terça-feira, 27 de maio de 2025

Há “sanções brandas”, em casos de violência doméstica, em Portugal

 

O Grupo de Peritos do Conselho da Europa (GREVIO) publicou, a 27 de maio, o seu primeiro relatório temático sobre Portugal, no âmbito da Convenção de Istambul.
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O GREVIO, atualmente composto por dez peritos independentes, eleitos pelos estados partes, responsável pelo controlo da aplicação da Convenção de Istambul, elabora e publica relatórios de avaliação das medidas legislativas e de outra natureza adotadas pelos estados partes, para dar cumprimento às disposições da Convenção. Pode instaurar inquéritos especiais, caso receba informação fidedigna a indicar a ocorrência de um padrão grave, massivo ou persistente de atos de violência abrangidos pela Convenção que exijam atenção imediata. E pode também adotar recomendações gerais sobre temas e sobre conceitos abrangidos pela Convenção.
O artigo 66.º da Convenção de Istambul rege a composição do GREVIO, prevendo que terá entre 10 e 15 membros, dependendo do número de estados partes.
A Convenção de Istambul é a forma abreviada por que é, comummente, conhecida a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica. Trata-se de tratado internacional, ratificado por Portugal, em 2013, que visa proteger as mulheres contra todas as formas de violência e discriminação.
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O GREVIO destaca progressos significativos, na prevenção e no combate à violência contra as mulheres, e aponta falhas persistentes, e apresenta recomendações para a melhoria do sistema.
O seu relatório elogia a evolução legislativa portuguesa, nomeadamente, a alteração da definição de violação para um modelo baseado no consentimento e a integração dos serviços de saúde, na resposta à violência, com equipas especializadas em todos os hospitais públicos, assim como destaca a criação de gabinetes de apoio à vítima junto do Ministério Público (MP) e a implementação do manual que determina que todos os elementos de prova, incluindo o depoimento da vítima, devem ser recolhidos, no prazo máximo de 72 horas, após a apresentação da denúncia, findo o qual o processo deve ser entregue ao MP.
Apesar dos avanços, o GREVIO tem o sistema judicial português como um dos principais entraves à eficaz proteção das vítimas. Com efeito, o relatório denuncia “sanções brandas e desproporcionadas, emitidas pelo poder judicial, particularmente, em casos de violência doméstica e sexual, além da persistência de atitudes patriarcais, entre magistrados e magistradas, que privilegiam, muitas vezes, a suposta ideia de unidade familiar, em detrimento da segurança das vítimas. Por outro lado, tece forte crítica à utilização da chamada síndrome de alienação parental, em processos de regulação das responsabilidades parentais, considerada cientificamente infundada e prejudicial à proteção das vítimas e dos seus filhos.
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Entre as recomendações mais urgentes, o GREVIO destaca: a formação obrigatória inicial e contínua para magistrados, sobre todas as formas de violência contra as mulheres; a revisão do sistema de ordens de proteção e de afastamento, que exige, atualmente, processo criminal em curso e pode demorar até 48 horas; a eliminação do prazo de seis a 12 meses para denúncia de crimes de violação; o acesso a casas de abrigo sem obrigatoriedade de denúncia formal; e o reforço da resposta judicial com base numa perspetiva de género e centrada na segurança das vítimas.
Para Sandra Ribeiro, presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade e Género (CIG), “o relatório GREVIO é um instrumento muito útil para a melhoria das políticas públicas de prevenção e de combate à violência doméstica”, partindo as suas recomendações “de críticas construtivas que promovem uma maior eficácia e eficiência do sistema.” 
Assim, em matéria de poder judicial, os peritos defendem que é preciso combater “as atitudes patriarcais, presentes em alguns membros do sistema judicial, que privilegiam a proteção da unidade familiar, em detrimento dos direitos das vítimas”. E salientam, por outro lado, que “a chamada síndrome de alienação parental não deve ser utilizada em processos familiares com um historial de violência doméstica”.
No atinente a serviços de apoio especializado, referem que Portugal não tem uma linha telefónica nacional dedicada às mulheres vítimas de todas as formas de violência que funcione 24 horas, por dia, sete dias por semana, “o que representa uma lacuna significativa na aplicação da Convenção”.
O relatório aponta que são necessárias mais vagas para famílias em casas de abrigo, visto que os requisitos da Convenção apontam para “um lugar para uma família, por cada 10 mil habitantes”, e que “é preciso aumentar a disponibilidade global dos serviços de apoio especializado, a médio e longo prazo, para as mulheres vítimas”.
Por conseguinte, o grupo de peritos pede às autoridades que eliminem o requisito que condiciona o acesso a uma casa de abrigo à denúncia por violência e a suprimirem, “sem demora”, a imposição de a violação ter de ser denunciada às autoridades, no prazo de seis a doze meses após o crime “como condição prévia para a abertura de um inquérito”.
O GREVIO considera também que é urgente rever os sistemas de proibição de emergência e de ordens de proteção”, já que, atualmente, as ordens de proibição de emergência demoram 48 horas a ser obtidas e só podem ser emitidas por um juiz, no âmbito de um processo penal em curso, entendendo os peritos que isso “não oferece proteção imediata às vítimas”.
Na avaliação das medidas implementadas desde 2019, o GREVIO reconhece que Portugal fez “esforços notáveis, a longo prazo, investindo em diferentes setores”.
“O GREVIO congratula-se com várias reformas do direito penal, nomeadamente, a adoção de uma definição de violação baseada no consentimento”, refere o relatório, no qual o grupo de peritos “elogia os esforços bem-sucedidos das autoridades”, na área da saúde, nomeadamente com as equipas de prevenção da violência contra adultos, existentes em todos os hospitais e centros de saúde do país, tal como “elogia as medidas de sensibilização para o problema da mutilação genital feminina” e “nota o efeito positivo na confiança das vítimas trazido pelos gabinetes de apoio às vítimas integrados no trabalho dos gabinetes do Ministério Público”.
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A este respeito, Roberto Bessa Moreira, sob o título “Magistrados ‘patriarcais’ optam pela união familiar em vez das vítimas de violência”, escreveu, no Jornal de Notícias (JN), destacando que “especialistas do Conselho da Europa no combate à violência sobre mulheres exigem mais e melhores decisões a procuradores e juízes portugueses” e que denunciam que, “quando um caso [de violência doméstica] vai a julgamento, as sentenças tendem a ser demasiado brandas e frequentemente suspensas”.
Sustentando que “muitos magistrados portugueses demonstram ‘atitudes patriarcais persistentes’, que os levam a preferir a unidade da família aos direitos das mulheres vítimas de violência, o jornalista considera que “há juízes sem ‘consciência do impacto’ da violência doméstica nas crianças e procuradores que não são proativos, na procura de prova, em casos de agressões em contexto familiar”, pelo que “a maioria dos processos de violência contra mulheres acaba sem julgamento ou com condenações a penas suspensas”.
Segundo a pena do jornalista, o grupo de especialistas do Conselho da Europa que analisou o panorama português e que publicou o relatório final refere que “Portugal fez significativos progressos na adoção de medidas para combater a violência contra as mulheres”, mas aponta, negativamente, a “tendência generalizada entre o poder judicial de atribuir grande importância à proteção da família como um todo, incluindo as famílias marcadas pela violência, em detrimento dos direitos e dos interesses das mulheres vítimas e dos seus filhos”, e atribui essa “tendência prejudicial” a “atitudes patriarcais persistentes entre alguns membros do sistema judicial, o que tem consequências negativas para as vítimas de violência”.
Aliás, em meu entender, em casos de combate à violência, doméstica ou outra, algumas normas do Direito, pela sua urgência, pela sua agilidade e pela sua eficácia, em termos humanitários, têm de prevalecer sobre outras que privilegiam a espera, o cumprimento de prazos dilatados e até algum adiamento.   
Bessa Moreira, na sua peça jornalística, dá conta de que, em extensa análise, “após uma visita de cinco dias a Portugal”, os técnicos do Conselho da Europa, avisam que os procuradores “têm tendência para promover a suspensão dos processos penais contra os autores dos crimes, o que resulta na ausência de condenação”. Por outro lado, “quando um caso vai a julgamento, as sentenças tendem a ser demasiado brandas e frequentemente suspensas”, tendências que “resultam, em parte, da crença generalizada, entre estes profissionais, de que a unidade das famílias deve ser protegida, como uma questão prioritária”.
Ora, em primeiro lugar, está a proteção das vítimas, muitas das quais têm muita dificuldade em se assumirem como vítimas: “Primum, vivere!”
Segundo o jornalista, os números parecem dar razão os especialistas do GREVIO, pois, “em 2021, foram registadas 26520 denúncias pelas forças policiais”, enquanto o MP apresentou acusações, em apenas 3941 casos” e “o número de condenações por violência doméstica que resultam em penas de prisão efetiva está a diminuir e é inferior a 10%”. Além disso, os especialistas referem, “com preocupação, que algumas vítimas são pressionadas a aceitar a suspensão do processo, dado que pode ser uma ferramenta eficiente para o sistema judicial dispensar um elevado número de processos sem ir a julgamento”.
O GREVIO, no dizer do analista do relatório, enfatiza que “a necessidade da formação de juízes e procuradores torna-se ainda mais evidente”, porquanto há “tribunais [de família e menores] que desconhecem a existência de medidas de afastamento ou ordens de proteção emitidas” noutros processos. Nesses tribunais, “a decisão predominante é a guarda partilhada entre os pais, mesmo em casos com histórico de violência”, de modo que, ao serem apresentados indícios de violência, “os juízes argumentam que é do melhor interesse da criança manter uma relação com o progenitor agressor – chegando a considerar que esses interesses podem prevalecer sobre os possíveis riscos para a segurança da criança”. Ora, é caso para questionar se tais juízes, quando eram crianças, gostavam de conviver com um agressor, porque a família está acima de tudo.
Os autores do relatório não duvidam de que, “nos tribunais portugueses, as mulheres que sofrem de violência são retratadas como manipuladoras, superprotetoras ou ciumentas” e “acusadas de instrumentalizar os filhos contra o pai (abusivo)” – um quadro mental que influencia “o raciocínio judicial, [os] pareceres psicológicos e de outros peritos, e [as] decisões judiciais em todas as instâncias”. E sublinham que “a relutância dos tribunais de família e menores em restringir [ao agressor] os direitos parentais em casos de violência também se deve, em parte, a esse fenómeno”.
Bessa Moreira chama a atenção para o facto de o relatório frisar que, “embora a lei permita dispensar a tentativa de conciliação nos processos de divórcio em que tenha havido violência”, as vítimas “continuam a ser obrigadas a estar na presença do agressor”, mercê “da falta de coordenação e de troca de informações entre os tribunais de família e o sistema de justiça penal”.
O GREVIO sustenta que “o mesmo sucede na conferência parental para definir a custódia e os direitos parentais sobre as crianças envolvidas num processo de separação”. E, como criticam os autores do documento, “se uma das partes, incluindo o progenitor não abusivo, não comparecer – por razões de segurança ou por receio de não poder negociar, em pé de igualdade, com o ex-cônjuge abusivo –, o tribunal pode adiar a audiência e decidir sobre um regime temporário de custódia, e a sua ausência contará contra si, levando a uma perda (temporária) da custódia.”
Contudo, segundo o GREVIO, “os problemas não são só nos tribunais”, pois, “as organizações não-governamentais dedicadas a esta temática, não têm financiamento que cubra todas as despesas e permanecem afastadas do processo de decisão política”, como também “as escolas continuam a poder escolher não lecionar, na disciplina de Cidadania, matérias relacionadas com a igualdade entre mulher e homem.”
O JN apensa ao trabalho de Bessa Moreira uma nota sobre um caso de “arquivamento em prol da paz social e familiar”, que “está em análise no MP”. Trata-se do caso da mulher do presidente da Câmara Municipal de Vizela, que foi ao Hospital de Guimarães, em fevereiro, tendo-lhe sido diagnosticada “uma fratura no nariz, entre outras lesões”, e tendo a Polícia de Segurança Pública (PSP) recebido “queixa por violência doméstica”.
Perante a suspeita de violência doméstica do autarca, o Partido Socialista (PS) retirou-lhe o apoio à recandidatura autárquica, pelo que “renunciou à liderança da Distrital do PS/Braga”. Porém, a mulher, já perante o MP, “não quis depor”. Por isso, a procuradora titular do inquérito optou pelo arquivamento, justificando com a “inexistência de indícios do crime de violência doméstica” e com o objetivo “de se assegurar a paz social e a tranquilidade no seio da família”.
Não obstante, a 23 de maio, o procurador-geral, Amadeu Guerra, admitiu que o inquérito poderá ser reaberto e, no dia 26, o presidente do PS, Carlos César, decidiu manter a retirada de apoio à recandidatura autárquica.
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Em suma, o GREVIO, na leitura do jornalista, destaca a “persistente falta de consciência, por parte dos juízes dos tribunais de família e menores, sobre o impacto negativo que a exposição à violência, perpetrada por um dos pais contra o outro, causa nas crianças”; e o desconhecimento, frequente, por parte dos juízes, do facto de que “o exercício da guarda partilhada pode ser um meio para o agressor de violência doméstica continuar a exercer controlo e dominação sobre a mãe e os filhos e que os processos em tribunal podem servir para novas ameaças”.
A nível estatístico, regista-se que foram decretadas, em primeira instância, 141 penas de prisão,  contra 1569 penas de prisão suspensas, por violência contra mulheres, em 2021; que “2482 agressores frequentavam, no segundo trimestre de 2024, programas de reabilitação”, mostrando o GREVIO “preocupação com o facto de os programas serem usados como alternativa às condenações”; que foram registados, em 2024, segundo o Relatório Anual de Segurança Interna
(RASI) 30221 casos de violência doméstica; que 67,9% das vítimas de violência doméstica identificadas, em 2024, eram mulheres, sendo homens mais de 78% dos agressores; e que, no final de 2024, estavam presos 1019 condenados por violência doméstica.
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Queremos a Justiça que respeite os direitos dos arguidos, mas que nunca olvide o sagrado dever de proteção das vítimas, nem aceite, pacificamente, que elas não possam assumir-se como vítimas. E queremos a Justiça que saiba, em cada caso, aplicar o Direito.

2025.05.27 – Louro de Carvalho


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