Quando o bloqueio da ajuda humanitária a Gaza por Israel entrava
na nona semana, ante a silente inação da comunidade internacional, a situação
de fome e de caos sanitário agravava-se, a cada dia, prosseguindo, ao mesmo
tempo, os bombardeamentos e o número crescente de mortos.
Entretanto, o Tribunal Internacional de
Justiça da Organização das Nações Unidas (ONU), em Haia, nos Países Baixos,
auscultava cerca de duas dezenas de países, sobre a questão que lhe dirigiu a
Assembleia Geral da ONU, quanto às obrigações gerais e específicas de Israel,
enquanto potência ilegalmente ocupante da Faixa de Gaza e, cada vez mais, da
Cisjordânia.
Não sendo conhecida a decisão que os juízes do
TIJ tomarão, a quase totalidade dos depoimentos sustenta que Israel, além da
destruição e do terror que tem lançado na Palestina e das leis que aprovou, ao
arrepio do direito internacional, tem violado, sistematicamente, a Carta das
Nações Unidas, de que é subscritor, e infringido as disposições relativas ao
direito humanitário e aos direitos humanos. Em particular, desde que rompeu, a
2 de março, o cessar-fogo que acordara, os novos bombardeamentos, incluindo
sobre ajuntamentos de pessoas, configuram uma política de cerco e de extermínio
pela violência e pela fome. Contudo, além do caráter não vinculativo da decisão
do TIJ, a lentidão com que correm os processos dificilmente se conjuga com a
situação de emergência, cada dia, mais insuportável, em toda a Palestina.
Face a esta situação, Volker Türk, Alto-comissário
para os Direitos Humanos da ONU, exorta a comunidade internacional a agir
no sentido de levar Israel a cumprir o disposto nos instrumentos do direito internacional,
isto é, o dever de garantir o fornecimento de recursos básicos de sobrevivência
da população civil e de autorizar, sem condições, a entrada de ajuda humanitária
fornecida por terceiros, se for insuficiente a que deve fornecer. Isto não é
matéria discricionária, mas impositiva, sob pena de violação das normas específicas
do direito internacional a que Israel se vinculou. Ora, porque isso não é
respeitado, a comunidade internacional deve agir para impedir o colapso total
do apoio crítico para salvar vidas em Gaza, onde ataques israelitas continuam a
matar civis, inclusive, em abrigos e em unidades de saúde, segundo Volker Türk.
Desde 2 de março, segundo a ONU, Israel impediu a
entrada de alimentos, de combustível, de medicamentos e de outros recursos que
salvam vidas. As padarias pararam de funcionar, por falta de farinha e de
combustível, e esgotam-se os stocks
de alimentos. “Qualquer uso da fome da população civil como método de guerra
constitui crime de guerra, assim como todas as formas de punição coletiva”,
alertou o Alto-comissário.
O secretário-geral, António Guterres, dizia, há
dias, na sua conta, no X, que
Israel “deve proteger os civis e aceitar os planos de ajuda e facilitá-los”,
pois “a ajuda não é negociável”. E, numa perspetiva mais a médio-longo prazo,
avisava: “O Mundo não se pode dar ao luxo de ver a solução de dois Estados
desaparecer.” E deixava o apelo: “Não deixem que extremistas de nenhum dos
lados minem o que resta do processo de paz.”
***
O condenável comportamento de Israel foi denunciado, logo a
18 de dezembro de 2023, pela Human Rights Wash (HRW), com evidências de que
civis foram, deliberadamente, privados de acesso a comida e a água, o que já
indiciava que o governo Israel usava a fome de civis como estratégia de guerra
na Faixa de Gaza, o que é crime de guerra. As próprias autoridades israelitas
fizeram declarações públicas a expressar o objetivo de privar civis, em Gaza,
de comida, de água e de combustível. E a HRW sustentava que o governo de Israel
não pode atacar bens indispensáveis à sobrevivência da população civil, devendo
suspender o bloqueio a Gaza e restaurar a eletricidade e o abastecimento de
água.
As forças israelitas
bloqueavam a entrada de água, de alimentos e de combustível, enquanto impediam,
intencionalmente, a assistência humanitária, arrasando áreas agrícolas e privando
a população civil de insumos indispensáveis à sua sobrevivência.
Desde que o Hamas
atacou Israel, a 7 de outubro de 2023, altos funcionários israelitas, incluindo
os ministros da Defesa, da Segurança Social e da Energia, declararam,
publicamente, o objetivo de privar civis de comida, de água e de combustível,
em Gaza, declaração que reflete a prática das forças israelitas. E outros
funcionários declararam, publicamente, que a ajuda humanitária a Gaza seria
condicionada à liberação de reféns detidos pelo Hamas ou à destruição do Hamas.
“Por mais de dois meses, Israel tem privado a população de Gaza de alimentos e
água, uma política incentivada ou endossada por altos funcionários israelenses,
refletindo a intenção de matar civis de fome como estratégia de guerra”,
declarou Omar Shair, diretor de Israel e Palestina da HRW, vincando: “Os líderes
mundiais deveriam pronunciar-se contra esse abominável crime de guerra, que tem
efeitos devastadores na população de Gaza.”
A HRW, entre 24 de
novembro e 4 de dezembro de 2023, ouviu 11 palestinianos deslocados em Gaza,
que indicaram as dificuldades em satisfazer as necessidades básicas, não sabendo
como sobreviveriam. E, no Sul de Gaza, os entrevistados descreveram a escassez
de água potável e a falta de alimentos, que ocasionou lojas vazias, longas
filas e preços exorbitantes.
O Programa Mundial
Alimentar (PMA) da ONU relatou, a 6 de dezembro, que nove, em cada 10,
domicílios, no Norte de Gaza, e dois, em cada três, domicílios, no Sul de Gaza,
passaram sem comida, pelo menos, um dia e uma noite inteira. Ora, o direito
humanitário internacional e as leis da guerra proíbem a fome de civis como arma
de guerra. O Estatuto de Roma, do TPI, estabelece que privar civis de “bens
indispensáveis à sua sobrevivência, impedindo, inclusive, o envio de socorros”,
é crime de guerra. E a intenção criminosa não exige a admissão do agressor,
podendo ser inferida da totalidade das circunstâncias da campanha militar.
Além disso, o bloqueio
contínuo de Gaza por Israel e o seu fechamento por mais de 16 anos, equivale à
punição coletiva da população civil, que é crime de guerra. Enquanto potência
ocupante em Gaza, nos termos da Quarta Convenção de Genebra, Israel tem o dever
de garantir que a população civil receba alimentos e suprimentos médicos.
A 17 de novembro de
2023, o PMA alertava para a possibilidade imediata de inanição, já que os
suprimentos de alimentos e de água eram, praticamente, inexistentes. A 3 de
dezembro, falava de alto risco de fome, com o sistema alimentar à beira do
colapso. A 6 de dezembro, declarava que 48% dos domicílios, no Norte de
Gaza, e 38% das pessoas deslocadas, no Sul de Gaza, haviam experimentado
“níveis severos de fome”. Porém, já a 3 de novembro, o Conselho Norueguês para
Refugiados anunciava que Gaza tinha necessidade catastrófica de água, de saneamento
e de higiene, pois foram desativadas instalações de águas residuais e de dessalinização,
por falta de combustível e de eletricidade. E já antes de 7 de
outubro, Gaza quase não tinha água potável.
Antes do conflito
atual, cerca de 1,2 milhões dos 2,2 milhões de pessoas que habitavam em Gaza
estavam em insegurança alimentar aguda, e mais de 80% dependiam de ajuda
humanitária. Israel mantinha (e mantém) controlo abrangente sobre Gaza,
incluindo o movimento de pessoas e de bens, as águas territoriais, o espaço
aéreo, a infraestrutura de que Gaza depende e o registo da população, o que
tornou a sua população submetida a longo bloqueio ilegal.
Após a imposição do
bloqueio total, a 9 de outubro, as autoridades israelitas retomaram o fornecimento
de água a partes do Sul de Gaza, a 15 de outubro e, a partir de 21 de
outubro, permitiram a chegada de ajuda humanitária limitada, pela travessia de
Rafah, fronteira com o Egito. Porém, Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel,
disse, a 19 de outubro, que não permitiria a entrada de ajuda humanitária, na
forma de alimentos e de medicamentos, em Gaza, pelas suas estradas enquanto os
seus reféns não fossem devolvidos. E o governo continuou a bloquear a entrada
de combustível, até 15 de novembro, apesar dos alertas para as graves
consequências, levando ao encerramento de padarias, de hospitais, de estações
de bombeamento de esgoto, de estações de dessalinização e de poços –
instalações indispensáveis à sobrevivência da população civil.
Quantidades limitadas
de combustível foram permitidas, a 4 de dezembro, mas Lynn Hastings,
coordenadora humanitária da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados, julgou-as
totalmente insuficientes. E, a 6 de dezembro, o gabinete de guerra de Israel
aprovou um aumento mínimo no fornecimento de combustível ao Sul de Gaza. Porém,
a 1 de dezembro, após o cessar-fogo de sete dias, o exército israelita retomou
o bombardeamento de Gaza e expandiu a sua ofensiva terrestre, declarando que as
operações militares no Sul não teriam menos força do que no Norte.
Enquanto os Estados
Unidos da América (EUA) pediam a Israel que permitisse entrada de combustível e
ajuda humanitária nos níveis do cessar-fogo, o coordenador do Ministério da
Defesa de Israel para atividades governamentais nos territórios interrompeu
toda a entrada de ajuda. Entregas limitadas de ajuda foram retomadas, a 2 de
dezembro, mas a níveis insuficientes, segundo o Escritório das Nações Unidas
para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA).
A par do bloqueio, os
ataques aéreos de Israel resultaram em generalizados danos ou em destruição de
objetos indispensáveis à sobrevivência dos civis. O bombardeamento das forças
israelitas, a 15 de novembro, ao último moinho de trigo de Gaza levou a que a
farinha produzida estivesse indisponível por tempo indeterminado. O Escritório
das Nações Unidas para Serviços de Projetos (UNOPS) relevou que a
destruição da rede viária tornou difícil a entrega da ajuda a quem precisa pelas
organizações humanitárias. “Padarias e moinhos de grãos foram destruídos, bem
como agricultura, água e instalações de saneamento”, referia Scott Paul,
consultor sénior de políticas humanitárias da Oxfam América, à Associated Press, a 23 de novembro de
2023.
A ação militar de
Israel teve impacto devastador no setor agrícola. O bombardeio contínuo, com a
escassez de combustível e água, além do deslocamento de mais de 1,6 milhões de
pessoas para o Sul de Gaza, tornou a agricultura impossível. Um relatório de 28
de novembro, do OCHA referia que a criação de gado, no Norte, enfrentava a
fome, por falta de ração e de água, e que as plantações estavam abandonadas e
danificadas, devido à falta de combustível para bombear água para a irrigação.
Problemas, como a escassez de água e o acesso restrito a terras agrícolas
localizadas perto da fronteira, agravaram as dificuldades dos agricultores
locais, muitos dos quais estavam deslocados. A 28 de novembro, o Escritório
Central de Estatísticas da Palestina disse que Gaza perdia, por dia, mais
1,6 milhões de dólares, na produção agrícola.
A 28 de novembro, o
Setor de Segurança Alimentar da Palestina relatou que mais de um terço das
terras agrícolas, no Norte, foi danificado nos confrontos. Imagens de satélite
analisadas pela HRW indicavam que, desde o início da ofensiva de Israel, a 27
de outubro, foram arrasadas terras agrícolas, incluindo pomares, estufas e
fazendas no Norte de Gaza, pelo que Israel deveria cessar o uso da fome de
civis como arma de guerra, acatar a proibição de ataques a insumos
indispensáveis à sobrevivência de civis, suspender o bloqueio a Gaza, restaurar
o acesso a água e à eletricidade e permitir a entrada de alimentos, de ajuda
médica e de combustível, necessários em Gaza, inclusive através da sua passagem
em Kerem Shalom.
Os governos deveriam
pedir a Israel o fim de tais abusos. E os EUA, o Reino Unido, o Canadá, a
Alemanha e outros países deveriam suspender a assistência militar e a venda de
armas a Israel, enquanto o governo cometer abusos generalizados e graves
equivalentes a crimes de guerra contra civis, com impunidade. “O governo
israelita está a agravar o castigo coletivo que impõe à população civil
palestiniana e o bloqueio de ajuda humanitária com o uso cruel da fome como
arma de guerra”, disse Shakir.
***
Nos conflitos armados que assolam o Mundo, a fome deliberadamente utilizada como arma de guerra emerge como uma das mais cruéis estratégias de dominação, ignorando os princípios básicos do direito internacional humanitário, consagrados na Quarta Convenção de Genebra e no direito humanitário internacional consuetudinário, que visam proteger civis, em tempos de guerra. Ora, ao privar, deliberadamente, populações civis de acesso a alimentos e a outros recursos essenciais, as partes envolvidas no conflito comprometem a segurança alimentar e violam os direitos humanos fundamentais dos mais vulneráveis.
Essa estratégia desumana persiste, há séculos. E por estar em causa Israel, é de referir que, durante o Cerco de Jerusalém, na I Guerra Judia-Romana, em 70 d.C., como o exército romano a isolar a cidade, o correu o célere esgotamento dos suprimentos de alimentos, de que resultaram graves consequências, como o acúmulo de corpos, nas ruas, e surtos de doenças, devido à decomposição. A falta de comida levou os habitantes a extremos, consumindo couro e folhas, e ao canibalismo, como documentado pelo historiador Flávio Josefo, o que provocou a deterioração das defesas e permitiu que os Romanos rompessem as proteções da cidade, resultando na devastação de locais sagrados, como o Segundo Templo, e no massacre dos sobreviventes.
O Cerco de Jerusalém foi um catalisador da Diáspora Judaica e provocou
mudanças significativas nas práticas religiosas do judaísmo. Quase dois mil
anos depois, a fome ainda se usa como arma de guerra, não só em Gaza, mas em
muitos outros lugares, constituindo o Sudão um dos mais notórios, a seguir ao
etnocídio da Alemanha nazi. Porém, no contexto atual, os atores invertem-se,
com o governo israelita como utilizador despótico desse mecanismo desumano.
As autoridades de Israel impuseram punições coletivas à população civil de
Gaza, privando-a de itens básicos e usando a fome como arma de guerra, constituindo
tais ações graves violações da Quarta Convenção de Genebra e do direito
humanitário internacional consuetudinário.
A Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar (IPC) publicou,
em junho de 2024, uma análise que concluía que metade de Gaza, cerca de 1,1
milhão de pessoas, enfrentava insegurança alimentar. Essa situação resultou,
para lá da guerra, do descumprimento do governo israelita das suas
responsabilidades de proteção ao povo palestino, dificultando a acessibilidade
de ajuda humanitária na região. Práticas, como o arrasamento de terras, a
privação de insumos essenciais e o assassinato seletivo de agentes humanitários
agravam a crise.
O abastecimento de água e de alimentos à população só pode chegar a Gaza,
através de Israel, que bloqueia a passagem. Segundo a Agência das Nações Unidas
de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), os Israelitas vetaram, até
junho de 2024, pelo menos, 27 das 81 missões de ajuda que requeriam coordenação,
no Norte e no Sul de Gaza. Israel nega, consistentemente, comboios de ajuda ao
Norte de Gaza, onde a escassez de alimentos é mais grave, pela concentração da
ofensiva militar, nos primeiros dias da guerra. A situação chegou a ponto tão
insustentável que outros países faziam a entrega de suprimentos por lançamentos
aéreos.
Esta catástrofe
humanitária exige resposta urgente e eficaz da comunidade internacional, que se
mantém silente. Até quando?
2025.05.03 – Louro de Carvalho
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