Um alto funcionário da organização das Nações Unidas (ONU) denunciou, a 28 de maio, ao 600.º dia da guerra, o novo sistema de distribuição de ajuda, criado por Israel na Faixa de Gaza, como distração indigna, após operação de distribuição caótica que deixou 47 feridos no dia anterior, e o facto de os militares israelitas terem atingido a tiro uma multidão de Palestinianos, quando tentavam receber ajuda humanitária, tendo morrido três pessoas e ficado feridas, pelo menos, 47.
O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu reconhece o caos e diz que a normalidade foi logo restabelecida, mas, devido aos incidentes, a Fundação Humanitária de Gaza (GHF), empresa privada que gere os bens, não abriu os centros de distribuição, nessa manhã.
O modelo de
Israel e dos Estados Unidos da América (EUA) de delegar a distribuição de ajuda
a uma empresa privada é “distração das atrocidades”, disse, em Tóquio, Philippe
Lazzarini, chefe da Agência da ONU para os Refugiados Palestinianos (UNRWA),
mas persona non grata, em Israel, por chefiar, alegadamente,
uma “organização terrorista” ligada ao Hamas.
“Vimos as imagens chocantes, ontem [...] Foi
caótico, indigno e perigoso. [...] O tempo está a esgotar-se para evitar a
fome, pelo que os trabalhadores humanitários devem ser autorizados a fazer o
seu trabalho de salvar vidas, agora”, frisou Philippe Lazzarini,
elogiando a “experiência e conhecimento da UNRWA, para chegar às pessoas
necessitadas” e vincando que “os
horrores desta guerra estão a ser transmitidos ao vivo”, pelo que “ninguém
pode dizer que não sabia, pois “toda
uma população enfrenta fome aguda” e “meio milhão de pessoas já estão à
beira da fome”.
Para
Philippe Lazzarini, o modelo
de distribuição de auxílio criado por Israel não condiz com o princípio
humanitário fundamental, priva grande parte de Gaza, com pessoas muito
vulneráveis, de auxílio desesperadamente necessário, constituindo desperdício de recursos e distração das
atrocidades”. Porém, fonte militar israelita afirmou que a
distribuição foi um sucesso.
Sob forte
pressão internacional, Israel levantou, parcialmente, na semana anterior, o
bloqueio que impusera a Gaza, desde 2 de março, oficialmente, para forçar o
movimento islamita palestiniano a libertar os reféns que mantém em seu poder. Desde
então, várias centenas de camiões de ajuda humanitária foram autorizados por
Israel a entrar no território devastado pela guerra e a braços com uma situação
humanitária catastrófica.
No dia 27, a
distribuição de ajuda num novo centro de distribuição gerido pela GHF, criada
de raiz, com o apoio de Israel e dos EUA, transformou-se num caos, em Rafah, no
Sul de Gaza, quando milhares de Palestinianos acorreram ao local. “Cerca de 47 pessoas ficaram feridas, a
maior parte delas por balas, e os tiros vieram do exército israelita”,
disse aos jornalistas, na manhã do dia 28, Ajith Sunghay, chefe do Gabinete do
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos nos Territórios
Palestinianos Ocupados.
O centro de
distribuição nos arredores da cidade de Rafah, no extremo Sul de Gaza, foi
inaugurado, no dia 26, pela GHF, registada nos EUA e designada por Israel para
assumir as operações de ajuda humanitária. Porém, a ONU e outras organizações humanitárias rejeitaram o sistema, alegando
que não será capaz de satisfazer as necessidades dos 2,3 milhões de habitantes
de Gaza e permite que Israel utilize os alimentos como arma para controlar a
população. Alertaram, ainda, para o risco de atrito entre as tropas israelitas
e quem procura mantimentos.
Israel diz ter ajudado a estabelecer o novo mecanismo de
ajuda, para impedir o Hamas de desviar os mantimentos, mas não apresentou
provas de desvio sistemático e as agências da ONU afirmam ter mecanismos para
impedir o desvio de comida e outros suprimentos.
A GHF
afirmou ter estabelecido quatro centros, dois dos quais já começaram a funcionar, estando protegidos por empresas de segurança privada, tendo
vedações de arame e levando os Palestinianos para o que se assemelha a bases
militares rodeadas por grandes barreiras de areia. Frisou que os seus
seguranças não dispararam contra a multidão, recuando, antes de retomar as
operações. E repetiu que Israel planeia mover toda a população de Gaza para uma zona
isolada, no extremo Sul do território, enquanto a tropa combate o Hamas noutros
locais.
A guerra desencadeada pelo Hamas entrou no seu 600.º dia, sem esperança de trégua
nos bombardeamentos israelitas, em Gaza, ou da libertação dos reféns detidos,
desde o ataque do Hamas, a 7 de outubro de 2023. E, a pedido do Fórum das Famílias, a principal
organização israelita que acusa o governo de
inoperância e que apela a um cessar-fogo que permita a libertação dos
reféns, centenas de pessoas começaram a reunir-se em cruzamentos nas estradas
israelitas às 6h29, a hora a que começou o ataque do grupo islamita, há 600 dias.
Os manifestantes juntaram-se perto de
fitas amarelas gigantes, que simbolizam os reféns detidos em Gaza. Ao longo das
estradas foram colocados cartazes com o número “600”. Os manifestantes
bloquearam a principal autoestrada urbana de Telavive. E o filho de um dos reféns que foi morto
pediu a intervenção dos EUA e acusou o governo de inoperância. “O pior e
mais brutal governo da História de Israel condenou os restantes reféns à morte
por tortura. Este governo declara,
abertamente, que os reféns são a sua menor prioridade, em Gaza. Mesmo após a transferência da população, a guerra é eterna
e as negociações para um acordo já foram frustradas”, acusou o familiar de um
dos reféns raptados pelo Hamas.
Os familiares dos reféns apelam ao presidente Donald Trump, o único que pode agir para interromper a
guerra de vingança e garantir o regresso de todos, os vivos para
reabilitação e os mortos para enterro: “Saiba
que somos a maioria do povo, a maioria que diz que a devolução dos reféns é a
primeira prioridade, parte do fim da morte e do sofrimento para
ambos os lados. Use o seu poder com determinação para alcançar a paz e trazer
os nossos entes queridos para casa.”
Pelo menos
16 pessoas morreram, durante a noite, por volta das
2h00, em vários
ataques aéreos israelitas contra o território palestiniano, declarou, a 28 de maio,
a Defesa Civil da Faixa de Gaza, controlada pelo grupo islamita Hamas. “As equipas da
Defesa Civil retiraram 16 mártires, incluindo várias crianças, após ataques
aéreos israelitas, na Faixa de Gaza, desde o amanhecer” de hoje, disse à
agência de notícias France-Presse,
Mahmoud Bassal, porta-voz da organização de socorro, referindo que nove pessoas “da família do
jornalista Osama al-Arabid” foram mortas perto de al-Saftawi, a Norte da cidade
de Gaza.
Segundo o porta-voz da Defesa Civil, Al-Arabid,
vídeo-jornalista e editor para uma produtora local, que ficou ferido, várias crianças estavam entre os mortos e, no centro de Gaza, seis membros da mesma
família, os Aqilan, foram mortos num ataque na zona de Deir al-Balah.
Mahmoud Bassal referiu, sem adiantar pormenores, que um civil
foi morto em Abasan, a Leste de Khan Younis, no Sul de Gaza. Contactado pela AFP, o exército israelita não respondeu,
indicando ser difícil obter informações sobre estes ataques, sem coordenadas
precisas.
Após abandonar
o cessar-fogo de dois meses, Israel retomou a ofensiva em Gaza, em meados de
março e intensificou as suas operações militares, a 17 de maio, para aniquilar
o Hamas, para libertar os últimos reféns que restavam e para assumir o controlo
do território.
Também no dia 28, o exército
israelita matou um palestiniano, numa operação, na cidade de Jit, na
Cisjordânia ocupada, perto de Qalqilia. O homem, Jasem Ibrahim al-Sada, foi baleado por soldados
israelitas dentro de casa, segundo a família, que acrescentou que os soldados
retiveram o corpo durante algum tempo, antes de o entregarem ao Crescente
Vermelho Palestiniano.
***
No seguimento de carta publicada, a 26 de maio, no
jornal Libération, assinada por 300
escritores francófonos, a protestar contra o que se passa em Gaza, um grupo de
380 escritores oriundos de Inglaterra, do País de Gales, da Escócia, Irlanda do
Norte e da República de Irlanda divulgaram, no dia 28, uma carta em que
pedem aos seus países e “aos povos do Mundo que se juntem a nós para pôr fim ao
nosso silêncio coletivo e à nossa inação perante o horror”. Citada pelo The Guardian, a carta refere-se ao “ano
e sete meses” da guerra, em Gaza, defendendo o uso do termo “genocídio”
para a identificar. “A utilização dos termos ‘genocídio’ e ‘atos de genocídio’
para descrever o que está a acontecer em Gaza já não é debatida pelos juristas
internacionais ou pelas organizações de defesa dos direitos humanos”, dizem os
signatários, entre os quais se encontram conhecidos nomes da literatura em
língua inglesa e das artes, como Ian McEwan, Hanif Kureishi, Zadie Smith, Elif
Shafak, Brian Eno, Kate Mosse ou Irvine Welsh.
“Os Palestinianos não são as vítimas abstratas de uma
guerra abstrata. Demasiadas vezes, as palavras têm sido usadas para justificar
o injustificável, negar o inegável, defender o indefensável. Demasiadas vezes,
também, as palavras certas – as que importavam – foram erradicadas, juntamente
com aqueles que as poderiam ter escrito”, escrevem, notando que o termo “genocídio”
não é slogan, antes
acarreta “responsabilidades legais, políticas e morais”.
Exigindo um cessar-fogo imediato e a distribuição, sem
demoras, nem restrições, de alimentos e de medicamentos no enclave, a
libertação dos reféns israelitas feitos pelo Hamas e dos “milhares de prisioneiros
palestinianos detidos” nas prisões de Israel, os signatários declaram não
aceitar “ser um público de espectadores que consentem”. E, notando que esta
tomada de posição coincide com “absoluta oposição e aversão ao antissemitismo,
ao preconceito antijudaico e anti-israelita”, realçam que “não se trata apenas
da nossa humanidade comum e de direitos humanos”, da nossa idoneidade moral
como escritores do nosso tempo, que diminui a cada dia que nos recusamos a
falar e a denunciar este crime”.
“Rejeitamos e abominamos os ataques, o ódio e a
violência – por escrito, por palavras e por ações – contra os povos
palestiniano, israelita e judeu, sob todas e quaisquer formas. Somos solidários
com a resistência dos povos palestiniano, judeu e israelita às políticas genocidas
do atual governo israelita”, dizem, exortando à imposição de sanções,
se Israel não atender ao apelo.
***
A postura da Alemanha, face às ações de Israel está a mudar.
Friedrich Merz, chanceler do segundo principal fornecedor de armamento a
Telavive dos últimos anos, afirma que “o que se está a passar, neste momento,
já não é compreensível”. Há três meses, Friedrich Merz disse que encontraria
forma de o primeiro-ministro israelita visitar o seu país, sem ser detido,
apesar do mandado de detenção do Tribunal Penal Internacional (TPI), mas endureceu o tom, já no dia 26,
ao afirmar, numa entrevista, que, “quando o direito humanitário internacional é
realmente violado, o chanceler alemão também deve dizer alguma coisa sobre
isso”.
O embaixador de Israel em Berlim, Ron Prosor, reconheceu as
preocupações alemãs. “Quando Friedrich Merz levanta críticas a Israel,
ouvimo-lo, atentamente, porque ele é um amigo”, declarou à emissora ZDF, citado pelo jornal The Times of Israel.
Thorsten
Benner, diretor do grupo de reflexão Global Public Policy Institute (GPPi),
sediado em Berlim, entende que a política alemã, em relação a Netanyahu, “será
recordada como um fracasso colossal” e que, “durante demasiado tempo, o governo
passou um cheque em branco ao governo extremista de Netanyahu”. E o
ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE) alemão, Johann Wadephul, acompanhou as
críticas, dizendo que o compromisso com a luta contra o antissemitismo e com o
apoio ao direito à existência do Estado de Israel “não deve ser
instrumentalizado para o conflito e a guerra a serem travados na Faixa de Gaza”.
“Onde vemos perigos de danos, claro que vamos intervir e certamente não
fornecer armas para que não haja mais danos, afirmou o MNE alemão, Johann
Wadephul à emissora WDR.
De acordo com o Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI),
entre 2019 e 2023, Israel importou 69% das suas armas dos EUA e 30% da
Alemanha. Informação da União Europeia (UE) sobre a exportação
de armamento para Israel, em 2023, mostra que a Alemanha foi o país com maior
número de licenças de armas emitidas: 312, em 655 emitidas por membros do
bloco. Estas três centenas de licenças representaram 326,5 milhões de euros.
Porém, o diretor do GPPi não antecipa interrupção generalizada das
exportações de armas para Israel, sobretudo, no atinente às necessárias para
que Israel se defenda de ameaças do Irão, mas é concebível interrompa a
exportação das armas utilizadas em Gaza.
O European Legal Support Center (ELSC), que apoia ativistas
pró-Palestina na Europa, assinalou 766 incidentes de repressão antiPalestina,
na Alemanha, desde 2019, e uma escalada destes casos, desde outubro de 2023.
Entre eles, constam rusgas a casas de ativistas solidários com a Palestina, em
Berlim, o cancelamento de eventos com a relatora especial da ONU para os
territórios ocupados da Palestina, Francesca Albanese, e casos de violência
policial. “A repressão generalizada e extremamente violenta da solidariedade
palestiniana tem sido praticada por toda a Europa, há décadas, e está em
constante crescimento, à medida que as pessoas denunciam a cumplicidade e
exigem o fim da violência genocida de Israel. Não estamos a falar de casos
aleatórios ou isolados. A nossa base de dados demonstra claramente: a repressão
antipalestiniana, na Europa, é sistemática, institucional e inegável”, disse Giovanni
Fassina, diretora do ELSC.
Houve tentativas de deportação de cidadãos europeus que
participaram em manifestações e de banir o uso do Keffiyel (lenço tradicional
palestiniano), em escolas. Ao mesmo tempo, os judeus sentem-se cada vez
menos seguros, na Alemanha, após 7 de outubro de 2023, e tem aumentado o
antissemitismo. E, segundo Benner, “na necessária luta contra o antissemitismo,
o governo tomou uma série de medidas injustificadas e que se voltam contra si,
deslegitimando a luta contra o antissemitismo. Alguns atores tentaram silenciar
qualquer crítica a Israel, rotulando-a de antissemita – e, demasiadas vezes, os
próprios atores governamentais usaram uma definição demasiado ampla de
antissemitismo”.
Os incidentes antissemitas aumentaram e cerca de metade eram conexos
com o ativismo anti-Israel. A RIAS (Associação Federal dos Departamentos para a
Investigação e Informação sobre Antissemitismo da Alemanha) indicou que houve
mais casos de antissemitismo, em Berlim, na primeira metade de 2024 (1383) do
que em 2023. A generalidade referia-se a comportamento abusivo, mas houve dois
casos de violência extrema, 23 ataques e o aumento de incidentes em
instituições de ensino.
***
O que se passa em Gaza é o expoente da falência da ONU, criada
para assegurar a paz no Mundo, a construir através do desenvolvimento económico
e social, da democracia política, do acesso de todos à saúde, à educação e à cultura,
ao trabalho, à segurança física e social e à justiça. Afinal, está instalada a
guerra mundial aos pedaços (em quase todas as partes do Mundo) e sob diversas
modalidades, incluindo a neocolonialista, a exploradora, a comercial e a antiecológica.
Haja vozes que se façam ouvir, a ver se as armas se calam!
2025.05.28
– Louro de Carvalho
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