sábado, 3 de maio de 2025

Fome e sede são utilizadas como instrumento de guerra em Gaza

 

Quando o bloqueio da ajuda humanitária a Gaza por Israel entrava na nona semana, ante a silente inação da comunidade internacional, a situação de fome e de caos sanitário agravava-se, a cada dia, prosseguindo, ao mesmo tempo, os bombardeamentos e o número crescente de mortos.

Entretanto, o Tribunal Internacional de Justiça da Organização das Nações Unidas (ONU), em Haia, nos Países Baixos, auscultava cerca de duas dezenas de países, sobre a questão que lhe dirigiu a Assembleia Geral da ONU, quanto às obrigações gerais e específicas de Israel, enquanto potência ilegalmente ocupante da Faixa de Gaza e, cada vez mais, da Cisjordânia.

Não sendo conhecida a decisão que os juízes do TIJ tomarão, a quase totalidade dos depoimentos sustenta que Israel, além da destruição e do terror que tem lançado na Palestina e das leis que aprovou, ao arrepio do direito internacional, tem violado, sistematicamente, a Carta das Nações Unidas, de que é subscritor, e infringido as disposições relativas ao direito humanitário e aos direitos humanos. Em particular, desde que rompeu, a 2 de março, o cessar-fogo que acordara, os novos bombardeamentos, incluindo sobre ajuntamentos de pessoas, configuram uma política de cerco e de extermínio pela violência e pela fome. Contudo, além do caráter não vinculativo da decisão do TIJ, a lentidão com que correm os processos dificilmente se conjuga com a situação de emergência, cada dia, mais insuportável, em toda a Palestina.

Face a esta situação, Volker Türk, Alto-comissário para os Direitos Humanos da ONU, exorta a comunidade internacional a agir no sentido de levar Israel a cumprir o disposto nos instrumentos do direito internacional, isto é, o dever de garantir o fornecimento de recursos básicos de sobrevivência da população civil e de autorizar, sem condições, a entrada de ajuda humanitária fornecida por terceiros, se for insuficiente a que deve fornecer. Isto não é matéria discricionária, mas impositiva, sob pena de violação das normas específicas do direito internacional a que Israel se vinculou. Ora, porque isso não é respeitado, a comunidade internacional deve agir para impedir o colapso total do apoio crítico para salvar vidas em Gaza, onde ataques israelitas continuam a matar civis, inclusive, em abrigos e em unidades de saúde, segundo Volker Türk.

Desde 2 de março, segundo a ONU, Israel impediu a entrada de alimentos, de combustível, de medicamentos e de outros recursos que salvam vidas. As padarias pararam de funcionar, por falta de farinha e de combustível, e esgotam-se os stocks de alimentos. “Qualquer uso da fome da população civil como método de guerra constitui crime de guerra, assim como todas as formas de punição coletiva”, alertou o Alto-comissário.

O secretário-geral, António Guterres, dizia, há dias, na sua conta, no X, que Israel “deve proteger os civis e aceitar os planos de ajuda e facilitá-los”, pois “a ajuda não é negociável”. E, numa perspetiva mais a médio-longo prazo, avisava: “O Mundo não se pode dar ao luxo de ver a solução de dois Estados desaparecer.” E deixava o apelo: “Não deixem que extremistas de nenhum dos lados minem o que resta do processo de paz.”

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O condenável comportamento de Israel foi denunciado, logo a 18 de dezembro de 2023, pela Human Rights Wash (HRW), com evidências de que civis foram, deliberadamente, privados de acesso a comida e a água, o que já indiciava que o governo Israel usava a fome de civis como estratégia de guerra na Faixa de Gaza, o que é crime de guerra. As próprias autoridades israelitas fizeram declarações públicas a expressar o objetivo de privar civis, em Gaza, de comida, de água e de combustível. E a HRW sustentava que o governo de Israel não pode atacar bens indispensáveis à sobrevivência da população civil, devendo suspender o bloqueio a Gaza e restaurar a eletricidade e o abastecimento de água.

As forças israelitas bloqueavam a entrada de água, de alimentos e de combustível, enquanto impediam, intencionalmente, a assistência humanitária, arrasando áreas agrícolas e privando a população civil de insumos indispensáveis à sua sobrevivência.

Desde que o Hamas atacou Israel, a 7 de outubro de 2023, altos funcionários israelitas, incluindo os ministros da Defesa, da Segurança Social e da Energia, declararam, publicamente, o objetivo de privar civis de comida, de água e de combustível, em Gaza, declaração que reflete a prática das forças israelitas. E outros funcionários declararam, publicamente, que a ajuda humanitária a Gaza seria condicionada à liberação de reféns detidos pelo Hamas ou à destruição do Hamas. “Por mais de dois meses, Israel tem privado a população de Gaza de alimentos e água, uma política incentivada ou endossada por altos funcionários israelenses, refletindo a intenção de matar civis de fome como estratégia de guerra”, declarou Omar Shair, diretor de Israel e Palestina da HRW, vincando: “Os líderes mundiais deveriam pronunciar-se contra esse abominável crime de guerra, que tem efeitos devastadores na população de Gaza.”

A HRW, entre 24 de novembro e 4 de dezembro de 2023, ouviu 11 palestinianos deslocados em Gaza, que indicaram as dificuldades em satisfazer as necessidades básicas, não sabendo como sobreviveriam. E, no Sul de Gaza, os entrevistados descreveram a escassez de água potável e a falta de alimentos, que ocasionou lojas vazias, longas filas e preços exorbitantes.  

O Programa Mundial Alimentar (PMA) da ONU relatou, a 6 de dezembro, que nove, em cada 10, domicílios, no Norte de Gaza, e dois, em cada três, domicílios, no Sul de Gaza, passaram sem comida, pelo menos, um dia e uma noite inteira. Ora, o direito humanitário internacional e as leis da guerra proíbem a fome de civis como arma de guerra. O Estatuto de Roma, do TPI, estabelece que privar civis de “bens indispensáveis à sua sobrevivência, impedindo, inclusive, o envio de socorros”, é crime de guerra. E a intenção criminosa não exige a admissão do agressor, podendo ser inferida da totalidade das circunstâncias da campanha militar.

Além disso, o bloqueio contínuo de Gaza por Israel e o seu fechamento por mais de 16 anos, equivale à punição coletiva da população civil, que é crime de guerra. Enquanto potência ocupante em Gaza, nos termos da Quarta Convenção de Genebra, Israel tem o dever de garantir que a população civil receba alimentos e suprimentos médicos.

A 17 de novembro de 2023, o PMA alertava para a possibilidade imediata de inanição, já que os suprimentos de alimentos e de água eram, praticamente, inexistentes. A 3 de dezembro, falava de alto risco de fome, com o sistema alimentar à beira do colapso. A 6 de dezembro, declarava que 48% dos domicílios, no Norte de Gaza, e 38% das pessoas deslocadas, no Sul de Gaza, haviam experimentado “níveis severos de fome”. Porém, já a 3 de novembro, o Conselho Norueguês para Refugiados anunciava que Gaza tinha necessidade catastrófica de água, de saneamento e de higiene, pois foram desativadas instalações de águas residuais e de dessalinização, por falta de combustível e de eletricidade. E já antes de 7 de outubro, Gaza quase não tinha água potável.

Antes do conflito atual, cerca de 1,2 milhões dos 2,2 milhões de pessoas que habitavam em Gaza estavam em insegurança alimentar aguda, e mais de 80% dependiam de ajuda humanitária. Israel mantinha (e mantém) controlo abrangente sobre Gaza, incluindo o movimento de pessoas e de bens, as águas territoriais, o espaço aéreo, a infraestrutura de que Gaza depende e o registo da população, o que tornou a sua população submetida a longo bloqueio ilegal.

Após a imposição do bloqueio total, a 9 de outubro, as autoridades israelitas retomaram o fornecimento de água a partes do Sul de Gaza, a 15 de outubro e, a partir de 21 de outubro, permitiram a chegada de ajuda humanitária limitada, pela travessia de Rafah, fronteira com o Egito. Porém, Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, disse, a 19 de outubro, que não permitiria a entrada de ajuda humanitária, na forma de alimentos e de medicamentos, em Gaza, pelas suas estradas enquanto os seus reféns não fossem devolvidos. E o governo continuou a bloquear a entrada de combustível, até 15 de novembro, apesar dos alertas para as graves consequências, levando ao encerramento de padarias, de hospitais, de estações de bombeamento de esgoto, de estações de dessalinização e de poços – instalações indispensáveis à sobrevivência da população civil.

Quantidades limitadas de combustível foram permitidas, a 4 de dezembro, mas Lynn Hastings, coordenadora humanitária da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados, julgou-as totalmente insuficientes. E, a 6 de dezembro, o gabinete de guerra de Israel aprovou um aumento mínimo no fornecimento de combustível ao Sul de Gaza. Porém, a 1 de dezembro, após o cessar-fogo de sete dias, o exército israelita retomou o bombardeamento de Gaza e expandiu a sua ofensiva terrestre, declarando que as operações militares no Sul não teriam menos força do que no Norte.

Enquanto os Estados Unidos da América (EUA) pediam a Israel que permitisse entrada de combustível e ajuda humanitária nos níveis do cessar-fogo, o coordenador do Ministério da Defesa de Israel para atividades governamentais nos territórios interrompeu toda a entrada de ajuda. Entregas limitadas de ajuda foram retomadas, a 2 de dezembro, mas a níveis insuficientes, segundo o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA).

A par do bloqueio, os ataques aéreos de Israel resultaram em generalizados danos ou em destruição de objetos indispensáveis à sobrevivência dos civis. O bombardeamento das forças israelitas, a 15 de novembro, ao último moinho de trigo de Gaza levou a que a farinha produzida estivesse indisponível por tempo indeterminado. O Escritório das Nações Unidas para Serviços de Projetos (UNOPS) relevou que a destruição da rede viária tornou difícil a entrega da ajuda a quem precisa pelas organizações humanitárias. “Padarias e moinhos de grãos foram destruídos, bem como agricultura, água e instalações de saneamento”, referia Scott Paul, consultor sénior de políticas humanitárias da Oxfam América, à Associated Press, a 23 de novembro de 2023.

A ação militar de Israel teve impacto devastador no setor agrícola. O bombardeio contínuo, com a escassez de combustível e água, além do deslocamento de mais de 1,6 milhões de pessoas para o Sul de Gaza, tornou a agricultura impossível. Um relatório de 28 de novembro, do OCHA referia que a criação de gado, no Norte, enfrentava a fome, por falta de ração e de água, e que as plantações estavam abandonadas e danificadas, devido à falta de combustível para bombear água para a irrigação. Problemas, como a escassez de água e o acesso restrito a terras agrícolas localizadas perto da fronteira, agravaram as dificuldades dos agricultores locais, muitos dos quais estavam deslocados. A 28 de novembro, o Escritório Central de Estatísticas da Palestina disse que Gaza perdia, por dia, mais 1,6 milhões de dólares, na produção agrícola.

A 28 de novembro, o Setor de Segurança Alimentar da Palestina relatou que mais de um terço das terras agrícolas, no Norte, foi danificado nos confrontos. Imagens de satélite analisadas pela HRW indicavam que, desde o início da ofensiva de Israel, a 27 de outubro, foram arrasadas terras agrícolas, incluindo pomares, estufas e fazendas no Norte de Gaza, pelo que Israel deveria cessar o uso da fome de civis como arma de guerra, acatar a proibição de ataques a insumos indispensáveis à sobrevivência de civis, suspender o bloqueio a Gaza, restaurar o acesso a água e à eletricidade e permitir a entrada de alimentos, de ajuda médica e de combustível, necessários em Gaza, inclusive através da sua passagem em Kerem Shalom.

Os governos deveriam pedir a Israel o fim de tais abusos. E os EUA, o Reino Unido, o Canadá, a Alemanha e outros países deveriam suspender a assistência militar e a venda de armas a Israel, enquanto o governo cometer abusos generalizados e graves equivalentes a crimes de guerra contra civis, com impunidade. “O governo israelita está a agravar o castigo coletivo que impõe à população civil palestiniana e o bloqueio de ajuda humanitária com o uso cruel da fome como arma de guerra”, disse Shakir.

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Nos conflitos armados que assolam o Mundo, a fome deliberadamente utilizada como arma de guerra emerge como uma das mais cruéis estratégias de dominação, ignorando os princípios básicos do direito internacional humanitário, consagrados na Quarta Convenção de Genebra e no direito humanitário internacional consuetudinário, que visam proteger civis, em tempos de guerra. Ora, ao privar, deliberadamente, populações civis de acesso a alimentos e a outros recursos essenciais, as partes envolvidas no conflito comprometem a segurança alimentar e violam os direitos humanos fundamentais dos mais vulneráveis.

Essa estratégia desumana persiste, há séculos. E por estar em causa Israel, é de referir que, durante o Cerco de Jerusalém, na I Guerra Judia-Romana, em 70 d.C., como o exército romano a isolar a cidade, o correu o célere esgotamento dos suprimentos de alimentos, de que resultaram graves consequências, como o acúmulo de corpos, nas ruas, e surtos de doenças, devido à decomposição. A falta de comida levou os habitantes a extremos, consumindo couro e folhas, e ao canibalismo, como documentado pelo historiador Flávio Josefo, o que provocou a deterioração das defesas e permitiu que os Romanos rompessem as proteções da cidade, resultando na devastação de locais sagrados, como o Segundo Templo, e no massacre dos sobreviventes.

O Cerco de Jerusalém foi um catalisador da Diáspora Judaica e provocou mudanças significativas nas práticas religiosas do judaísmo. Quase dois mil anos depois, a fome ainda se usa como arma de guerra, não só em Gaza, mas em muitos outros lugares, constituindo o Sudão um dos mais notórios, a seguir ao etnocídio da Alemanha nazi. Porém, no contexto atual, os atores invertem-se, com o governo israelita como utilizador despótico desse mecanismo desumano.

As autoridades de Israel impuseram punições coletivas à população civil de Gaza, privando-a de itens básicos e usando a fome como arma de guerra, constituindo tais ações graves violações da Quarta Convenção de Genebra e do direito humanitário internacional consuetudinário.

A Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar (IPC) publicou, em junho de 2024, uma análise que concluía que metade de Gaza, cerca de 1,1 milhão de pessoas, enfrentava insegurança alimentar. Essa situação resultou, para lá da guerra, do descumprimento do governo israelita das suas responsabilidades de proteção ao povo palestino, dificultando a acessibilidade de ajuda humanitária na região. Práticas, como o arrasamento de terras, a privação de insumos essenciais e o assassinato seletivo de agentes humanitários agravam a crise.

O abastecimento de água e de alimentos à população só pode chegar a Gaza, através de Israel, que bloqueia a passagem. Segundo a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), os Israelitas vetaram, até junho de 2024, pelo menos, 27 das 81 missões de ajuda que requeriam coordenação, no Norte e no Sul de Gaza. Israel nega, consistentemente, comboios de ajuda ao Norte de Gaza, onde a escassez de alimentos é mais grave, pela concentração da ofensiva militar, nos primeiros dias da guerra. A situação chegou a ponto tão insustentável que outros países faziam a entrega de suprimentos por lançamentos aéreos.

Esta catástrofe humanitária exige resposta urgente e eficaz da comunidade internacional, que se mantém silente. Até quando?

2025.05.03 – Louro de Carvalho

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