domingo, 4 de maio de 2025

É preciso que se dê voz a Pedro e que ela seja ouvida e seguida

 
A liturgia do 3.º Domingo da Páscoa, no Ano C, talvez seja pretexto para reflexão oportuna, no momento em que os eminentíssimos cardeais se encontram nas Congregações Gerais, para se darem a conhecer em ordem à eleição do Sumo Pontífice – que é, mais do que o sucessor de Francisco, o sucessor de Pedro –, bem como para refletirem sobre os grandes desafios que se levantam à Igreja Católica e a fim de darem indicações ao cardeal camerlengo para a gestão dos assuntos correntes da Santa Sé, respeitando o princípio clássico “sede vacante, nihil innovetur” (nada se altere durante a vacância da sede).     
A liturgia desta dominga encaminha-nos o olhar para o acontecimento capital que celebramos no “grande domingo” que vai desde o dia da Ressurreição até ao Pentecostes. De facto, a ressurreição de Jesus, convida-nos a descobrir como deve agir a comunidade cristã para concretizar, no Mundo, a obra salvadora de Jesus.
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primeira leitura (At 5,27b-32.40b-41) mostra como a Igreja de Jerusalém testemunha a vida nova que brota do Ressuscitado. Embora as autoridades judaicas tentem silenciar os apóstolos, eles estão decididos a oferecer a todos os habitantes de Jerusalém a boa nova de Jesus. A verdade da vitória definitiva de Deus sobre a morte e sobre o pecado tem de ser anunciada de cima dos telhados, para que o Mundo encontre no Evangelho uma nova esperança.
O sumo-sacerdote lembrou aos apóstolos a gravidade do seu proceder. Tinham sido proibidos, formalmente, de darem testemunho de Jesus. Porém, não respeitaram a proibição e acusam as autoridades judaicas de serem responsáveis pela morte de Jesus. A ação dos apóstolos constitui grave atentado à ordem social e às respeitáveis instituições que a garantem. Porém, o autor dos Atos dos Apóstolos, não dá grande importância à gravidade da acusação do sumo-sacerdote. O que lhe interessa é dar voz a Pedro e, através dele, formular o princípio básico que orienta os discípulos de Jesus ao longo do seu caminho histórico: “Deve obedecer-se antes a Deus que aos homens”. A voz de Deus deve ser, para os discípulos de Jesus, a referência decisiva, a orientação fundamental, a verdade suprema.
Nestes termos, os eminentíssimos cardeais, deverão apelar a sua consciência eclesial e escolher, de dentro do conclave ou, mesmo, do seu exterior, alguém que, no futuro próximo, corporize o que melhor faça com a Igreja cumpra a sua missão. Para tanto, devem escutar o Espírito Santo e estar atentos ao “sensus Ecclesiae” (ao pulsar do povo de Deus), dando voz ao sucessor de Pedro, sem perderem a sua própria voz. Deve o futuro Papa ter a capacidade e a coragem de pôr a mão nas feridas da Igreja e do Mundo, denunciar as personalidades e as estruturas do mal e promover o reconhecimento efetivo da adultez e da voz de todos os membros da Igreja, não por via de concessão, mas do dever e do direito de cada um.     
Depois daquela asserção lapidar de que “deve obedecer-se antes a Deus que aos homens”, Pedro formula, ante o Sinédrio, o kérigma cristão primitivo acerca de Jesus: “O Deus dos nossos pais ressuscitou Jesus, a quem vós destes a morte, suspendendo-O no madeiro. Deus exaltou-O pelo seu poder, como Chefe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento e o perdão dos pecados. E nós somos testemunhas destes factos, nós e o Espírito Santo que Deus tem concedido àqueles que Lhe obedecem”. Esta fórmula não apresenta grandes novidades doutrinais, em relação a outras formulações do kérigma cristão primitivo acerca de Jesus: a morte na cruz, a ressurreição, a exaltação à direita de Deus, a sua apresentação como salvador, o testemunho dos apóstolos por ação do Espírito. Aqui, acentua-se – mais do que noutras formulações – a responsabilidade do Sinédrio no escândalo da cruz e a contraposição entre a ação de Deus e a das autoridades judaicas em relação a Jesus.
Assim, a oposição das autoridades judaicas serve para relevar a realidade sobre-humana da mensagem de Jesus, a sua força indomável, o dinamismo dessa comunidade que, animada pelo Espírito, prossegue, no Mundo, a missão de Jesus. Se Ele foi rejeitado e morreu na cruz, é natural que os apóstolos, fiéis a Jesus e ao seu projeto, se defrontem com oposição semelhante. Contudo, os seguidores de Jesus, animados pelo Espírito, estão mais preocupados com a fidelidade ao caminho de Jesus do que às ordens ou aos interesses dos homens.
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Evangelho (Jo 21,1-19) começa por um relato de um episódio que mais parece uma parábola sobre o modo de os discípulos de Jesus concretizarem a missão que lhes foi confiada. Chamados a libertar os irmãos do mar de sofrimento em que vivem mergulhados, os discípulos têm de contar com Jesus e de seguir as orientações de Jesus. Se ignorarem Jesus, cairão no ativismo estéril, sem sentido e sem objetivo. Se se refugiarem num falso espiritualismo inativo, a missão ficará adiada. Porém, se agirem de acordo com as orientações de Jesus, serão verdadeiros arautos da salvação.
O relato sobre a missão da comunidade recorre a linguagem simbólica e tem caráter de “sinal”, pois aponta para uma realidade além da literalidade. Apresenta os discípulos, não todos os apóstolos que nós conhecemos, mas Simão Pedro, Tomé, Natanael, Tiago, João e mais dois não identificados. São sete. Ora, o número sete é, na cultura hebraica, símbolo de totalidade, de plenitude. Por isso, os sete discípulos representam a totalidade (“sete”) da comunidade de Jesus, empenhada na missão e disponível para ir ao encontro de todos os povos e nações. Portanto, a missão da Igreja é a missão dos discípulos “todos, todos, todos”, que abrange as pessoas “todas, todas, todas”. Naqueles dois discípulos não identificados estamos representados todos nós.
A atividade é a pesca. Sob a imagem da pesca, os Sinóticos representam a missão que Jesus confia aos discípulos (“Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens”). O mar era, na cultura judaica, o lugar das forças maléficas que escravizam o homem e o impedem de ter vida em abundância. Portanto, a missão dos discípulos é libertar os homens que vivem imersos no mar do sofrimento, da escravidão e da morte. Pedro toma a iniciativa de ir pescar, pois é ele que preside à missão e os outros seguem-no. Mais uma vez se referencia o lugar proeminente de Pedro na animação da Igreja, o que se espera do novo sucessor de Pedro, isto é, que tome a iniciativa, que anime a Igreja e que suscite a autoanimação da Igreja.  
A pesca é feita de noite, no tempo da escuridão, na ausência de Jesus (“enquanto é de dia, temos de trabalhar, realizando as obras daquele que Me enviou: chega a noite, quando ninguém pode trabalhar; enquanto estou no Mundo, sou a luz do Mundo”). De noite, isto é, com Jesus ausente, o trabalho dos discípulos dá num rotundo fracasso (“sem Mim, nada podeis fazer”).
Entretanto, chega a manhã e chega Jesus. E Ele é a luz do Mundo (“Eu sou a luz do Mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida”). A presença de Jesus abre perspetivas novas à ação discipular. Jesus não está com eles no barco, mas em terra: não é Ele que lança as redes. Assim, no tempo da Igreja, a ação de Jesus no Mundo compete aos discípulos.
Focados no esforço inútil, os discípulos nem reconhecem Jesus, quando Ele Se apresenta. O grupo está desorientado e dececionado, ao ser posto em evidência pela pergunta de Jesus (“tendes alguma coisa de comer?”). Porém, Jesus dá indicações e as redes enchem-se de peixes: o fruto deve-se à docilidade com que os discípulos seguem as indicações de Jesus. Nestes termos, o êxito não se deve ao esforço humano, mas à presença viva e à Palavra do Ressuscitado.
O resultado da pesca faz com que um discípulo O reconheça. Este discípulo – o discípulo amado – é o que está próximo de Jesus, em sintonia com Ele e que faz, de forma intensa, a experiência do amor de Jesus, sendo capaz de ler os sinais que identificam Jesus e de perceber a sua presença por detrás da vida que brota da ação da comunidade em missão.
A refeição (pão e peixes assados nas brasas) com que Jesus acolhe os discípulos em terra é sinal do amor, do serviço, da solicitude de Jesus pela comunidade em missão. Descortina-se, aqui, uma alusão à Eucaristia, ao pão que Jesus oferece, à vida com que Ele todos os dias continua a alimentar a comunidade em missão.
O número dos peixes apanhados – 153 é número triangular, que resulta da soma dos números de um a 17. O número 17 não é número bíblico. Porém, 10 e sete são: ambos simbolizam a plenitude e a universalidade. Em todo o caso, São Jerónimo tem outra explicação: os naturalistas antigos distinguiam 153 espécies de peixes: assim, o número faria alusão à totalidade da Humanidade (“peixes”), reunida na Igreja. Enfim, significa totalidade e universalidade.
A pesca milagrosa no mar de Tiberíades, após a ressurreição de Jesus, é uma parábola sobre a missão da Igreja nascida de Jesus. Ao longo do caminho que a Igreja percorre pela História, Jesus tem de continuar a ser, a cada passo, o centro (“colocou-Se no meio deles”), a referência, o princípio e o fim. O projeto e a missão são d’Ele, as orientações veem d’Ele e os resultados dependem d’Ele. A comunidade em missão tem de estar sintonizada com Jesus e tem de estar à escuta da Palavra e das orientações de Jesus; tem de fazer o que Ele mandar, de lançar as redes para onde Jesus indicar, de viver de acordo com o estilo e com os valores que Ele definiu. Igreja que perca Jesus de vista nunca será sinal e testemunha da salvação de Deus junto dos homens e mulheres que vivem imersos no mar do sofrimento e da morte. Não será Igreja.
A seguir, somos colocados ante um diálogo entre Pedro e Jesus, que gira à volta da pergunta de Jesus, feita por três vezes: “Simão, filho de João, tu amas-Me?”. A pergunta conexa com a missão que Jesus quer atribuir a Pedro, constituirá desagravo pelo facto de, em casa do sumo-sacerdote, durante a Paixão, Pedro ter, por três vezes, negado conhecer Jesus. Então, Pedro ainda não tinha aceitado ir com Jesus, de forma incondicional, no caminho do amor e da entrega. Agora, à tríplice pergunta de Jesus, Pedro responde com a tríplice afirmação do seu amor. Ora, à medida que Pedro toma consciência da importância do amor, Jesus vai-lhe confiando o rebanho: “apascenta os meus cordeiros”; “apascenta os meus cordeiros”; “apascenta as minhas ovelhas”.
Embora, o texto latino use, nas três vezes em que Jesus interroga Simão, o verbo “diligo” (“diligis me?”) a significar “amar” e, na resposta de Pedro, o verbo “amo” (“tu scis quia amo te.”), o texto grego usa, nas perguntas de Jesus o verbo “agapáô” (“agapâs me?”), ao passo que a respostas de Pedro é sempre com o verbo “philéô” (“Kýrie, sý oidas hóti philô se”). Jesus queria de Pedro um amor maior do que o de todos e que fosse amor total, de comunhão, de entrega, de dádiva, ao passo que Jesus respondeu com o amor de amigo.
Pedro ficou triste por Jesus lhe ter feito a pergunta por três vezes, mas sempre Lhe respondeu, chamando-Lhe “Kýrie” (Senhor), confessando que Ele sabe tudo.
Quem está capacitado para presidir à comunidade cristã não é o que tem capacidade de liderança, ou o que tem boa preparação teológica, mas o que ama muito a Jesus. Amando Jesus, estará pronto para cuidar, servir, alimentar, comunicar vida, talvez até dar a vida pelos irmãos. Quem ama Jesus e faz de Jesus o centro da sua vida, tratará com amor os irmãos. Na ceia da despedida, Pedro recusava que Jesus lhe lavasse os pés, pois não queria aceitar que o mais importante tivesse de servir humildemente, mas, agora, ama verdadeiramente Jesus e não terá problema em servir e amar os irmãos, até às últimas consequências. Está, agora, preparado para seguir Jesus no caminho da entrega e do dom da vida por amor. Jesus refere-se a isso, ao dizer-lhe: “Em verdade, em verdade te digo: quando eras mais novo, tu mesmo te cingias e andavas por onde querias; mas quando fores mais velho, estenderás a mão e outro te cingirá e te levará para onde não queres”. Pedro morrerá na cruz, como Jesus e por amor a Jesus – um amor de “agapê” (total).
É isto que se pretende do futuro Papa: que ame Jesus e cuide de todos com amor total.
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Na segunda leitura (Ap 5,11-14), os anjos, o povo de Deus, a Humanidade inteira, todos os seres criados aclamam Jesus, o Cordeiro imolado que, vencendo a morte, trouxe aos homens a libertação. Pode, assim, concretizar-se o projeto de Deus de salvação a todas as criaturas “que há no Céu, na Terra, sob a terra, no mar” e no universo inteiro. Somos convidados a associar-nos, também nós, a este cântico jubiloso. No centro da cena está o Cordeiro”, que recebeu o livro da mão do que estava sentado no trono (Deus) e o abre para proclamar o projeto de Deus.
A figura do Cordeiro é, na catequese tradicional de Israel, símbolo com grande densidade teológica. Evoca e sintetiza três figuras: o servo de Javé, o manso cordeiro levado ao matadouro; o cordeiro pascal, cujo sangue foi, quando Deus decidiu tirar o seu povo do Egito, sinal eficaz de vitória sobre a escravidão; e o cordeiro apocalítico”, vencedor da morte, guia do rebanho, dotado de poder e de autoridade real. O Apocalipse recupera esta figura para, de modo original e sintético, descrever o mistério de Cristo morto (imolado em favor de “muitos”, na linha do “servo de Javé”), ressuscitado (que nos libertou da escravidão da morte, na linha do “Cordeiro” pascal do Êxodo) e glorificado (colocado por Deus à sua direita e constituído Rei do Mundo e da História, na linha do “Cordeiro” régio da literatura apocalítica).
Esse “Cordeiro” – imolado, libertador, rei – recebe o “livro” das mãos de Deus. Então, inicia-se a solene liturgia de entronização do “Cordeiro”, em que todos os presentes participam. Ouvem-se, primeiro, as vozes dos “quatro viventes” (que representam toda a criação) e dos 24 anciãos (que representam a totalidade do Povo de Deus): cantam a glória do Cordeiro que foi imolado, Aquele que resgatou para Deus homens de toda a terra e que fez de toda a gente resgatada um reino de sacerdotes. Juntam-se ao coro os anjos que exaltam o Cordeiro e proclamam que Ele é “digno de receber o poder e a riqueza, a sabedoria e a força, a honra, a glória e o louvor”; e, ainda, se juntam ao coro “todas as criaturas que há no Céu, na Terra, sob a terra e no mar”, que proclamam que o Cordeiro é digno de receber “o louvor e a honra, a glória e o poder pelos séculos dos séculos”. É uma imensa liturgia cósmica, na qual a criação inteira celebra o Cristo imolado, ressuscitado, vencedor, e faz dele o centro do “cosmos”. Por fim, o povo de Deus (“os anciãos”) prostra-se em adoração ante o Cordeiro, que é, para todos, o Rei do universo. Nós também somos convidados – especialmente, no tempo pascal – a participar nesta liturgia jubilosa e a prostrarmo-nos em adoração ante o Cordeiro que nos libertou do pecado e da morte.
A Igreja precisa de um Papa que seja porta-voz e vigário do Cordeiro que liberta, não de um detentor de um poder que esmague e se afirme como absoluto. Poder é servir!
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“Eu vos louvarei, Senhor, porque me salvastes.”
“Eu Vos glorifico, Senhor, porque me salvastes / e não deixastes que de mim se regozijassem os inimigos. / Tirastes a minha alma da mansão dos mortos, / vivificastes-me para não descer à cova.
“Cantai salmos ao Senhor, vós os seus fiéis, / e dai graças ao seu nome santo. / A sua ira dura apenas um momento / e a sua benevolência a vida inteira. / Ao cair da noite vêm as lágrimas / e ao amanhecer volta a alegria.
“Ouvi, Senhor, e tende compaixão de mim, / Senhor, sede Vós o meu auxílio. / Vós convertestes em júbilo o meu pranto: / Senhor meu Deus, eu Vos louvarei eternamente.”
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“Ressuscitou Jesus Cristo, que criou o universo e Se compadeceu do género humano. Ele é o Senhor”

2025.05.04 – Louro de Carvalho


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