Em carta
aberta, preparada pelas primeiras-ministras italiana, Giorgia Meloni, e
dinamarquesa, Mette Frederiksen, e publicada
a 23 de maio, nove governos europeus – da Áustria,
da Bélgica, da Chéquia, da Dinamarca, da Estónia, da Itália, da Letónia, da Lituânia e da Polónia – afirmam ser “necessário iniciar um debate sobre a forma como as
convenções internacionais respondem aos desafios que enfrentamos atualmente”.
Ou seja, apelando a uma “conversa aberta”
sobre a interpretação da convenção, defendem que os países signatários da
convenção devem ter mais espaço para decidir quando expulsar criminosos
estrangeiros e para os monitorizar em situações em que não podem ser
deportados: “O que antes era certo pode não ser a resposta para o futuro”, lê-se
na carta.
O texto dirige-se ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), ramo do
Conselho da Europa – também com sede em Estrasburgo, no Leste de França –
responsável por garantir que a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) é
respeitada nos países signatários.
Em síntese, os nove Estados querem saber se o TEDH, em certos casos,
alargou demasiado o âmbito de aplicação da CEDH, em relação às suas intenções
iniciais, e pretendem a sua restrição, invocando novos desafios.
Em resposta, o secretário-geral
do Conselho da Europa, Alain Berset, escrevendo que “o debate é saudável”, mas
que “o tribunal não deve ser politizado”, rejeitou qualquer enfraquecimento da
CEDH, um dia depois de nove Estados, liderados pela Itália, terem apelado à
reinterpretação do texto em relação à migração. “Perante os desafios complexos do nosso tempo, o nosso papel não é
enfraquecer a Convenção, mas, pelo contrário, mantê-la forte e relevante”,
afirmou, em comunicado de imprensa, o secretário-geral do Conselho da Europa,
que, com 46 países membros, é o guardião da democracia e dos direitos humanos
no Velho Continente.
“A manutenção da independência e da imparcialidade do tribunal é
fundamental”, disse Alain Berset, para concluir: “Num Estado de direito,
a justiça não deve estar sujeita a pressões políticas […] O tribunal não deve
ser utilizado como uma arma, nem contra os governos nem por eles.”
Assim, o principal
órgão de direitos humanos da Europa criticou nove governos europeus por pedirem
a reformulação da interpretação da CEDH, em questões conexas com as migrações e
manifestou-se contra a tentativa de politização
do TEDH, por parte de nove líderes europeus.
Já na semana anterior, Giorgia Meloni considerou que o principal
problema era que os países estavam proibidos de expulsar “cidadãos imigrantes
que cometeram crimes graves”. Porém, a 24 de maio, o secretário-geral do
Conselho da Europa desafiou os governos a questionarem a aplicação da
convenção: “O debate é saudável, mas politizar o tribunal não. Nenhum órgão
judiciário deve sofrer pressão política. Instituições que protegem direitos
fundamentais não podem curvar-se aos ciclos políticos. Se o fizermos corremos,
o risco de corroer a própria estabilidade com que foram construídas para se garantirem”,
vincou Alain Berset,
acrescentando que o TEDH é o único tribunal
internacional a julgar violações de direitos humanos praticados pela Rússia na
Ucrânia e que “isso jamais deve ser questionado”.
***
O Conselho da Europa foi constituído, em 1949, durante o período de
reconciliação do pós-guerra e é independente da União Europeia (UE). Conta,
atualmente, com 46 países-membros signatários da CEDH. O TEDH tem sede em
Estrasburgo e determina se as obrigações da convenção estão a ser cumpridas. Na
última década, foram dezenas os casos de estados-membros condenados por não
terem garantido os direitos humanos de migrantes.
Não obstante, os governos signatários da carta em referência têm apoiado
iniciativas similares para reforçar a política migratória da UE. Em outubro, a
Itália, a Dinamarca e a Holanda organizaram uma reunião informal de 11 países
que resultou na aprovação de centros de retorno, para processar o retorno de
migrantes cujo asilo foi negado, Porém, ainda nenhum país europeu criou um
destes centros e não está claro que países poderão sediar as instalações.
***
Por seu turno, UE porfia que
o “empenhamento na promoção e na proteção dos
direitos humanos, da democracia e do Estado de direito faz parte dos valores
fundadores da UE”, como se lê na comunicação da Comissão Europeia ao Parlamento Europeu (PE) e ao Conselho
Europeu, ao apresentar o plano de ação da UE para os direitos humanos e para a
democracia, em 2020-2024.
Que a UE tem interesse estratégico
em desempenhar papel primordial a nível mundial, em matéria de
direitos humanos e de democracia, para trazer benefícios tangíveis às pessoas em
todo o Mundo, é visível no trabalho feito: desde a adoção do quadro estratégico
da UE para os direitos humanos e a democracia, em 2012, os dois primeiros
planos de ação da UE para os direitos humanos e a democracia (2012-2014 e
2015-2019), a nomeação do primeiro Representante Especial da UE para os
Direitos Humanos (REUE), em 2012, e as conclusões do Conselho de 2019 sobre
democracia. Além disso, a UE tornou-se mais coordenada, mais ativa, mais
visível e mais eficaz nas relações e no diálogo com países terceiros, “ocupando
um lugar de maior destaque, a nível multilateral”.
A UE, que vem defendendo, com determinação, os
direitos humanos e a democracia, sustenta que o quadro geopolítico em mutação, com
novas rivalidades, serve para vincar a defesa da ordem multilateral assente em
regras. Porém, reconhece que o quadro global dos direitos humanos e da democracia
é díspar: apesar de grandes progressos, está em retrocesso a universalidade e a
indivisibilidade dos direitos humanos e a democracia. No plano tecnológico, evoluímos
para novo paradigma, em que as capacidades humanas são reforçadas pelas máquinas.
As novas tecnologias, em especial, a inteligência artificial (IA) estão na
linha da frente, suscitando oportunidades e ameaças. E os direitos humanos
estão, cada vez mais, interligados com os desafios ambientais que se colocam à
escala mundial, como as alterações climáticas. Por conseguinte, a UE apresentou
nova agenda geopolítica sobre os direitos humanos e a democracia.
Assim, o plano de ação para os direitos humanos e a
democracia, para 2020-2024, definia as ambições e as prioridades para os cinco anos
subsequentes, no domínio das relações externas, contribuindo para o reforço do
papel da Europa no Mundo. Nestes termos,
propunha-se: reforçar a liderança da UE na promoção e na proteção
dos direitos humanos e da democracia no Mundo; definir as ambições da
UE, identificando as prioridades e centrando-se na aplicação, considerando
o contexto geopolítico, a transição digital, os desafios ambientais e as
alterações climáticas; maximizar o papel da UE na cena mundial, alargando
o conjunto de ferramentas de que dispõe para promover os direitos humanos,
bem como os seus instrumentos e as suas políticas fundamentais neste âmbito; e incentivar uma
UE unida e coesa, promovendo uma ação mais eficiente e coerente.
Dizia a UE ter agido, ao longo dos últimos anos, “de
forma mais estratégica”, e utilizado, “mais eficazmente, o seu peso político e
o conjunto de instrumentos de que dispõe, a favor dos direitos humanos, para
combater as suas violações e para promover sociedades democráticas, resilientes
e pacíficas, bem como “para alcançar progressos significativos, em
países e em regiões em que os direitos humanos estavam a ser postos em causa”,
através de “colaboração inovadora e de investimento nos direitos económicos e
sociais” e de “forte apoio político e financeiro” à proteção e à capacitação dos
defensores dos direitos humanos, da sociedade civil e dos profissionais dos
meios de comunicação social. Contudo, assinala a persistência de muitos
desafios: os direitos humanos e a democracia estão em causa em muitos países; as
liberdades fundamentais (liberdade de expressão ou de reunião e liberdade dos
meios de comunicação social” estão sob crescente ameaça; e os esforços
sistémicos para minar o Estado de direito, para restringir o espaço cívico e
político e para enfraquecer a ordem multilateral assente em regras têm
sido exacerbados pelo retrocesso de parceiros tradicionais da UE, no atinente à
promoção ativa e à defesa dos direitos humanos e dos valores democráticos.
Por conseguinte, reduz-se o espaço da sociedade civil;
enfraquece-se o Estado de direito; crescem as ameaças à integridade das
eleições e aos processos democráticos; aumenta a intimidação de jornalistas e a
ameaças aos meios de comunicação social independentes; cresce a violência e a
intimidação dos defensores dos direitos humanos; generaliza-se a impunidade das violações dos
direitos humanos e os ataques ao Tribunal Penal Internacional (TPI); viola-se o
direito internacional humanitário em conflitos armados; campeia a violência
doméstica; cresce a oposição aos direitos das
mulheres e à igualdade de género; e persistem os abusos laborais, incluindo o
trabalho infantil.
A transição para a era digital suscita desafios
e oportunidades. As tecnologias digitais promovem os direitos humanos e a
democratização, facilitando a participação do público, permitindo acompanhar e
documentar as violações e os abusos, apoiando a emergência do ativismo em
linha, a sensibilização e o acesso à informação, e facilitam a inclusão
económica e social e o acesso a serviços públicos de qualidade. Todavia, podem apoiar
restrições abusivas e ilícitas às liberdades de circulação e de expressão, propagar
a desinformação e o discurso do ódio, que podem violar a privacidade e
comprometer a democracia e os direitos humanos. A utilização abusiva das novas
tecnologias, incluindo a IA, comporta o risco de monitorização, controlo e
repressão maiores. Em alguns países, é realidade a vigilância, em larga, escala
dos cidadãos e a discriminação de indivíduos e de grupos, reforçando os
preconceitos societais.
A ligação entre os desafios ambientais globais (como
degradação ambiental, poluição e alterações climáticas) e os direitos humanos é
cada vez mais patente. Os jovens fazem ouvir a sua voz. A sociedade civil e os
defensores do ambiente desempenham papel fundamental, “ao denunciarem as
violações dos direitos humanos e ao exigirem medidas para proteger o planeta e
o clima”. Com efeito, os efeitos negativos da degradação ambiental e das
alterações climáticas ameaçam direitos, como a saúde, a alimentação, a água, a educação
para todos e até avida, podendo “multiplicar os desafios que se levantam neste
domínio”.
Os conflitos e a instabilidade ameaçam os meios de
subsistência de milhões de pessoas, em todo o Mundo e o Mundo assiste à “deslocação
forçada das pessoas a um nível sem precedentes”, pelo que, segundo a UE, “investir
nos direitos humanos, na democracia e no Estado de direito é a melhor maneira
de impedir que as sociedades entrem em crise”, pois as crises trazem desafios
especiais ao exercício à proteção dos direitos humanos e, além de comprometerem
o funcionamento das democracias e de demonstrarem “a necessidade imperativa de
uma ação concertada e de solidariedade a nível mundial”.
Tal implica, segundo a UE, empenhamento precoce no
combate à violação dos direitos humanos e no apoio à democracia, nomeadamente,
pela mediação e pela prevenção da violência eleitoral. A tónica renovada nos
direitos humanos e na democracia fomenta a resiliência do Estado e da
sociedade, sendo possível “garantir maior segurança”, quando são assegurados os
direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais, visto que não há
segurança sustentável sem direitos humanos para todos. E isso implica garantir
a responsabilização e lutar contra a impunidade.
Os objetivos da Agenda 2030 e do Desenvolvimento
Sustentável das Nações Unidas constituem oportunidade extraordinária para
assegurar que a importância atribuída à inclusão contribua para a promoção dos
direitos humanos e da democracia, em todo o Mundo. O compromisso “não deixar
ninguém para trás” exige o reforço dos direitos humanos de todos, sem discriminação.
Com a crescente desigualdade e com o enraizar político das diferenças
económicas, os desafios são maiores do que nunca. E o plano de ação em vigor define as ambições da UE e identifica as
prioridades de ação em torno de cinco eixos de ação interligados, que
se reforçam mutuamente: proteger e capacitar as
pessoas; fazer sociedades resilientes, inclusivas e
democráticas; erigir um sistema global dos direitos
humanos e da democracia; aproveitar as oportunidades e enfrentar os desafios
das tecnologias; e obter resultados, mediante a
colaboração entre todos.
Para tanto, a UE propôs-se mobilizar “o vasto
leque de políticas e instrumentos de que dispõe para promover e defender
os direitos humanos, a democracia e o Estado de direito”, como as campanhas de
comunicação, a diplomacia pública, as declarações da UE, as resoluções
temáticas e específicas, por país, em instâncias multilaterais sobre direitos
humanos, e os instrumentos de diplomacia mais discreta (como diligências,
diálogos políticos e diálogos regulares sobre os direitos humanos), bem como o
diálogo sobre as políticas setoriais. De facto, a comunicação sobre os direitos humanos é da máxima importância
e, embora seja necessário denunciar as violações dos direitos humanos, “é
essencial um discurso positivo sobre o tema dos direitos humanos”.
A UE propôs-se intensificar os esforços para integrar
a proteção dos direitos humanos, da democracia e do Estado de direito, em todos
os domínios da ação externa, por exemplo, reforçando as sinergias entre as políticas
comerciais e no domínio dos direitos humanos, com base no trabalho feito no
contexto dos acordos da UE, em matéria de preferências comerciais, e integrando
os direitos humanos em todas as políticas internas, especialmente, nos domínios
prioritários do Pacto Ecológico, como o ambiente, e no âmbito da migração e da
segurança.
Paralelamente, a UE procura ser “um interveniente
mais rápido e mais eficaz em matéria de direitos humanos, a nível de cada
país, onde esta intervenção assume uma maior importância”. E continua a ter a
sociedade civil como “parceiro fundamental, para assegurar a realização de
mudanças sustentáveis e para acompanhar e analisar os progressos registados”.
Toda a sua estratégia exige uma abordagem coesa,
nomeadamente, com os estados-membros, para garantir maior coerência e impacto
da intervenção da UE, a todos os níveis e no âmbito de todos os instrumentos e
políticas.
***
Está na hora de a UE apresentar novo plano de ação, em
matéria de direitos humanos, de democracia e de Estado de direito, para
2025-2029. A referida carta aberta ao TEDH não augura evolução positiva, nestas
matérias. Ao invés, a tendência é para consagrar, em documento, a legitimação
do atropelamento as estes valores civilizacionais e culturais que já vai sendo prática,
em muitos países, como o exige o crescimento galopante da extrema-direita, em muitos
países, que simpatizam com as ideologias neoliberal e iliberal. Terão as
instituições democráticas e os verdadeiros democratas (quase silentes, atualmente)
suficiente pulso para inverter a tendência?
2025.05.25 – Louro de Carvalho
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