Em crescente repressão dos direitos das mulheres, em alguns países, e com retrocesso das políticas de género, barreiras institucionais e sociais impedem as mulheres de participarem, em pé de igualdade, nos processos de paz e segurança. Todavia, sem mulheres, não há paz, nem segurança, como vem sublinhando a Organização das Nações Unidas (ONU) ao longo destes 25 anos. “Sabemos que, quando as mulheres a exigem, a paz acontece. Quando as mulheres a exigem, a paz é mantida”, afirmou Nyaradzayi Gumbonzvanda, diretora-adjunta da ONU Mulheres, num evento coorganizado, em Bruxelas, a 22 de maio, com a participação de decisores políticos, de líderes da sociedade civil e de organizações internacionais, para refletirem sobre os progressos e os desafios da agenda Mulheres, Paz e Segurança (WPS), implementada há um quarto de século.
A 31 de outubro de 2000, o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou a Resolução 1325, uma lei histórica que, reconhecendo o impacto desproporcional dos conflitos armados sobre as mulheres e as raparigas e apelando à participação equitativa das mulheres na prevenção e resolução das guerras e dos processos de paz, lançou as bases da agenda WPS, um modelo que procura institucionalizar os objetivos estabelecidos há 25 anos.
Este aniversário coincide com o 30.º aniversário da Plataforma de Ação de Pequim, que lançou as bases para a agenda WPS, cinco anos antes. E, embora se tenham verificado alguns êxitos, nas últimas duas décadas, os participantes afirmam que não foi feito o suficiente para implementar e atualizar plenamente os objetivos da agenda. “O compromisso, no papel, não é suficiente, temos de o transformar em ações visíveis, mensuráveis e inclusivas”, afirmou Katarzyna Kotula, ministra da Igualdade da Polónia, no seu discurso de abertura.
O aniversário deste ano tem lugar num espaço geopolítico cada vez mais complexo e fraturado e num cenário de segurança em mutação, marcado pela desinformação e pela guerra híbrida. “Os conflitos já não estão limitados pelas fronteiras”, frisou Katarzyna Kotula, alertando para as ameaças colocadas pela manipulação da informação e pela ciberviolência.
“As mulheres trazem para a mesa as experiências que viveram. Também vêm como especialistas capazes de contribuir para as soluções”, diz Nyaradzayi Gumbonzvanda, acentuando que, com base em anos de trabalho da ONU Mulheres, se tornou claro que as conversações de paz que incluem as mulheres tendem a ser mais sustentáveis.
Também a diretora-adjunta da ONU Mulheres se baseou na própria experiência – nasceu durante a Guerra de Independência do Zimbabué (1964-1979) – para evidenciar o importante papel das mulheres, durante esse período. “Quando começam a surgir os primeiros sinais de alerta, as mulheres cuidam umas das outras e lutam para fazer parte das soluções”, vincou.
As organizações locais lideradas por mulheres estiveram no centro do debate do dia 22. “Não se trata apenas das mulheres que estão nos níveis superiores, mas também as que estão no terreno”, salientou um membro do painel, considerando que persistem várias barreiras que impedem as mulheres de usarem todo o potencial nos processos de paz e segurança.
Por outro lado, a falta de financiamento e de recursos adequados para as organizações lideradas por mulheres foi identificada e unanimemente aceite como obstáculo fundamental.
Dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) mostram que a ajuda internacional, em 2024, diminuiu 7,1 %, em relação a 2023, sendo esta a primeira queda registada, após cinco anos de crescimento consecutivo.
No início deste mês, a ONU Mulheres alertou para o facto de os cortes na ajuda global poderem obrigar ao encerramento das organizações que ajudam as mulheres em crise. Na verdade, de acordo um seu relatório, 90% das 411 organizações lideradas por mulheres e de defesa dos direitos das mulheres inquiridas afirmaram ter sido afetadas pelos cortes na ajuda e metade destas organizações poderá ter de encerrar as atividades, dentro de seis meses, caso os atuais níveis de financiamento se mantenham. “O financiamento de iniciativas comunitárias e lideradas por mulheres como parte da agenda Mulheres, Paz e Segurança é um imperativo, não é uma escolha”, disse Gumbonzvanda.
Katarzyna Kotula declarou à Euronews que o Escudo Europeu da Democracia, uma comissão especial europeia criada para responder aos novos desafios geopolíticos, deve incorporar o financiamento das organizações de mulheres. E sublinhou o papel que a sociedade civil e das organizações de mulheres, quando a União Europeia (UE) foi atingida por crises sucessivas, desde a pandemia da covid-19 até à invasão da Ucrânia pela Rússia, que desencadeou uma grande crise de refugiados. “A sociedade civil e as organizações de mulheres foram as primeiras a chegar. Por isso, uma das razões pelas quais precisamos de financiamento é porque sabemos que passaram no teste, quando se tratou de lidar com crises e sabemos que podemos contar com elas”, sustentou Katarzyna Kotula.
A governante polaca admitiu que o tema da igualdade e da violência de género foi empurrado para debaixo do tapete, durante demasiado tempo, mas garantiu estar a trabalhar para incorporar as duas questões no novo plano de ação nacional da Polónia. “A Polónia enfrentou um retrocesso, durante muitos anos, depois ganhámos as eleições e abrimos um pouco a janela”, vincou, recordando que, em 2024, foi alterada, na legislação polaca, a definição de violação, o dá azo a que se utilize esta “janela de oportunidade”, para combater a violência baseada no género.
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Em 2024, a
despesa militar mundial registou o maior aumento anual desde o fim da Guerra
Fria, segundo um estudo do Instituto Internacional de Investigação da Paz de
Estocolmo (SIPRI).A invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, e a incerteza da segurança europeia, durante o mandato, do presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, levaram o continente a repensar a sua capacidade de defesa. Por conseguinte, todos os países europeus, com exceção de Malta, aumentaram as despesas militares, já em 2024. No entanto, Sanam Naraghi-Anderlini, fundadora e diretora executiva da Rede Internacional de Ação da Sociedade Civil (ICAN), que também apresenta do podcast “If You Were in Charge”, sustenta que mudar o foco para o aumento da militarização prejudica o poder da defesa social e que as mulheres adotam uma abordagem radicalmente diferente, na resolução de conflitos, de modo que, em contraste com os conflitos armados, têm “compromisso radical com a não-violência”. “Sentar, falar e não disparar, é a força motriz”, observa.
Naraghi-Anderlini refere que as mulheres construtoras da paz têm a capacidade de desarmar intelectual, mental e emocionalmente e que, apesar de as mulheres serem estereotipadas como sensíveis, na realidade, essa é uma qualidade muito poderosa, nas negociações de paz, onde há, não raro, “desconfiança, medo existencial, raiva e trauma”.
No seu discurso de abertura, Naraghi-Anderlini descreveu a forma como a sua organização apoiou, com êxito, comunidades locais com 11 milhões de dólares (9,75 milhões de euros), sublinhando o impacto significativo conseguido com “apenas uma fração do custo do armamento e do equipamento militar”. “Este tipo de trabalho de construção da paz é, de facto, bastante barato e muito importante. Por isso, se desaparecer, estamos a desperdiçar investimento e bom trabalho”, declarou à Euronews, vincando que “o conflito é natural, mas o uso da violência é uma escolha”, ainda que façam “parecer que a violência é inevitável, como se a guerra fosse inevitável, porque beneficia a indústria do armamento”.
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Em outubro,
comemora-se o 25.º aniversário da adoção da Resolução 1325 da ONU, que visa
garantir a “participação igual e o pleno envolvimento” das mulheres, em “todos
os esforços para a manutenção e promoção da paz e da segurança”. Contudo, muito
poucas mulheres participam na resolução de conflitos em todo o Mundo, o que
aumenta o risco de certos tópicos serem negligenciados em conversações de paz.“As mulheres continuam a ser uma minoria no atinente à gestão e resolução de conflitos”, disse à Euronews Irene Fellin, representante especial do secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico norte (NATO) para a agenda WPS, à margem do Fórum de Segurança de Kiev, que se realizou por ocasião do 80.º aniversário da rendição da Alemanha nazi, na Segunda Guerra Mundial, frisando: “O que as provas mostram, na investigação, é que a ausência de mulheres nas negociações leva a que certos tópicos sejam menos abordados.”
Porém, as mulheres representavam apenas 16% dos negociadores em processos de paz ativos liderados ou coliderados pela ONU, em 2022, uma diminuição de sete pontos percentuais, face a 2020, apesar de a pesquisa salientar que, quando as mulheres participam nos processos de paz, o resultado é mais durável e mais bem implementado. “As evidências mostram que ainda precisamos de que as mulheres tenham essa visão holística das necessidades de segurança”, disse Irene Fellin, a pedir que diferentes perspetivas sejam tidas em conta, porque o espaço tem género, pois é usado por diferentes indivíduos de um modo específico.
Um dos exemplos que utiliza, frequentemente, é o da desminagem. “Se perguntarmos apenas aos homens quais as áreas que querem desminar, as prioridades mudam, porque talvez eles utilizem a estrada que liga a aldeia à cidade ou o espaço onde trabalham, e as mulheres talvez pensem onde as crianças brincam ou onde vão fazer outras atividades. Por isso, ter esta abordagem integrada é extremamente importante”, sustenta a especialista, considerando que isto também pode ter impacto na forma como o acesso à saúde, à alimentação e à proteção das crianças é abordado, durante e após a resolução do conflito.
A Ucrânia, que enfrenta a invasão russa, é elogiada por ter criado, muito cedo, mecanismos de responsabilização para lidar com a violência sexual conexa com o conflito, que afeta, sobretudo, as mulheres, mas também os prisioneiros de guerra, que tendem a ser homens. “É uma lição extraordinária que todos temos de aprender com a Ucrânia”, comenta Irene Fellin.
Não obstante, o aumento da participação das mulheres nas forças armadas ucranianas – quase 67 mil mulheres estavam incorporadas nelas, em janeiro de 2024 – revelou algumas lacunas. Um dos problemas que surgiram é que as mulheres não estavam equipadas com o uniforme de combate adequado, ou seja, usavam uniforme feito à medida dos dados antropomórficos dos homens. Ora, quando as mulheres combatem e não se sentem confortáveis, põem a própria vida em risco e a sua eficácia operacional é limitada. Nesse sentido, não estão preparadas para o combate. Por isso, é muito importante incluir estas necessidades na análise e na forma como as forças armadas, mas também a NATO, desenvolveram as suas capacidades.
Além disso, as conversações entre os EUA e a Rússia e entre os EUA e a Ucrânia para pôr fim à guerra são, maioritariamente, masculinas, com poucas mulheres em posições diplomáticas de alto nível. E, a nível da UE, embora a principal diplomata do bloco seja uma mulher, Kaja Kallas, apenas cinco dos 27 estados-membros têm ministras dos Negócios Estrangeiros e só três têm ministras da Defesa. No entanto, os tempos de guerra podem, surpreendentemente, abrir portas às mulheres que poderiam ter sido fechadas, anteriormente.
“Olhando para trás, na História, as mulheres mudaram o seu papel, durante as guerras. Talvez seja triste dizê-lo, mas as guerras e os conflitos criam uma oportunidade para analisar os papéis dos géneros na sociedade e funcionam como um acelerador. […] De certa forma, esta é uma oportunidade para as mulheres assumirem responsabilidades diferentes. Mas é durante os tempos de paz que devem ser tomadas medidas para aumentar a participação das mulheres na diplomacia.
[…] É difícil ver as mulheres numa posição de alto nível, como mediadoras ou diplomatas de alto nível, se antes não tiverem um papel ativo na sua sociedade”, defende Irene Fellin.
Por isso, insiste: “O que temos de construir e mudar é criar oportunidades em tempo de paz, em todos os nossos países, e trabalhar na mudança de mentalidade e tornar claro como somos melhores, como somos mais eficientes, em todas as nossas decisões, quando as mulheres e os homens estão, igualmente, envolvidos nos nossos processos de tomada de decisão.”
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Em 2000, A ONU adotou a Resolução 1325, a criar a agenda
“Mulheres, Paz e Segurança” (WPS), para garantir que os direitos, a autonomia e
a proteção das mulheres e das raparigas fossem observados e respeitados em
quaisquer tipos de situações.Por seu lado, a UE adota, regularmente, planos de ação em matéria de igualdade de género, para promover a igualdade de género e o empoderamento das mulheres, através de toda a ação externa da UE. Estes planos incluem informações sobre os esforços necessários para avançar na agenda WPS. Na sua resolução de março de 2022, sobre o atual plano de ação em matéria de igualdade de género, o Parlamento Europeu (PE) pediu que a UE consagre maior apoio a iniciativas locais de construção da paz lideradas por mulheres e defensoras dos direitos humanos.
E, numa resolução de dezembro de 2024, os eurodeputados fizeram apelo a uma política externa, de segurança e de desenvolvimento da UE que tenha em conta as vozes das mulheres.
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O
bem inestimável da paz merece a cooperação de todos – homens e mulheres – com as
diversas maneiras de ver e sinergias; é no debate plúrimo que se encontra a luz;
e as mulheres não mais nem menos do que os homens, em dignidade e em capacidade.
Por isso, é insensato afastá-las das grandes decisões, por motivo de respeito e
pelo contributo que podem dar, em parceria e ex aequo com os homens. Devem,
pois, ter vez e voz!
2025.05.24 – Louro de Carvalho
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