Trabalhei,
durante o ano letivo de 1975/1976, em Vila Nova de Foz-Coa, a então vila (hoje
cidade) de que guardo boas recordações das gentes. Todavia, a paisagem
envolvente, serrilhada de montes e vales, testemunhava um misto de aridez e de
colorido, ou seja, a nudez dos montes, entrecortada pelas variegadas cores dos
amendoais e dos pessegueiros estrategicamente colocados, bem como pelos pombais
que branquejavam ao longe. Entretanto, li dois artigos da National
Geographic, que me remeteram para a beleza
escondida por trás da aridez predominante, em crescendo, à medida que nos deslocamos
para montante do rio Coa, ao encontro de soberba paisagem, mas noutra
altimetria.
***
Um dos
artigos é de Isabella Tree, atualizado a 20 de maio do ano corrente, e releva o
papel dos grandes herbívoros, que protagonizaram, na década de 1990, notável
campanha de preservação do património artístico e, agora, alimentam um belo e
útil projeto de renaturalização que preserva e valoriza os espaços naturais.
Com efeito, a Rewilding Portugal, organização sem fins lucrativos, criada há cinco anos, julga
este momento um ponto de viragem. Na pedregosa encosta adjacente ao Ermo das Águias
– zona protegida de quase 700 hectares, no vale do Coa –, em cerimónia,
protagonizada por duas dezenas dos seus funcionários, na maioria, jovens, Pedro
Prata, líder da equipa, junto do parceiro
da Rewilding Europe cortou a fita, perante 60 pessoas. Contudo,
em vez de palmas, a palavra de ordem foi silêncio e o pedido foi de agitação de
mãos, para os 16 animais encurralados por vedação elétrica nas instalações de
aclimatização não se assustarem.
Trata-se de tauros – assim denominados
em evocação do touro adotado por Zeus no mito fundador da Europa
– selecionados de raças espanholas, portuguesas, italianas e de outras
variedades antigas com proximidade genética com o ancestral comum, o auroque.
Grandes manadas de auroques, que foram os mais robustos animais do continente –
mais pesados do que os bisontes, com chifres poderosos – deambulavam, por cá, tal
como as manadas de gnus na África. O último pereceu, em 1627, na floresta de Jaktorów,
na Polónia. Porém,
como refere a colunista, o ADN do auroque sobreviveu nos descendentes,
domesticados há dez mil anos, para servirem de bestas de carga e para
fornecerem a carne, o leite e a pele.
O Programa
Tauros, fruto da colaboração entre a fundação holandesa Stichting Taurus e
a Universidade de Wageningen, usa o genoma do auroque, sequenciado a partir de um macho
datado de há 6700 anos descoberto em escavação no Reino Unido,
para identificar no gado atual as suas principais caraterísticas. Daí adveio
um auroque
2.0 para utilizar em projetos de renaturalização. Na sua
quinta geração, já há 700 tauros espalhados por sete países da
Europa. E a sua presença marca o vale do Coa, corredor fluvial encaixado em gargantas profundas, com
matagais mediterrâneos, com carvalhais e com um planalto pedregoso. Pode
apreciar-se, 40 quilómetros a Norte, alguma da arte rupestre mais antiga do
continente, gravada há 30 mil a 12 mil anos. Grupos de caçadores-recoletores
deixaram para posteridade as suas presas nas lajes de xisto, perto da foz do Coa.
Assim, sobrepõem-se milhares de gravuras que lembram a depuração das obras de
Picasso: cavalos selvagens, veados, camurças, cabras-montesas e auroques.
Em
2022, como recorda Isabella Tree, a Rewilding Portugal libertou, no Ermo das Águias, 11
cavalos sorraia – raça de que restam cerca de 200, no Mundo – e que são os
dignos representantes das bestas representadas nas lajes de xisto. Durante a
dita agitação das mãos no ar, a pequena manada de tauros, importada dos
Países Baixos, três semanas antes, fitava, da estrema da vedação, os
circunstantes. As patas longas e os corpos esguios são mais atléticos do que os
das variedades que usamos para aproveitamento da carne e do leite e os seus
chifres afiados serão indispensáveis para assegurar à região uma população
estável de lobos.
Segundo a
colunista, a Rewilding Portugal aposta num corredor natural em toda a extensão do vale,
“uma linha de sobrevivência para espécies ameaçadas com distribuição fragmentada,
como lobos, abutres do Egito, grifos, bufos-reais e criaturas
mais discretas como sapos-parteiros, toupeiras e cobras-cegas”. E, porque,
mercê da dificuldade em agricultar, por via dos solos pedregosos, tem aumentado
o êxodo rural, está encontrada resposta alternativa à plantação de pinheiros –
financiada para terras pobres, tal como a pecuária – agora, diminuindo o risco
de incêndios. Assim, Pedro Prata assume: “O restauro do ecossistema não vai revitalizar
apenas a região do Coa, por via de uma economia sustentável. Vai manter-nos em
segurança.”
A Rewilding
Portugal já assegurou três áreas que totalizam 1500 hectares,
incluindo
o Ermo da Águia, financiado pelo Programa de Proteção de
Paisagens Terrestres e Costeiras Ameaçadas. O objetivo é ligar as diferentes áreas
e restaurar os sistemas hídricos e as populações selvagens de herbívoros e predadores. Paralelamente,
está a descolar o ecoturismo. Mais de 50 negócios locais, desde hotéis a
restaurantes, passando por guias de Natureza e produtores de mel, de amêndoas e
de outros produtos tradicionais formam a rede do Coa Selvagem. O
primeiro Festival Côa reuniu
iniciativas artísticas e culturais, em julho de 2023, e teve cerca de sete mil
visitantes.
Todavia, estas dinâmicas são
contestadas pelos criadores de gado de pequena dimensão, que
vivem da atividade agro-pastoril e se sentem “espremidos”, já que o interesse
da Rewilding Portugal na aquisição de terras fez disparar os preços.
Boa parte dos esforços da Rewilding Portugal, segundo Isabella Tree, foca-se na reabilitação dos predadores de topo. À escala nacional, a população de lobo ronda as três centenas e é perseguida, apesar da proteção legal. A caça, a fragmentação de habitat por via do pastoreio excessivo, a deflorestação e os incêndios reduziram o número de presas disponíveis, levando as poucas alcateias subsistentes a recorrer ao gado. Porém, a organização disponibilizou aos agricultores 41 vedações à prova de lobos e 101 cães de gado, incluindo cães serra da Estrela, uma das raças mais antigas da Península. E, à medida que os habitats se restauram, os veados e os javalis aumentam, mantendo os rebanhos a salvo, mas as campanhas de combate aos fogos florestais é que têm maior potencial para mudar mentalidades. Todos os anos a região é assolada por incêndios. Desde 2019, a equipa de vigilância da Rewilding Portugal percorreu 80 mil quilómetros em patrulhas de moto (“a sua simples presença das patrulhas tem um efeito dissuasor”), assinalando e combatendo focos de incêndio antes de se perder o controlo e até apanhando os responsáveis em flagrante.
Solos pobres e/ou degradados não retêm humidade e ficam dominados por plantas resistentes ao fogo. Aí, os tauros e os cavalos sorraia, os veados, os javalis, as cabras e os burros selvagens entram a consumir arbustos lenhosos e vegetação seca, reduzindo o combustível e incrementando o crescimento de espécies autóctones propagadas pelos excrementos ou transportadas no pelo e nos cascos. E dejetos, urina e cadáveres em decomposição ajudam a recuperar os solos, permitindo-lhes reter níveis mais elevados de humidade.
Ao abrir a
cerca, os
tauros são conduzidos em direção à abertura. Postos em
liberdade, precipitam-se em debandada. Enquanto calcorreiam, agilmente, o
relevo acidentado, desaparecem entre a vegetação e as rochas, reclamando a
paisagem. E, como o rio delimita uma das estremas do terreno da Rewilding
Portugal e secou, no verão, os tauros, mal foram libertados, aventuraram-se no
exterior, mas foram recapturados e deslocados para uma herdade do Alentejo. No
próximo Verão, com a vedação ampliada, regressarão, com mais 20 cabeças oriundas
dos Países Baixos.
***
Segundo o colunista, os arqueólogos sabem que, quanto mais se estuda o homem, mais nos apercebemos da importância da inter-relação das comunidades humanas. Assim, devem estar atentos, porque pode, a qualquer momento, surgir uma descoberta que revoluciona o que preenche um hiato de informação. E isso que aconteceu no vale do Coa.
De
acordo com a arqueóloga Lara Alves, estas novidades escrevem novo capítulo da História
da arte do Coa, através do estudo de duas tradições artísticas escassamente
sistematizadas que
sucedem aos grandes ciclos paleolíticos e “precedem os conhecidos conjuntos de
arte da Idade do Ferro e da Época Moderna”. No
abrigo do Ervideiro 2, várias figuras pintadas a vermelho, algumas femininas, revelaram-se
debaixo das crostas que as ocultavam, transportando a equipa de
investigadores para a ligação com um mundo inesperado: a arte subnaturalista
da “Arte Levantina”, emblemática da área do Levante
espanhol, a cerca de 600 quilómetros de distância na costa mediterrânea.
O investimento em projetos de investigação tem trazido a lume dados desconhecidos, mostrando novos aspetos da arte do Coa e dos seus artistas, incluindo a arte pintada pós-paleolítica. E, para lançar nova luz sobre este tipo de arte, entre 2012 e 2014, foi lançada uma investigação sobre os contextos arqueológicos da arte esquemática do vale do Coa, inscrito no plano estratégico do Centro de Estudos de Arqueologia, Arte e Ciências do Património de Coimbra, com o apoio logístico da Fundação Côa-Parque e da Associação Transumância e Natureza. A equipa de investigadores – Lara Bacelar Alves, João Muralha, Mário Reis e Bárbara Carvalho, fez o levantamento e o registo dos motivos pintados e a abertura de sondagens arqueológicas em vários abrigos sob rocha. Colocaram a nu o esplendor do sítio das Lapas Cabreiras, extraordinário abrigo onde foram identificados mais de 180 motivos pintados com diferentes pigmentos, com ampla gama de cores (vermelho, roxo, laranja) e com diferentes técnicas de execução: digitação, pintura com pincel e raspagem com crayon. As escavações permitiram exumar conjuntos de cerâmicas de várias épocas, desde o Neolítico Antigo (6.º e 5.º milénio a. C) até à Idade do Cobre ou início da Idade do Bronze (entre o fim do 3.º milénio a.C. e o início do 2.º).
Foi o primeiro passo da fascinante jornada que continuou através do projeto Landcrft dirigido por Lara Bacelar Alves e por João Muralha Cardoso, com apoio de uma equipa multidisciplinar internacional. “Abordando temáticas e ações diversas, incluindo escavação arqueológica de abrigos pintados, trabalhos de conservação e analítica ou disseminação junto da comunidade local, além do estudo das rochas e de abrigos com arte rupestre da Pré-História pós-paleolítica, este centrou-se, sobretudo, na revisão dos abrigos com pintura rupestre”, explicita o colunista.
A
pintura rupestre encontra-se apagada pelo tempo e escondida por líquenes ou por crostas
minerais formadas sobre a rocha. Por isso, recorreu-se a fotografia
de alta resolução com luz artificial de flashes sincronizados,
analisada com a ferramenta digital DStretch, que revolucionou o estudo da
arte rupestre pintada, pois realça a coloração esbatida das antigas pinturas.
Enquanto
se procuravam e registavam os motivos da arte esquemática dos agricultores e dos
pastores do Neolítico e Calcolítico, surgiam outras figuras pintadas em
abrigos, incluindo animais e figuras humanas, nestas últimas, incluindo várias femininas.
Estas figuras inserem-se num estilo subnaturalista, com preocupações realistas na
representação figurativa, numa tradição herdada da cultura
paleolítica. Segundo Mário Reis, o conjunto parece constituir duas tradições,
semelhantes no estilo e nos simbolismos que representam, mas diferentes nas origens,
e que se misturam no vale do Coa, de forma ainda por compreender. Uma parece
resultar da evolução local da arte paleolítica, que preenche as
paredes rochosas da região. A outra, ao mesmo tempo parecida e ligeiramente
diferente e cujos principais representantes são figuras humanas femininas,
denota filiação direta na distante arte levantina,
na única zona onde se encontram os seus paralelos mais próximos e evidentes.
O puzzle vem
sendo construído e recordam-se motivos de outros sítios que já lembravam este
tipo de arte subnaturalista, como as figuras do abrigo da Fraga D’Aia,
em São João da Pesqueira, ou as figuras das fases iniciais da arte do Tejo,
com as quais já antes se comparavam algumas figuras do Coa. Outros tinham sido
incluídos na arte esquemática, com a consciência de que havia algo dissonante.
Porém, não há dúvidas: no Coa, há motivos subnaturalistas pós-paleolíticos, uns de
provável origem local, outros com claras afinidades com os motivos da arte
levantina. Lara Alves e Mário Reis sustentam que está preenchido o hiato que
existia entre a arte do Paleolítico dos caçadores-recoletores e a arte esquemática
das sociedades produtoras. Segundo Lara Alves, o fim da Era Glaciar, há
cerca de 12 mil anos, não foi o fim da arte gravada, nem da cultura paleolítica. Durante
mais de um milénio, continuaram a fazer-se gravuras no Coa, segundo a tradição
cultural que ainda é paleolítica. Todavia, as primeiras mudanças que anunciavam
a evolução cultural profunda já se faziam notar, incluindo na arte rupestre.
A
temática da arte paleolítica mantinha-se, insistindo na simbólica
dos quatro principais animais caraterísticos da arte paleolítica: auroques, cavalos,
cervídeos e caprinos. No entanto,
nesta fase final, tornam-se dominantes os cervídeos e os caprinos, diminuem
os cavalos, quase desaparecem os auroques e foi introduzido o peixe, animal até então pouco
representado.
Isto
ocorreu no período Tardiglaciar ou Azilense, no fim do qual, sem se saber exatamente
quando, surgiu a nova era, o Mesolítico, isto é, o meio, entre o
Paleolítico e o Neolítico. Foi então que o Coa ganhou cor. Os
motivos tornaram-se, sobretudo, pintados e a figura feminina ganhou protagonismo
ímpar. Foi-se
abandonando o naturalismo da arte paleolítica. A este respeito, Lara
Alves comenta: “Apesar de menos conhecido, é um ciclo que abarca um momento
verdadeiramente crítico e transformador da Humanidade, porque remete para
as últimas
comunidades de caçadores-recolectores, descendentes das paleolíticas, em
processo de adaptação às alterações climáticas do pós-glaciar,
e que, em dado momento, darão os primeiros passos na produção dos seus próprios
recursos, com a adoção da pastorícia e cultivo de cereais, anunciando o mundo
tal como hoje o conhecemos.”
O processo repercutiu-se na interação com a Natureza, com
continuidades e descontinuidades, face aos antecessores, detetáveis na cultura
material e artística. Os indícios da mudança surgiram com a quebra da hegemonia
da representação de animais, da arte paleolítica, com a presença mais assídua de
figuras humanas de traço subnaturalista, isoladas
(representadas como sombras projetadas num plano), ou em contexto familiar, ou
em interação com animais. O advento da pastorícia e da agricultura, no V milénio
a.C., disseminou nova tradição artística, associada às
inovações neolíticas (cerâmica e pedra polida): a arte esquemática,
com a figura
humana reduzida aos traços mais elementares e
associada a figuras geométricas várias.
Para
estes estudos, cooperaram os saberes de várias ciências como a Matemática, a
Física e a Química, a Geologia, a Biologia e, obviamente, a História e a Geografia.
***
Enfim,
convivem bem a exploração arqueológica do Coa e a sua ecologia.
2025.05.20 – Abílio
Louro de Carvalho
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