domingo, 25 de maio de 2025

Conselho da Europa não enfraquece a Convenção dos Direitos do Homem

 

Em carta aberta, preparada pelas primeiras-ministras italiana, Giorgia Meloni, e dinamarquesa, Mette Frederiksen, e publicada a 23 de maio, nove governos europeus – da Áustria, da Bélgica, da Chéquia, da Dinamarca, da Estónia, da Itália, da Letónia, da Lituânia e da Polónia – afirmam ser “necessário iniciar um debate sobre a forma como as convenções internacionais respondem aos desafios que enfrentamos atualmente”. Ou seja, apelando a uma “conversa aberta” sobre a interpretação da convenção, defendem que os países signatários da convenção devem ter mais espaço para decidir quando expulsar criminosos estrangeiros e para os monitorizar em situações em que não podem ser deportados: “O que antes era certo pode não ser a resposta para o futuro”, lê-se na carta.
O texto dirige-se ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), ramo do Conselho da Europa – também com sede em Estrasburgo, no Leste de França – responsável por garantir que a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) é respeitada nos países signatários.
Em síntese, os nove Estados querem saber se o TEDH, em certos casos, alargou demasiado o âmbito de aplicação da CEDH, em relação às suas intenções iniciais, e pretendem a sua restrição, invocando novos desafios.
Em resposta, o secretário-geral do Conselho da Europa, Alain Berset, escrevendo que “o debate é saudável”, mas que “o tribunal não deve ser politizado”, rejeitou qualquer enfraquecimento da CEDH, um dia depois de nove Estados, liderados pela Itália, terem apelado à reinterpretação do texto em relação à migração. “Perante os desafios complexos do nosso tempo, o nosso papel não é enfraquecer a Convenção, mas, pelo contrário, mantê-la forte e relevante”, afirmou, em comunicado de imprensa, o secretário-geral do Conselho da Europa, que, com 46 países membros, é o guardião da democracia e dos direitos humanos no Velho Continente.
A manutenção da independência e da imparcialidade do tribunal é fundamental”, disse Alain Berset, para concluir: “Num Estado de direito, a justiça não deve estar sujeita a pressões políticas […] O tribunal não deve ser utilizado como uma arma, nem contra os governos nem por eles.”

Assim, o principal órgão de direitos humanos da Europa criticou nove governos europeus por pedirem a reformulação da interpretação da CEDH, em questões conexas com as migrações e manifestou-se contra a tentativa de politização do TEDH, por parte de nove líderes europeus.

Já na semana anterior, Giorgia Meloni considerou que o principal problema era que os países estavam proibidos de expulsar “cidadãos imigrantes que cometeram crimes graves”. Porém, a 24 de maio, o secretário-geral do Conselho da Europa desafiou os governos a questionarem a aplicação da convenção: “O debate é saudável, mas politizar o tribunal não. Nenhum órgão judiciário deve sofrer pressão política. Instituições que protegem direitos fundamentais não podem curvar-se aos ciclos políticos. Se o fizermos corremos, o risco de corroer a própria estabilidade com que foram construídas para se garantirem”, vincou Alain Berset, acrescentando que o TEDH é o único tribunal internacional a julgar violações de direitos humanos praticados pela Rússia na Ucrânia e que “isso jamais deve ser questionado”.

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O Conselho da Europa foi constituído, em 1949, durante o período de reconciliação do pós-guerra e é independente da União Europeia (UE). Conta, atualmente, com 46 países-membros signatários da CEDH. O TEDH tem sede em Estrasburgo e determina se as obrigações da convenção estão a ser cumpridas. Na última década, foram dezenas os casos de estados-membros condenados por não terem garantido os direitos humanos de migrantes.
Não obstante, os governos signatários da carta em referência têm apoiado iniciativas similares para reforçar a política migratória da UE. Em outubro, a Itália, a Dinamarca e a Holanda organizaram uma reunião informal de 11 países que resultou na aprovação de centros de retorno, para processar o retorno de migrantes cujo asilo foi negado, Porém, ainda nenhum país europeu criou um destes centros e não está claro que países poderão sediar as instalações.

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Por seu turno, UE porfia que o “empenhamento na promoção e na proteção dos direitos humanos, da democracia e do Estado de direito faz parte dos valores fundadores da UE”, como se lê na comunicação da Comissão Europeia ao Parlamento Europeu (PE) e ao Conselho Europeu, ao apresentar o plano de ação da UE para os direitos humanos e para a democracia, em 2020-2024.

Que a UE tem interesse estratégico em desempenhar papel primordial a nível mundial, em matéria de direitos humanos e de democracia, para trazer benefícios tangíveis às pessoas em todo o Mundo, é visível no trabalho feito: desde a adoção do quadro estratégico da UE para os direitos humanos e a democracia, em 2012, os dois primeiros planos de ação da UE para os direitos humanos e a democracia (2012-2014 e 2015-2019), a nomeação do primeiro Representante Especial da UE para os Direitos Humanos (REUE), em 2012, e as conclusões do Conselho de 2019 sobre democracia. Além disso, a UE tornou-se mais coordenada, mais ativa, mais visível e mais eficaz nas relações e no diálogo com países terceiros, “ocupando um lugar de maior destaque, a nível multilateral”.
A UE, que vem defendendo, com determinação, os direitos humanos e a democracia, sustenta que o quadro geopolítico em mutação, com novas rivalidades, serve para vincar a defesa da ordem multilateral assente em regras. Porém, reconhece que o quadro global dos direitos humanos e da democracia é díspar: apesar de grandes progressos, está em retrocesso a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos e a democracia. No plano tecnológico, evoluímos para novo paradigma, em que as capacidades humanas são reforçadas pelas máquinas. As novas tecnologias, em especial, a inteligência artificial (IA) estão na linha da frente, suscitando oportunidades e ameaças. E os direitos humanos estão, cada vez mais, interligados com os desafios ambientais que se colocam à escala mundial, como as alterações climáticas. Por conseguinte, a UE apresentou nova agenda geopolítica sobre os direitos humanos e a democracia.
Assim, o plano de ação para os direitos humanos e a democracia, para 2020-2024, definia as ambições e as prioridades para os cinco anos subsequentes, no domínio das relações externas, contribuindo para o reforço do papel da Europa no Mundo. Nestes termos, propunha-se: reforçar a liderança da UE na promoção e na proteção dos direitos humanos e da democracia no Mundo; definir as ambições da UE, identificando as prioridades e centrando-se na aplicação, considerando o contexto geopolítico, a transição digital, os desafios ambientais e as alterações climáticas; maximizar o papel da UE na cena mundial, alargando o conjunto de ferramentas de que dispõe para promover os direitos humanos, bem como os seus instrumentos e as suas políticas fundamentais neste âmbito; e incentivar uma UE unida e coesa, promovendo uma ação mais eficiente e coerente.
Dizia a UE ter agido, ao longo dos últimos anos, “de forma mais estratégica”, e utilizado, “mais eficazmente, o seu peso político e o conjunto de instrumentos de que dispõe, a favor dos direitos humanos, para combater as suas violações e para promover sociedades democráticas, resilientes e pacíficas, bem como “para alcançar progressos significativos, em países e em regiões em que os direitos humanos estavam a ser postos em causa”, através de “colaboração inovadora e de investimento nos direitos económicos e sociais” e de “forte apoio político e financeiro” à proteção e à capacitação dos defensores dos direitos humanos, da sociedade civil e dos profissionais dos meios de comunicação social. Contudo, assinala a persistência de muitos desafios: os direitos humanos e a democracia estão em causa em muitos países; as liberdades fundamentais (liberdade de expressão ou de reunião e liberdade dos meios de comunicação social” estão sob crescente ameaça; e os esforços sistémicos para minar o Estado de direito, para restringir o espaço cívico e político e para enfraquecer a ordem multilateral assente em regras têm sido exacerbados pelo retrocesso de parceiros tradicionais da UE, no atinente à promoção ativa e à defesa dos direitos humanos e dos valores democráticos.
Por conseguinte, reduz-se o espaço da sociedade civil; enfraquece-se o Estado de direito; crescem as ameaças à integridade das eleições e aos processos democráticos; aumenta a intimidação de jornalistas e a ameaças aos meios de comunicação social independentes; cresce a violência e a intimidação dos defensores dos direitos humanos; generaliza-se a impunidade das violações dos direitos humanos e os ataques ao Tribunal Penal Internacional (TPI); viola-se o direito internacional humanitário em conflitos armados; campeia a violência doméstica; cresce a oposição aos direitos das mulheres e à igualdade de género; e persistem os abusos laborais, incluindo o trabalho infantil.
A transição para a era digital suscita desafios e oportunidades. As tecnologias digitais promovem os direitos humanos e a democratização, facilitando a participação do público, permitindo acompanhar e documentar as violações e os abusos, apoiando a emergência do ativismo em linha, a sensibilização e o acesso à informação, e facilitam a inclusão económica e social e o acesso a serviços públicos de qualidade. Todavia, podem apoiar restrições abusivas e ilícitas às liberdades de circulação e de expressão, propagar a desinformação e o discurso do ódio, que podem violar a privacidade e comprometer a democracia e os direitos humanos. A utilização abusiva das novas tecnologias, incluindo a IA, comporta o risco de monitorização, controlo e repressão maiores. Em alguns países, é realidade a vigilância, em larga, escala dos cidadãos e a discriminação de indivíduos e de grupos, reforçando os preconceitos societais.
A ligação entre os desafios ambientais globais (como degradação ambiental, poluição e alterações climáticas) e os direitos humanos é cada vez mais patente. Os jovens fazem ouvir a sua voz. A sociedade civil e os defensores do ambiente desempenham papel fundamental, “ao denunciarem as violações dos direitos humanos e ao exigirem medidas para proteger o planeta e o clima”. Com efeito, os efeitos negativos da degradação ambiental e das alterações climáticas ameaçam direitos, como a saúde, a alimentação, a água, a educação para todos e até avida, podendo “multiplicar os desafios que se levantam neste domínio”.
Os conflitos e a instabilidade ameaçam os meios de subsistência de milhões de pessoas, em todo o Mundo e o Mundo assiste à “deslocação forçada das pessoas a um nível sem precedentes”, pelo que, segundo a UE, “investir nos direitos humanos, na democracia e no Estado de direito é a melhor maneira de impedir que as sociedades entrem em crise”, pois as crises trazem desafios especiais ao exercício à proteção dos direitos humanos e, além de comprometerem o funcionamento das democracias e de demonstrarem “a necessidade imperativa de uma ação concertada e de solidariedade a nível mundial”.
Tal implica, segundo a UE, empenhamento precoce no combate à violação dos direitos humanos e no apoio à democracia, nomeadamente, pela mediação e pela prevenção da violência eleitoral. A tónica renovada nos direitos humanos e na democracia fomenta a resiliência do Estado e da sociedade, sendo possível “garantir maior segurança”, quando são assegurados os direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais, visto que não há segurança sustentável sem direitos humanos para todos. E isso implica garantir a responsabilização e lutar contra a impunidade.
Os objetivos da Agenda 2030 e do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas constituem oportunidade extraordinária para assegurar que a importância atribuída à inclusão contribua para a promoção dos direitos humanos e da democracia, em todo o Mundo. O compromisso “não deixar ninguém para trás” exige o reforço dos direitos humanos de todos, sem discriminação. Com a crescente desigualdade e com o enraizar político das diferenças económicas, os desafios são maiores do que nunca. E o plano de ação em vigor define as ambições da UE e identifica as prioridades de ação em torno de cinco eixos de ação interligados, que se reforçam mutuamente: proteger e capacitar as pessoas; fazer sociedades resilientes, inclusivas e democráticas; erigir um sistema global dos direitos humanos e da democracia; aproveitar as oportunidades e enfrentar os desafios das tecnologias; e obter resultados, mediante a colaboração entre todos.
Para tanto, a UE propôs-se mobilizar “o vasto leque de políticas e instrumentos de que dispõe para promover e defender os direitos humanos, a democracia e o Estado de direito”, como as campanhas de comunicação, a diplomacia pública, as declarações da UE, as resoluções temáticas e específicas, por país, em instâncias multilaterais sobre direitos humanos, e os instrumentos de diplomacia mais discreta (como diligências, diálogos políticos e diálogos regulares sobre os direitos humanos), bem como o diálogo sobre as políticas setoriais. De facto, a comunicação sobre os direitos humanos é da máxima importância e, embora seja necessário denunciar as violações dos direitos humanos, “é essencial um discurso positivo sobre o tema dos direitos humanos”.
A UE propôs-se intensificar os esforços para integrar a proteção dos direitos humanos, da democracia e do Estado de direito, em todos os domínios da ação externa, por exemplo, reforçando as sinergias entre as políticas comerciais e no domínio dos direitos humanos, com base no trabalho feito no contexto dos acordos da UE, em matéria de preferências comerciais, e integrando os direitos humanos em todas as políticas internas, especialmente, nos domínios prioritários do Pacto Ecológico, como o ambiente, e no âmbito da migração e da segurança.
Paralelamente, a UE procura ser “um interveniente mais rápido e mais eficaz em matéria de direitos humanos, a nível de cada país, onde esta intervenção assume uma maior importância”. E continua a ter a sociedade civil como “parceiro fundamental, para assegurar a realização de mudanças sustentáveis e para acompanhar e analisar os progressos registados”.
Toda a sua estratégia exige uma abordagem coesa, nomeadamente, com os estados-membros, para garantir maior coerência e impacto da intervenção da UE, a todos os níveis e no âmbito de todos os instrumentos e políticas.
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Está na hora de a UE apresentar novo plano de ação, em matéria de direitos humanos, de democracia e de Estado de direito, para 2025-2029. A referida carta aberta ao TEDH não augura evolução positiva, nestas matérias. Ao invés, a tendência é para consagrar, em documento, a legitimação do atropelamento as estes valores civilizacionais e culturais que já vai sendo prática, em muitos países, como o exige o crescimento galopante da extrema-direita, em muitos países, que simpatizam com as ideologias neoliberal e iliberal. Terão as instituições democráticas e os verdadeiros democratas (quase silentes, atualmente) suficiente pulso para inverter a tendência?

2025.05.25 – Louro de Carvalho


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