sábado, 17 de maio de 2025

Equívocos decorrentes da mensagem presidencial prévia às eleições

 
Como é tradicional, na véspera de eleições nacionais, em dia de reflexão cívico-política, o Presidente da República (PR) deixou, a 17 de maio, brevíssima mensagem verbal ao eleitorado, sobre a importância do exercício do direito e do cumprimento do dever cívico do voto. Desta vez, a comunicação ao país ocorreu à hora de almoço, e não à hora de jantar, porque o chefe de Estado havia de comparecer no Vaticano, a 18 de maio, na inauguração solene do pontificado do Papa Leão XIV.
Marcelo Rebelo de Sousa apelou à participação dos Portugueses nas eleições legislativas de18 de maio, sustentando que “os ausentes acabam, mais cedo ou mais tarde, por perder a razão e limitar-se, como diz o povo, a chorar sobre o leite derramado”, pois, no dizer do PR, com o Mundo de hoje mais complexo e imprevisível, não participar, não decidir, não votar, faz ainda menos sentido do que noutras eleições”.
Para o chefe de Estado, “seria meter a cabeça na areia ficar indiferente à gravidade do instante vivido”, mas, ao invés, “votar, neste momento, é contribuir para a estabilidade no meio de um Mundo instável”. Nas suas palavras, a participação neste ato eleitoral pode poupar “soluções longas de governos de gestão”, até porque, até maio de 2026, “não poderá haver, constitucionalmente, novas eleições”.
A “gravidade do instante vivido”, denunciada na intervenção presidencial, tem a ver com as “enormes” alterações nas relações entre a Europa, a Rússia e a China, que estão a provocar imprevisibilidade na economia internacional e exigem maior responsabilidade dos Portugueses.
Na que foi a sua oitava comunicação proferida em véspera de eleições, o PR focou-se em “três reflexões breves e diretas” – radical mudança do Mundo, importância do voto, neste momento, e contribuição para a estabilidade –, começando por dizer que “o Mundo de 2025 é radicalmente diferente do Mundo de 2024”. “O regresso ao poder do atual presidente norte-americano implicou, em quatro meses, mudanças enormes nas relações com a Europa, [com] a Rússia e [com] a China”, o que criou um cenário de “imprevisibilidade na economia internacional” que coloca sobre europeus e portugueses “maiores responsabilidades”, pelo que é impossível ficar-se indiferente.
Segundo Marcelo Rebelo de Sousa, “50 anos depois da eleição mais participada de sempre, dar vida à liberdade, à igualdade, à solidariedade, à segurança, à democracia e à paz é também votar, amanhã, pelo futuro de Portugal”.
No dia 16, o PR já tinha dito que “a grande prioridade, para Portugal, depois de uma campanha e pré-campanha muito longas e intensas, é participarem e votarem”. Quanto à campanha em si, da qual disse ter-se mantido à distância, observou: “Não gostei, não participei e não comentei.”
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A par de aspetos positivos, a mensagem enferma de alguns equívocos: não pode haver eleições legislativas até maio de 2026 (só bastante mais tarde); em 2025, o Mundo não está muito pior do que em 2024; a eleição de Donald Trump já estava dada como provavelmente garantida (Joe Biden também não merecia confiança interna nem externa); as eleições de 18 de maio foram provocadas só por motivos internos; estas eleições não são mais importantes, nem menos, do que outras (todas as eleições são importantes); e, no caso, foram os deputados que deram azo, por incúria do governo, a que a palavra fosse dada ao eleitorado.   
Pelo Decreto do Presidente da República n.º 31-A/2025, de 19 de março, foi dissolvida a Assembleia da República (AR) e marcadas, para 18 de maio de 2025, as eleições legislativas, para escolha dos deputados à AR.
A dissolução implicou a cessação do normal funcionamento da AR, cuja atividade continuou, com várias alterações. Por exemplo, assumiu funções a Comissão Permanente, presidida pelo Presidente da Assembleia da República (PAR) e composta pelos vice-presidentes e por 49 deputados indicados por todos os partidos, mantendo a respetiva representatividade parlamentar.
As reuniões plenárias com os 230 deputados cessaram e passaram a ter lugar as reuniões da Comissão Permanente. O mandato dos deputados manteve-se até à primeira sessão plenária da nova AR, já com os novos deputados eleitos.​ Porém, as datas previstas para as audições aos ministros pelas comissões ficaram sem efeito e caducaram os projetos e propostas de lei, bem como as petições.
Algumas alterações estão previstas no Regimento da Assembleia da República e outras são definidas pela Conferência de Líderes, responsável pelos agendamentos das reuniões da Comissão Permanente, que é presidida pelo PAR e constituída pelos presidentes dos grupos parlamentares (ou seus substitutos) e deputados únicos.
Além das alterações referidas, no período de dissolução, a AR seguiu as seguintes regras de funcionamento: os deputados continuaram a apresentar requerimentos e perguntas ao governo; e as comissões parlamentares puderam reunir, exclusivamente, para a redação final de diplomas.​ 
A exceção aconteceria, mediante autorização do PAR, com as seguintes comissões:​ Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados, que pode reunir para deliberar sobre matéria relacionada com o Estatuto dos Deputados e sobre respostas a solicitações urgentes dos tribunais; e Comissão de Assuntos Europeus, em casos justificáveis.
Ao nível das Relações Internacionais, cessaram as atividades parlamentares internacionais de âmbito bilateral, salvo as  autorizadas pelo PAR, pela sua relevância, e mediante justificação e fundamentação, e as atividades ​meramente administrativas decorrentes da execução de Protocolos e Programas de Cooperação; mantiveram-se em funções as delegações às organizações parlamentares internacionais, atenta a sua relevância; e puderam ser realizadas as atividades dos grupos parlamentares de Amizade, face a compromissos assumidos ou relevantes para o bom relacionamento entre os parlamentos pertinentes.​
As atividades e eventos (na AR ou fora dela) – por exemplo, o Programa Parlamento dos Jovens – mantiveram-se, de acordo com o calendário de ações do Programa aprovado. Porém, terminou a participação dos deputados, com exceção da participação do PAR nas sessões nacionais.
Mantiveram-se as visitas guiadas de escolas e grupos, desde que solicitadas, diretamente, à Divisão de Museologia e Cidadania (DMC) da AR e não tivessem origem em grupos parlamentares ou deputados individualmente considerados.
​Cessaram as atividades culturais organizadas pela AR, com exceção das iniciativas no âmbito das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, que já estavam a ser preparadas, a saber:​
A exposição “Fala-me de Liberdade”, constituída pelas fotografias premiadas no Concurso Nacional de Fotografia organizado pela AR, em 2024, para jovens dos 15 aos 25 anos, em abril, no Centro Interpretativo – Casa do Parlamento​;
A exposição “Haverá Eleições!”, em parceria com a Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril e colaboração da Fundação Calouste Gulbenkian, com inauguração prevista para 22 de abril, nas instalações da Fundação;
A exposição de 50 originais de fotografias de Mário Cesariny, relativas a 25 e 26 de abril de 1974, em Lisboa, cuja mostra foi organizada em parceria com a Fundação Cupertino de Miranda, de abril a junho, nos Corredores do Andar Nobre do Palácio de São Bento (a data da exposição pôde ser reequacionada, em função da deliberação que a AR, quanto à Sessão Solene Comemorativa do 25 de Abril);
​A exposição “A Hora Primeira", organizada pela AR, sobre a atividade da Assembleia Constituinte: em junho, no Palácio de São Bento (Passos Perdidos ou Átrio). 
​O concerto de Rui Veloso e Orquestra Sinfónica da GNR, a 24 de maio, na Escadaria Principal do Palácio (já adjudicado); 
​Documentários em parceria com a RTP, da autoria de Jacinto Godinho;
A apresentação da peça de teatro “A Primeira Hora – de novo”, pelos Artistas Unidos, que recria o espetáculo de Jorge Silva Melo, realizado aquando do 40.º aniversário da Constituição da República Portuguesa, escrito por Jacinto Lucas Pires, em 2026.
​O Centro Interpretativo – Casa do Parlamento manteve-se em funcionamento, bem como as atividades previstas na sua programação cultural.
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A dissolução da AR consiste num ato político livre do Presidente da República que determina a cessação de funções desse órgão de soberania, antes de o mesmo completar a legislatura.
O PR, no contexto do sistema político de governo semipresidencialista consagrado pela Constituição de 1976, tem a faculdade de emitir decreto de dissolução da AR, ao abrigo da alínea e) do artigo 133.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
A dissolução não acarreta, necessariamente, a demissão do governo, mas implica a marcação de eleições parlamentares. Tratando-se de um ato livre, não deixa de estar sujeito a um conjunto de requisitos processuais, temporais e circunstanciais. Previamente à aprovação do ato de dissolução, o PR deve ouvir o Conselho de Estado e os partidos representados na AR, nos termos da alínea e) do artigo 133.º da CRP, não se encontrando juridicamente vinculado ao sentido maioritário das referidas audições.
Nos termos do n.º 1 do artigo 172.º da CRP, o PR não pode dissolver a AR: i) nos seis meses posteriores à sua eleição (neste caso, até 18 de novembro deste ano) e no último semestre do mandato presidencial (neste caso, a partir de 9 de setembro deste ano); e ii) durante a vigência do estado de sítio e do estado de emergência.
As eleições presidenciais não condicionam novas eleições legislativas, tendo o PR tomado posse, mas dissolver a AR não será um dos seus primeiros atos.
Um ato de dissolução que não observe os requisitos temporais e circunstanciais do n.º 1 do artigo 172.º da CRP é juridicamente inexistente, ou seja, não produz qualquer efeito jurídico, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, não podendo ser observado por nenhuma outra instituição da República. Sem prejuízo de se tratar de um ato livre, a prática constitucional mostra que as dissoluções ocorrem, usualmente, no contexto de uma crise política que envolve o governo e que o PR não sabe ou não quer resolver de outra maneira.
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Além dos equívocos referidos, é de sublinhar que o PR tem o direito de não gostar da campanha eleitoral, mas não pode dizer que não comentou. Com efeito, acautelou que, desta vez, não daria posse a um governo para o qual não haja garantias de fazer passar o seu programa na AR, ou seja, de não haver a aprovação de uma moção de rejeição ou de não haver a aprovação de uma moção de confiança (o programa não carece, por si, de aprovação). Tal comentário, que pode levar a permanência do atual governo em funções de gestão não é neutro, tal como não o é a mensagem presidencial do dia 17, que devia limitar-se à relevância do cumprimento do dever do voto e do exercício deste direito, em vez de constituir um apelo a que se tire o país do fundo do mar, que não é o caso.
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Na comunicação ao país, a 13 de março, a explicar a decisão de dissolver a AR, o PR falava de “crise aparentemente só política, como tantas outras”, mas vincava que “tudo começou com questões levantadas, quanto ao governo e, a seguir, ao primeiro-ministro”, “sobre atividades passadas e seus efeitos no presente”. O debate ocorreu na comunicação social e na AR, “envolvendo duas moções de censura, votadas e rejeitadas, e uma moção de confiança, votada e também rejeitada”, implicando a imediata demissão do governo, nos termos da CRP.
Segundo o PR, “o governo anunciou e apresentou a moção de confiança” e as oposições, “salvo um partido, rejeitaram essa moção, provocando a demissão do governo”, por motivo atinente “à confiança que o primeiro-ministro [PM] e, portanto, o governo mereceriam para continuar a governar”. O governo afirmava que o PM, “na sua atividade patrimonial passada e presente, havia agido sempre no respeito da lei, da legitimidade política e da ética ou moralidade”, enquanto as oposições contrapunham que “tinha havido ou podia ter havido desrespeito da lei, da legitimidade política e da ética ou moralidade”.
O PR afirmou que governo entendera que, “depois dos esclarecimentos dados, o prolongamento no tempo deste choque de juízos tornaria impossível continuar” e que “as oposições entenderam que se impunha, em face dos esclarecimentos dados, recusar a confiança, e, em última análise, recorrer ao voto popular”. Tratou-se de um choque “não apenas legal, nem político, mas, sobretudo, de juízo ético ou moral sobre uma pessoa e sua confiabilidade”. Daí resultou que, “para uns, com os factos invocados e os esclarecimentos dados, a confiança ética ou moral era óbvia”, mas, para outros, “com os mesmos factos invocados e os esclarecimentos dados, a desconfiança moral ou política é que era óbvia”.
Até parece que a responsabilidade da queda do governo foi da oposição, quando foi da inteira responsabilidade do Executivo, que provocou a AR, como que à cata de pretexto para eleições.
E dizia o chefe de Estado que “este panorama aparecia, nestes termos, pela primeira vez, na nossa democracia”, compaginando um choque “não tanto sobre políticas quanto sobre a confiabilidade, ou seja, a ética da pessoa exercendo a função de primeiro-ministro”.
O PR, embora sabendo que a decisão era da sua inteira responsabilidade, ouvido o Conselho de Estado e os partidos, escudou-se na pronúncia unânime dessas entidades consultadas, que, não desejavam este caminho, mas que o aceitaram como “imposto pela realidade”. E afirmou-se como o primeiro interessado na estabilidade e na dispensa de novas eleições, e que tudo fizera para as salvaguardar, embora não se veja como.
Porém, embora tenha proposto um itinerário de debate em que se abordasse a crise política que azou as eleições e se discutissem os grandes termas nacionais e internacionais e as propostas concretas de governação, a campanha eleitoral não o satisfez, como a muitos eleitores, já que os debates, por norma, se perderam em questões menores e em acusações mútuas. E a razão ética da crise pareceu interessar pouco ao eleitorado, em certa medida, atido aos comentadores da praça.
Resta, pois, que se realize o ato eleitoral, que não haja recursos sobre os resultados definitivos, que a nova AR tome posse, que o PR, depois (e só depois), ouça os partidos e dê posse ao governo, que o programa passe na AR e que o governo governe mesmo, sem medidas de propaganda.     
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Apesar de estas eleições serem evitáveis, votamos; e, apesar de uma tez pouco neutra das dicas presidenciais, votamos livremente, independentemente das expectativas sobre o resultado.   

2025.05.17 – Louro de Carvalho


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