Em Portugal, há dois líderes partidários concorrentes às eleições legislativas de 18 de maio – prevendo-se que um deles (em princípio, aquele cujo partido ganhe as eleições ou aquele que seja capaz de conseguir uma maioria parlamentar) venha a ser nomeado primeiro-ministro (PM) – que são alvo de averiguações preventivas motivadas por denúncias anónimas. E a questão que se levanta é se a denúncia anónima poder ter influência na campanha eleitoral.
Do meu ponto de vista, a denúncia (anónima ou subscrita) de ato suscetível de configurar crime ou outra situação ilegal ou irregular influencia a campanha eleitoral, como influencia a governação. Pode não ser determinante a sua influência, mas levanta, pelo menos, uma onda de poeira. Em campanha eleitoral, mina o debate, evitando a discussão dos grandes temas de interesse para o povo e aproximando-se do auto de fé psicossocial, e, na governação, constitui capitis diminutio do governante ou, mesmo, de todo o elenco governativo.
Isso não acontece por ser anónima ou por não o ser. Bem sabemos como são demolidoras as denúncias chegadas à ribalta pública a partir do anonimato, de jornal ou de revista, de reportagem televisiva ou de declaração proferida por indivíduo visado em inquérito.
A denúncia anónima, ainda que necessária ou conveniente, funciona como pau de dois bicos: por um lado, significa a cooperação no combate ao crime; por outro, se protege o denunciante contra eventuais represálias, pode ocasionar cobardia da parte do denunciante ou até ajuste de contas e vingança contra o denunciado.
Dois líderes partidários, em plena campanha eleitoral, são alvo de averiguação preventiva, por denúncia anónima. No caso de Luís Montenegro, do Partido Social Democrata (PSD) e da Aliança Democrática (AD) está em causa a violação da exclusividade de funções, enquanto a averiguação de Pedro Nuno dos Santos, do Partido Socialista (PS) tem a ver com a aquisição de dois imóveis.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) tem, desde 2010, um canal de denúncias aberto. Paulo Lona, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMP), admite que há a perceção de que o volume de queixas aumenta em períodos eleitorais. “Há uma perceção de que isso acontece de facto, há uma perceção pública que é transmitida também pela comunicação social, por quem faz comentário, de que haverá um maior número de denúncias anónimas em períodos pré eleitorais”, comenta o dirigente sindical.
Nas últimas semanas, o MP tem sido criticado por ter avançado com averiguações em pré-campanha eleitoral. Para Paulo Lona, o trabalho do MP não pode parar em período eleitoral, pelo que, na sua ótica, é normal a abertura daquelas. “Se olharmos para o calendário vamos ter três eleições: eleições legislativas, eleições autárquicas e eleições presidenciais […]. Portanto, a atividade do Ministério Público não pode parar, só porque estamos num período pré-eleitoral ou eleitoral”, refere Paulo Lona, segundo o qual não há violação de um dever de reserva com a divulgação destas averiguações preventivas, até porque os factos eram públicos.
Além disso, segundo o dirigente sindical, “quando dá entrada uma denúncia anónima no portal da PGR, o denunciante fica com o registo, quer do número da denúncia, quer dos factos, e com grande facilidade vai enviar para a redação de um jornal. E, se a seguir vierem perguntar à PGR se essa denúncia existe e o que aconteceu, a PGR não vai negar a existência disso”, argumenta.
Em meu entender, há violação do dever de reserva, porque as denúncias em causa não constituem novidade em si. A polémica em torno delas já existia antes das eleições. O que há de novo são alguns pormenores que podem ser relevantes. Portanto, o MP deveria ter feito investigação antes da campanha eleitoral ou esperar pelo resultado das eleições.
O MP não tem de parar, mas também não lhe cabe a obrigação de revelar, em cima do acontecimento, tudo o que anda a fazer. A este respeito, vem-me à memória o caso que se passou com o Novo Banco (NB) sobre uma situação de gestão ruinosa ou fraudulenta. O NB e o MP souberam manter a discrição até à decisão de exoneração do administrador em causa.
Depois, em tempo em que se fala tanto em separação de poderes e em cooperação entre os mesmos, o MP deve evitar perturbar, a esmo, as opções políticas, a governação e as ações que levam à governação. Que diria o MP se o Presidente da República, membros do governo ou do Parlamento viessem para a comunicação social verberar um magistrado em concreto?
Por isso, o MP deve agir, mas, para a gestão dos casos em termos públicos, nem todo o tempo é recomendável. O que se está a passar leva à perceção de que o MP tem agenda política.
Neste sentido, o advogado Paulo Saragoça da Matta admite que haja motivações políticas, por trás das denúncias, e acredita que a sua divulgação, em períodos eleitorais, pode ter impacto na perceção que os eleitores têm dos candidatos. “Quando se utiliza, seja o inquérito criminal, seja a averiguação preventiva como informação pública, principalmente, numa campanha eleitoral, estamos a manipular a própria massa eleitoral, o próprio colégio eleitoral. Estamos a lançar essa suspeita, que é sempre mais ou menos forte, e muitos dos cidadãos vão ser sensíveis à existência da averiguação preventiva”, sublinha o penalista, segundo o qual há o problema de cada um dos contendores políticos utilizar o conhecimento público de que há averiguação preventiva para atacar o outro contendor, o que faz da investigação criminal arma de arremesso político.
A maioria das queixas apresentadas no portal da PGR é arquivada. Em 2023, houve duas mil denúncias, tendo 56% destas sido apresentadas por anónimos e só 14% deram lugar a inquérito.
Em 2021, foram apresentadas 1694 denúncias; instaurados 207 inquéritos e 7 averiguações preventivas; remetidas a outras entidades 632 denúncias; e arquivadas, após análise, 907 denúncias. Houve 1043 denunciantes anónimos e 651 denunciantes identificados.
Em 2022, foram apresentadas 1482 denúncias; instaurados 141 inquéritos e 12 averiguações preventivas; remetidas a outras entidades 735 denúncias; e arquivadas, após análise, 921 denúncias. Houve 909 denunciantes anónimos e 573 denunciantes identificados.
Em 2023, foram apresentadas 1910 denúncias; instaurados 194 inquéritos; remetidas a outras entidades 880 denúncias; e arquivadas, após análise, 842 denúncias. Houve 1086 denunciantes anónimos e 824 denunciantes identificados.
Estes dados revelam que a maioria das denúncias não tem fundamento ou indícios suficientes para dar origem a investigação criminal. “O grosso das denúncias são coisas absolutamente infundadas, absolutamente motivadas, diria eu, por sentimentos psicologicamente justificáveis, mas eticamente reprováveis. E mostra também a fragilidade do depoimento de um delator”, aponta Saragoça da Matta.
No que toca ao objeto ou visado da denúncia, em 2023, a grande maioria (45,2%) pertence ao setor privado, seguido do setor público, com 33,2%. Segue-se o setor desportivo, com 7,2%, depois o comércio internacional e, por último, setores não especificados.
Assim, em 2023, do setor público houve 634 denúncias; do setor privado, 864; do setor desportivo, 69; do comércio internacional, 29; e não especificado, 304. Ao todo, 1910.
Já o número de denunciantes anónimos supera em qualquer um dos três anos em análise o número de denunciantes identificados.
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É
natural que o volume de denúncias anónimas tenha crescido. Com efeito, a Lei
n.º 93/2021, de 20 de dezembro, que entrou em vigor 180 dias após a sua publicação, estabelece o regime
geral de proteção de denunciantes de infrações, transpondo a Diretiva (UE)
2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019,
relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União.Estão neste caso, os trabalhadores dos setores privado, social ou público; os prestadores de serviços, os contratantes, os subcontratantes e os fornecedores, bem como quaisquer pessoas que atuem sob a sua supervisão e direção; os titulares de participações sociais e as pessoas pertencentes a órgãos de administração ou de gestão ou a órgãos fiscais ou de supervisão de pessoas coletivas, incluindo membros não executivos; os voluntários e os estagiários, remunerados ou não. Não obsta à consideração de uma pessoa como denunciante a circunstância de a denúncia ou de a divulgação pública da infração ter por fundamento informações obtidas em relação profissional entretanto cessada, no processo de recrutamento ou noutra fase de negociação pré-contratual de relação profissional constituída ou não constituída.
Segundo a lei, o denunciante de boa-fé beneficia de proteção, se tiver sério fundamento para crer na seriedade da informação e que esta indicie infração.
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A ideia de
base da denúncia é simples: para o MP desencadear um processo criminal, precisa
de saber que foi praticado um crime. Por isso, quem tiver notícia de crime pode
denunciá-lo ao MP, a outra autoridade judiciária ou aos órgãos de polícia
criminal. A exceção pode ser o caso em que o crime depende de queixa, como a
ameaça (crime semipúblico), ou de acusação particular, como a difamação (crime
particular). Obtida a denúncia, o MP está em condições de ordenar a abertura de
inquérito. Os magistrados adotam um conjunto de diligências para investigar a
existência de crime, determinar quem o cometeu e recolher provas, com vista a
decidir sobre a acusação.De acordo com os números divulgados pelo MP, cerca de 75% dos inquéritos são arquivados. As causas são diversas: inexistência de crime, desistência de queixa por parte do ofendido (não em caso de crime público) e recolha de prova inconclusiva. É possível a denúncia não ter resultado. Mas o denunciante deve estar convicto de que a fez para o seu bem e da comunidade.
Para denunciar um crime, não temos de saber qual é o tipo de crime em causa, nem a identidade do autor. Não se requer a constituição de advogado, nem se paga nada. Mas há situações em que a denúncia é obrigatória. Qualquer funcionário de serviço público ou equiparado que tenha conhecimento de crime, no âmbito do exercício das suas funções ou por causa delas, tem a obrigação de os denunciar, mesmo que os agentes do crime não sejam conhecidos. Também nestes casos, o denunciante tem direito ao anonimato, a garantias de transferência, se pedida, e a proteção contra eventuais sanções disciplinares, mas, se assumir a sua identidade, estará, igualmente, protegido pela lei. Outros casos em que a denúncia é obrigatória têm a ver com a segurança de menor, nomeadamente, algo que lhe ponha em causa a vida, o bem-estar ou a liberdade.
É natural que se hesite antes de fazer a denúncia, a qual pode trazer consequências. Algumas são bastante perigosas: se testemunharmos tráfico de estupefacientes ou atividades de associação criminosa, podemos estar em risco, mesmo sabendo que o anonimato é garantido. Ter medo de represálias, nestes casos, é humano, tal como ter vergonha, como na denúncia de violência doméstica, de violência sexual ou de crimes relacionados com estes.
Outro fator de inibição é o receio de as autoridades não fazerem fazer nada, no imediato. Crimes cujas provas são morosas ou difíceis de obter, como a corrupção ou a negligência médica, podem ser exemplos de processos complexos.
Apesar da variedade de crimes passíveis de denúncia que abrange, a lei ficou-se pelos mínimos. Só atinge as violações do direito comunitário, quando deveria abarcar todas as violações da lei, nacionais ou comunitárias. E só está protegido quem denuncie infrações com fundamento em informações obtidas no âmbito da sua atividade profissional, independentemente da natureza da atividade e do setor. Por isso, todos os que denunciem crimes fora da sua atividade profissional ficam excluídos de proteção especial, o que é inaceitável.
As denúncias anónimas não devem, por si só, ser premiadas, mas as que são fundadas e conscientes devem ser acolhidas e protegidas. Isso é mesmo um dever do Estado.
A denúncia pode ser feita ao MP, à Polícia Judiciária (PJ), à Polícia de Segurança Pública (PSP) ou à Guarda Nacional Republicana (GNR). Em situações de urgência, é mais simples contactar o 112. A PJ disponibiliza, online, um link direto para denúncia anónima. Para branqueamento ou financiamento de terrorismo, em alternativa, pode-se recorrer a e-mail específico. Pode aceder-se ao site da PSP. E, para contactar a GNR, é de consultar a sua lista de contactos.
Certos tipos de crimes, como o auxílio à imigração ilegal, podem ser denunciados à Agência para a Integração Migrações e Asilo (AIMA). Outros, como os crimes sexuais, podem ser remetidos às delegações do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, aos gabinetes médico-legais e aos hospitais onde haja peritos médico-legais.
As autoridades devem receber toda a denúncia apresentada, ainda que o crime não tenha sido cometido na sua área territorial ou não seja da sua competência, e dar-lhe seguimento.
Em caso de denúncia anónima, só há lugar a inquérito, se dela se retirarem indícios sérios e objetivos da prática de crime. Caso contrário, as autoridades arquivam-na.
Para fazer uma denúncia, é preciso recolher a informação conexa com a ocorrência, como a identidade e as caraterísticas dos eventuais suspeitos, e os meios utilizados; registar o dia, a hora, o local e as circunstâncias, de forma tão precisa quanto possível, identificando, se possível, o(s) suspeito(s) (se se souber) e as testemunhas (se houver) e outros meios de prova; deixar intacto o local onde poderá ter ocorrido o crime; ter em posse os vários elementos que confirmam o crime, e preservá-los, o que pode servir para a proteção, em última análise, do próprio denunciante, e para sustentar os factos comunicados às autoridades.
A denúncia é um ato de cidadania. Por isso, não pode ser usada para incriminar alguém injustamente, ou por acerto de contas, por vingança ou por despeito. A lei criminaliza as denúncias caluniosas, porque o visado não cometeu a infração, porque esta não ocorreu ou porque o visado não figurava entre os participantes do crime, se ele tiver ocorrido.
Assim, quem denunciar alguém injustamente sujeita-se a procedimento criminal e a prisão até três anos ou a pena de multa. Se o meio utilizado apresentar, alterar ou desvirtuar o meio de prova, a prisão pode ir até cinco anos. Se daí resultar mesmo a privação de liberdade do ofendido, o falso denunciante pode ser punido com pena de prisão de um a oito anos.
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A denúncia é
ato moral e cívico, havendo casos em que é obrigação legal. Porém, nunca deve
ser usada como arma de arremesso político-partidário, embora o líder político
deva questionar-se e ser questionado sobre se tem condições para liderar e/ou
para governar.
2025.05.09 – Louro de Carvalho
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