quarta-feira, 21 de maio de 2025

O ser humano é complexo e pluridimensional

 
O ser humano é marcado pela complexidade, pois, desde logo, se apresenta como o rei da Criação e frágil na sua múltipla vulnerabilidade; como ávido de poder e de riqueza, mas podendo, ficar desconhecido e sem nada, de pé para a mão; como desejoso da paz, mas tendente a fazer a guerra; como amigo dos pobres, mas tentando enriquecer à custa deles; e como resistente à adversidade, mas sucumbindo às ondas de calor a chorar ou tiritando de frio, que lhe pode causar a morte, por hipotermia. O homem é o relativo absoluto  
Elencam-se várias dimensões humanas (ou do ser humano), em referência às áreas da vida que nos moldam a existência e que podemos cultivar em maior ou menor grau. Fazem a complexidade do ser humano, cuja existência envolve um conjunto de poderes e de possibilidades muito mais vastos e diversos do que aqueles a que os animais aspiram. Neste âmbito, cada um propõe a sua perspetiva do ser humano, coexistindo várias perspetivas.
As dimensões humanas, de particular interesse para a Educação e para a Psicologia, permitem a compreensão holística do ser humano (a sua totalidade), priorizando os diferentes aspetos e compreendendo como estão organizados, como funcionam ou quais deles recebem prioridade, em certas circunstâncias. Porém, não há consenso sobre quantas ou quais são essas dimensões do ser humano. Dependendo dos autores, variam entre três, quatro, cinco e oito dimensões diferentes, dependendo de quantas camadas diferentes da existência humana são levadas em conta, ou seja, do quão amplo ou específico é o nosso olhar.
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Macelo Marques Cabral em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/385869/alem-das-esferas-da-dimensao-biologica-e-psicologica-da-pessoa-humana, citando Victor Frankl, professor de Psiquiatria da Escola de Viena e criador da técnica logoterápica, vê o ser humano em três dimensões: a biológica, a psicológica e a noológica. A dimensão noológica é aquela onde se desenvolvem os fenómenos noéticos, ou seja, é a dimensão espiritual no sentido amplo, podendo deixar aninhar a ausência de “sentido existencial” e, por consequência, a perda “da vontade de sentido”.
Recorde-se que a logoterapia (do Grego “lógos”, discurso, sentido) e “therapeía”, terapia, indicando a terapia a partir do sentido da vida), ou análise existencial, é a abordagem terapêutica que se concentra na busca pelo sentido da vida como principal motivação humana. Tem por objetivo ajudar o paciente a encontrar sentido para suas experiências, incluindo o sofrimento, e a desenvolver atitude positiva, face às dificuldades. 
O filósofo romeno Constantin Noica1 sustenta que, a par das doenças somáticas e psíquicas, existem as “de ordem superior” ou “doenças do espírito”, que nenhuma neurose explica e que geram, entre outros sentimentos, o tédio metafísico, a consciência do vazio e do absurdo.
De graves lesões à vida e à saúde da pessoa podem surgir danos que limitam ou extinguem a vontade de viver, por via de ausência parcial ou completa de sentido existencial, o que Victor Frankl denomina de “vazio existencial”. Antes, podem de tais lesões surgir sequelas que atingem o ser humano na vida de relação e nos projetos de vida.
Há diferença qualitativa, embora os danos sejam ontologicamente semelhantes, entre as três espécies de danos existenciais, mas, para a reparação civil do dano existencial, há que entender a diferença entre as três esferas de dimensões humanas – na aceção ontológica – o que importará valor maior da verba compensatória para cada título, segundo a gravidade do dano.
Para Flaviana Rampazzo, o dano existencial, consubstancia-se “na alteração relevante da qualidade de vida”, isto é, em um “ter de agir de outro modo ou em um não poder mais fazer como antes, suscetível de repercutir, de forma consistente, e, quiçá, permanente, sobre a existência da pessoa”. Significa, ainda, “uma limitação prejudicial, qualitativa e quantitativa, que a pessoa sofre nas suas atividades quotidianas”.
O professor Carlos Fernandez Sessarego, no Peru, explanou o conceito de dano ao projeto de vida, como dano existencial. O projeto de vida é, em seu entender, “o rumo ou destino que a pessoa humana consagra à sua vida, ou seja, o sentido existencial derivado de prévia valoração, pois, enquanto ser humano, é livre para dar o rumo que desejar à sua própria existência, elegendo vivenciar, de preferência, certos valores, escolhendo determinada atividade de trabalho, perseguindo certos objetivos” – enfim, como diz Osvaldo Burgo, “tudo o que a pessoa decide fazer com o dom da sua vida”.
O impedimento ao projetar-se do homem por ato ilícito praticado por outrem ou mesmo o retardamento a esse vir a ser, ou o seu impedimento parcial, carateriza, dessa maneira, o dano extrapatrimonial a tal projeto de viver, impondo ao lesado a mudança substancial dos seus rumos a gerar sofrimento para lá do que possa suportar.
Por sua vez, o dano à vida de relação, embora imponha prejuízos existenciais à pessoa, difere do dano ao projetar-se na vida, por não abarcar um vir a ser frustrado, de modo total ou parcial, mas implica no aviltamento das condições de relacionamento do ser em sociedade, na profissão, no casamento, na vida sexual e/ou familiar etc., a ponto de desestruturar, total ou parcialmente, o seu quotidiano.
O dano ao projeto de vida e à vida de relação da pessoa pode derivar de lesão existencial à integridade física ou à integridade psicológica, ou porque fica sem aptidão física para determinado ofício – como o pianista com mãos e dedos decepados –, ou porque foi acometido de mal psíquico que o levou à depressão, por um período mais ou menos longo.
Seja como for, tais agressões provocam, no sujeito, a rutura do equilíbrio psicoemocional, isto é, a homeostase (estado livre de tensão). Porém, não se atinge o seu estado de equilíbrio espiritual, ou seja, quando esse estado é violado, a vontade de viver perde sentido, face a atos ultrajantes que aviltam a própria alma humana e o suporte espiritual. Ora, para Frankl, é nesse espaço que a noodinâmica é atingida, e não a homeostase. A homeostase pode ser solapada por atos menos graves e, em algumas situações, até resultará necessário, para o amadurecimento psíquico, um estado de tensão que produza a sua quebra. Portanto, o dano resultante da quebra noodinâmica do ser humano denomina de dano noológico.
Por exemplo, os judeus sobreviventes aos campos de concentração nazistas sofreram particular situação de intenso aviltamento da dignidade humana, tendo os fortes traumas resultado, para muitos, em verdadeiros danos noológicos, pela quebra – em cada vida humana – do equilíbrio do espírito e da sua correlata função noodinâmica.
Os danos existenciais podem, em síntese, ser classificados como: dano ao projeto de vida, dano à vida de relação e dano noológico. As duas primeiras espécies aparentam produzir efeitos semelhantes no homem, isto é, são decorrentes de agressões aos aspetos biológico e psicológico do sujeito e podem ter consequências limitadoras ou impeditivas do seu funcionamento corporal e psíquico, resultando em prejuízos consideráveis ao constante devir humano e aos relacionamentos de vida em múltiplas aceções. Já a terceira espécie decorre da quebra do equilíbrio noológico da pessoa humana e resulta da falta de vontade de viver em consequência do vazio existencial provocado pela lesão de tão grande magnitude, podendo-se asseverar que a sua caraterística mais importante e que o faz diferenciar sobremodo dos demais espécimes é o elemento qualitativo da lesão: a lesão que pode atingir o equilíbrio noodinâmico para lá do equilíbrio homeostático.
A pessoa pode ser atingida no aspeto biológico e não desenvolver graves consequências na psique ou no sentido existencial de vida. E pode desenvolver consequências no seu estado psíquico, sem ter sido atingida nos campos biológico e noético. Entretanto, não pode ter o seu estado espiritual atingido e não ter também sido atingido, a jusante, o seu estado psíquico, embora possa, na mesma situação, não ter sido atingido o seu estado biológico.
Em termos de gravidade provocada, pode se estabelecer que o dano resultante da quebra do equilíbrio noológico – que vem a reboque da quebra do equilíbrio psicológico – é o de maior intensidade na vida do cidadão e, por isso, merece atenção especial do juiz, a fim de possibilitar maior valor a título de reparação pecuniária. Extrai-se, daqui, importante conclusão para a teoria dos danos e para para a práxis judicial: diferente do dano moral, o dano existencial é um dano de consequência provada, ou o que, na doutrina italiana, se chamava de dano-consequência ou dano-prejuízo.
O jurista brasileiro Silvio Neves Baptista entende o dano como fenómeno unitário e como verdadeiro facto jurídico. É facto jurídico consequente de facto jurídico antecedente que, quando entra no mundo jurídico, produz efeitos indemnizatórios. Os factos antecedentes podem existir sem serem transformados em supostos jurídicos, quando o ordenamento não lhe atribua consequências indemnizatórias. Por exemplo, não são indemnizáveis prejuízos não provenientes de factos encobertos por excludentes de ilicitude.
De facto, a lesão a interesse juridicamente tutelado pressupõe determinada consequência jurídica, mas tal efeito pode estar predisposto no facto jurídico danoso (por exemplo, o dano à honra de um sujeito incapaz) ou necessitado de comprovação concreta (caso dos danos existenciais). Daí, é preferível à expressão “dano presumido” a expressão “dano de consequência predisposta”.
Assim, quanto aos efeitos ou consequências, os danos podem ser classificados em danos de consequência predisposta e danos de consequência concreta ou provada. Assim, o dano em sentido jurídico, não pode ser presumido, porquanto está sempre pressuposto e entretecido ao dever de reparar, isto é, havendo lesão a interesse tutelado pelo ordenamento jurídico, pressupõem-se as consequências sempre jurídicas, predispostas normativamente no facto danoso ou necessitadas de comprovação concreta, em cada caso.
O dano moral é dano de consequência predisposta, pois decorre da lesão a bem personalíssimo do sujeito, enquanto o dano existencial é uma espécie de dano extrapatrimonial de consequência concreta ou provada, cuja gradação poderá levar o juiz a fixar a verba compensatória, de acordo com a gravidade das consequências.
Em suma, os danos ao projeto de vida e à vida de relação merecem valor maior, na reparação do que os danos morais, e, dos danos existenciais, o dano noológico merece valor maior, a título de reparação, do que os danos ao projeto de vida e à vida de relação. 
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Em termos menos ligados aos contextos patológico e jurídico, é conveniente proceder a outra abordagem às dimensões humanas.
A dimensão biológica ou física refere-se à existência de ser vivo, ou seja, ao corpo. Portanto, os nossos aspetos básicos ou animais fazem parte da dimensão biológica, como a satisfação das necessidades vitais (fome, sede, etc.) ou os instintos (reprodução, etc.). Nesta dimensão, o ser humano é entendido como corpo, ou seja, como máquina biológica e bioquímica, que requer cuidado, atenção, que está suscetível a doenças e cujo cuidado passa pela alimentação, pela atividade física, pela higiene, pela saúde, etc.
A dimensão social ou sociopolítica ajuda a sobreviver e a progredir como espécie. O sermão de John Donne (1572-1631) proclamou que “nenhuma pessoa é uma ilha”, isto é, que os seres humanos não podem viver sozinhos, mas são gregários, tendendo a agrupar-se e a formar comunidades. Este dado, que teve papel vital no mundo pré-histórico, refere-se à nossa interação com os outros, isto é, à vida social e ao papel que desempenhamos na rede de contactos, nas trocas, nas associações e nas dinâmicas da comunidade.
A dimensão emocional ou afetiva tem a ver com o nosso mundo interno de sentimentos, de laços afetivos e de outras unidades psíquicas que facilitam a interação social. Representa o nosso modo mais primitivo e rudimentar de pensar, ou seja, a forma mais essencial de nos conectarmos com o Mundo. As emoções e os afetos são essenciais para o nosso bem-estar como indivíduos, e geri-los é a chave do nosso desempenho na sociedade. A pessoa emocionalmente frustrada terá dificuldade em realizar tarefas para as quais, de outro modo, estaria muito bem. Por outro lado, a vida afetiva costuma ser definida a partir da interação com os outros, principalmente, na infância e na adolescência, etapas fundamentais da formação pessoal. Porém, este dado nem sempre recebe a devida atenção e até atrapalha os aspetos mais refinados ou complexos do nosso pensamento.
A dimensão cognitiva ou intelectual resulta, em parte, do acúmulo de conhecimento ao longo de gerações. O que distingue os humanos dos animais é a capacidade de raciocínio, de dedução, de compreensão profunda (intuição) da realidade circundante, e a possibilidade de usar a criatividade para desenhar soluções com base no observado. É a inteligência ou razão.
O raciocínio é uma dimensão única e particular da nossa espécie, no planeta, intimamente ligada à linguagem e à capacidade de abstração e de representação. É também o resultado do acúmulo e da troca de informações que nos carateriza. Há milénios, tentamos sistematizá-lo em escolas, em academias e em diferentes sociedades do conhecimento, cujo papel histórico é produzir, preservar e transmitir o conhecimento de geração em geração, de forma eficiente. Assim, a vida intelectual do ser humano tem a ver com formação intelectual, com a capacidade de raciocínio e com o manejo do conhecimento necessário para uma vida o mais plena possível.
Por fim, a dimensão espiritual ou moral, um dos aspetos mais difíceis de definir do ser humano, tem a ver com o sentido de transcendência, ou seja, com os valores e com os aspetos da existência de índole moral, obedecendo ao imperativo de responder a questões do bem e do mal, como: “O que é viver uma vida boa? O que significa fazer errado? Como devem os seres humanos organizar-se para que o Mundo seja lugar bom para si e para as outras espécies? Que responsabilidades lhes traz a capacidade de pensar”? Perguntas como estas acompanharam o ser humano, na procura da descoberta da verdade essencial e fundamental do universo, cabendo aos filósofos, aos religiosos e aos artistas, cada um nos seus momentos históricos e nos seus contextos culturais propor um código ético e moral, isto é, o modo de viver correto, de acordo com os desígnios de um Deus, de uma lei ou uma tradição. Nestes termos, a dimensão moral ou espiritual do ser humano tem a ver com a capacidade de se sentir uma visão harmoniosa do Mundo, encontrando o seu lugar na ordem das coisas, algo que não pode ser encontrado, só pela cognição ou pela vida social. Também a arte aspira a responder a essas questões, pela sua linguagem complexa: arquitetura, escultura, pintura, música, literatura, etc.
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O ser humano é um verdadeiro, enigmático e complexo microcosmos.

2025.05.21 – Louro de Carvalho


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