governos usa a estagnação económica e as questões
de segurança para justificar a restrição seletiva de direitos, em especial, de
grupos marginalizados e de migrantes, de solicitantes de asilo e de refugiados.
Ao mesmo tempo, falham em tomar medidas credíveis para melhorar os direitos
económicos e sociais. Líderes autoritários têm conquistado espaço, em eleições,
com retórica e com políticas discriminatórias, normalizadas pelos partidos que
adotam essa agenda, mesmo quando muitos eleitores resistem ao avanço desses líderes.
Esse
fragmentado cenário político reflete que não estão garantidos os valores
compartilhados e o compromisso com os direitos humanos para todos. De facto, líderes
populistas fazem de minorias e de estrangeiros bodes expiatórios e dão aos
eleitores a miragem de soluções, em troca da negociação dos seus direitos e do
Estado de Direito. Ao invés, quando os direitos e a dignidade de todos são
protegidos, a Humanidade floresce, mostrando o vínculo inseparável entre eles.
O ano de
2024 reforçou a importância de todos os governos deterem uma liderança ousada
em direitos humanos e justiça – o que deverá ocorrer com mais frequência. Neste
âmbito, o México e a Gâmbia lideraram esforços para mobilizar o apoio
inter-regional, na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a um
projeto de convenção sobre crimes contra a Humanidade, etapa fundamental para
apoiar processos nacionais contra crimes generalizados e sistemáticos contra
populações civis, mesmo sem conflito armado. Paralelamente, a Serra Leoa e a
República Dominicana uniram-se ao Luxemburgo na defesa de um novo tratado
multinacional para fortalecer o direito à educação, garantindo ensino gratuito
nos níveis pré-escolar e secundário para todas as crianças e adolescentes, o
que poderá reduzir a pobreza e a desigualdade e apoiar a realização de outros
direitos.
Quando
governos denunciam violações do direito internacional, como fez a África
dos Sul, ao levar um caso ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ),
alegando violações da Convenção de Genocídio, por parte de Israel, em Gaza, ou
quando vários estados questionam o Talibã, no Afeganistão, por violar a
Convenção das Nações Unidas sobre os direitos das mulheres, isso eleva o padrão
de aplicação dessas normas. Assim, as medidas provisórias da TIJ a ordenar
que Israel impeça mais danos à população palestiniana, em Gaza, embora possam
ter efeito limitado, na contenção dos abusos israelitas, contribuíram para
aumentar o escrutínio sobre governos que fornecem armas a Israel. Por
exemplo, o Reino Unido suspendeu algumas licenças de exportação de
armas para Israel, após a análise de que certas exportações constituíam claro
risco de serem usadas para cometer ou para facilitar abusos, o que reflete a
crescente pressão para que os governos repensem as transferências de armas para
Israel.
Enquanto
enfrentamos as incertezas de 2025 e dos anos subsequentes, superar todos estes
desafios exigirá evolução e imaginação. A incapacidade ou a falta de vontade
dos governos de trabalharem, coletivamente, para salvar vidas em crises, como
as da Ucrânia, de Gaza, do Sudão, do Sahel, do Haiti e de Mianmar, ressalta
porque são fundamentais instituições independentes como o Tribunal Penal
Internacional (TPI), na luta para proteger os direitos humanos. Em 2024, o TPI
investigou e emitiu mandados de prisão para altos funcionários acusados de
crimes na Ucrânia e na Palestina, com pedido de mandado pendente para um
indivíduo de Myanmar. Porém, a grande dificuldade é mobilizar a vontade
política dos governos para prenderem suspeitos e os entregarem ao tribunal –
razão pela qual o consistente apoio de países membros do TPI é fundamental para
garantir a justiça, quase sempre um esforço de longo prazo. O desafio é
especialmente acentuado, devido à crescente pressão da Rússia, da China e dos
EUA para minar o mandato e as operações do TPI e para reduzir o financiamento a
mandatos de direitos humanos em todo o sistema multilateral.
Por
isso, todos os governos deveriam chamar tais ameaças pelo que elas são: disposição
em aceitar a impunidade, quando a justiça ameaça os interesses dos estados,
independentemente do alto custo para civis, tal como deveriam dobrar o apoio
financeiro e político a órgãos independentes, como o TPI e as comissões de
inquérito da ONU, para que possam cumprir vigorosamente os seus mandatos de
responsabilização.
Porém,
como importa cada voz que apoia os direitos humanos, as organizações da
sociedade civil são mais importantes do que nunca e desempenham papel
fundamental na defesa dos direitos de todos, na proteção de minorias e na
responsabilização de governos, inclusive, desafiando as narrativas populistas
que têm os direitos como obstáculos ao progresso. E, porque muitos governos
autoritários tomaram medidas para silenciar e para desmantelar organizações da
sociedade civil que defendem os direitos humanos, governos e líderes de instituições
multilaterais têm de se manter firmes contra os esforços para corroer os controlos
independentes do poder – como organizações não governamentais e a imprensa.
Os
eventos de 2024 mostram a importância de defender o direito internacional, os
direitos humanos e as instituições democráticas, ante a relutância de muitos
governos em enfrentar o sofrimento e os abusos. O ano mostrou a resiliência dos
que ousam resistir à opressão e o poder da coragem para gerar progresso, mesmo
nos momentos mais sombrios. O TPI oferece um caminho para a justiça para
vítimas e para sobreviventes, em Mianmar, em Israel e na Palestina e Ucrânia. Os
ativistas lutam por mudanças na Geórgia, no Bangladesh, no Quénia e em outros
países. E há eleitores que rejeitam o regime autoritário em eleições cruciais,
como na Venezuela. Tudo isso são lembretes de que a luta pelos direitos humanos
está muito viva.
Por fim,
de assentar em que é imperativo tomarem os governos a responsabilidade de
resistir ao retrocesso das normas internacionais de direitos humanos, devendo
defender o espaço para a liberdade de expressão e de reunião, reforçar a
arquitetura e a eficácia da responsabilização, levar perpetradores de abusos à
Justiça e amplificar as vozes dos que foram silenciados.
Também aos
cidadãos, à sociedade civil e o povo, em geral, cabe o ónus de alimentar a
cultura da liberdade, dos direitos humanos, em nome da dignidade da pessoa
humana, bem como lutar contra o discurso de ódio e opor a necessária resistência,
quando for necessário.
Com
efeito, se os direitos são protegidos, a Humanidade floresce; se são negados, o
custo não é medido em princípios abstratos, mas em vidas humanas. Este é o
desafio, a oportunidade de hoje.
2025.05.01
– Louro de Carvalho
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