Na gestão do quotidiano, os hospitais
têm dificuldade em assegurar as escalas dos turnos de urgência, devido à entrega
de milhares de minutas a declarar a indisponibilidade dos médicos para
trabalharem além das 150 horas extraordinárias legais. Em alguns fins de
semana, a falta de profissionais para escalar obriga serviços de urgência a
fechar. Assim, o aumento de 2500 milhões gastos com pessoal no Serviço Nacional
de Saúde (SNS), desde 2015, pouco valeu.
O Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, que abrange
os hospitais de Vila
Real, Chaves e Lamego concentra a urgência em Vila Real. Em Aveiro, a cirurgia
trabalha com dois elementos, em vez de três. Em Viana do Castelo, a medicina
interna funciona com a equipa reduzida: de quatro elementos passa para três,
até às 20 horas de 6 de outubro, e para dois, a partir dessa hora, como refere Paulo
Passos, cirurgião no hospital e dirigente da comissão executiva da Federação
Nacional dos Médicos (FNAM). E foram canceladas consultas e cirurgias
programadas para escalar internistas e anestesistas para a urgência. O mesmo sucede
com ecografias e com rastreios do cancro do colo do útero, em ginecologia e
obstetrícia. Em Viseu, com 100% dos pediatras indisponíveis para mais horas
extra, o Conselho de Administração pressiona internos do último ano a serem
equiparados a especialistas em turnos de urgência.
O Hospital de Leiria, com 100% dos cirurgiões gerais em
protesto, está sem apoio de cirurgia geral ao serviço de urgência desde as 20h
de 5 de outubro até às 8h do dia 8, situação que se replica em “todos os fins
de semana de outubro”, garante a cirurgiã Sandra Hilário, responsável sindical
regional da FNAM. Na especialidade de cardiologia, que, neste hospital, contém
a via verde coronária, as urgências encerraram das 8h do dia 7 às 8h do dia 8,
prevendo-se igual situação nos fins de semana de 13 a 15 de outubro e no último
do mês. E, na especialidade de ginecologia e obstetrícia, as urgências encerram
no mesmo período, com uma “situação mais delicada em novembro, porque se espera
que fechem de quinta a segunda-feira”.
Na Região Centro, o cenário não é animador. A 45 minutos de Leiria,
o Hospital de Santarém tem estado sem apoio de cirurgia geral e espera-se que a
especialidade de ortopedia se veja sem médicos para abrir urgência. Na Guarda, a
medicina interna, a especialidade basilar das urgências hospitalares, fechou
portas a 1 de outubro e continuará a fechar, como admite a Vitória Martins,
vice-presidente FNAM. Os constrangimentos são, principalmente, nos hospitais
periféricos, por disporem de menos recursos humanos e por os disponíveis fazerem
imensas horas extra, por vezes 300 ou 400 num ano. Todavia, o maior hospital da
região, o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), para onde são
encaminhados muitos doentes que não podem ser atendidos nos hospitais de média
dimensão, também contou com uma “adesão em peso” dos médicos de medicina interna,
que se fará sentir a partir de novembro.
A norte, vários hospitais mostraram a fragilidade da falta de
recursos humanos, com Penafiel a encerrar a urgência de cirurgia geral, pelo
menos, nos próximos 15 dias, e com Matosinhos a anunciar o encerramento da
urgência de cirurgia geral nos fins de semana de outubro. Na Unidade Local de
Saúde Alto Minho, que inclui os hospitais de Viana do Castelo e de Ponte de
Lima, concentra-se a urgência em Viana do Castelo, mas está encerrada, para
cirurgia geral, das 8h de 6 outubro até às 8h do dia 8, depois de todos os
cirurgiões terem entregado minutas de recusa a mais horas extraordinárias. Nem
os tarefeiros têm sido solução. E Paulo Passos explica: “Muitas vezes os
prestadores de serviço são colegas que estão nos quadros de outro hospital.
Provavelmente, nesta situação, também eles entregaram minutas e não lhes
ficaria bem.”
***
Esta situação de protesto – a opção do SNS por tarefeiros e
por horas extraordinárias dos médicos dos quadros é antiga: liberta o Estado do
aumento da despesa estrutural, anatematizado pela União Europeia (UE) –
agudizou-se a partir de 18 de agosto, sábado de festividades em Viana de
Castelo. O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, voltara a adiar as negociações
com os sindicatos, escudando-se na fé de que a dedicação exclusiva resolveria o
problema e alegando que este sistema vem de muito longe. Assim, duas médicas da
escala de urgência do hospital, querendo desfazer o nó, decidiram escrever-lhe.
O texto, redigido de imediato, garantia que os médicos não fariam horas extra,
além das obrigatórias, se não houvesse acordo. A carta, subscrita por 1055
clínicos e enviada a 1 de setembro, não teve resposta, mas o efeito produzido
surpreendeu até quem a escreveu e assinou. E o ministro agendou nova reunião.
À ideia, que partiu de Helena Terleira, 60 anos, assistente
graduada de medicina interna, e de Alexandra Esteves, internista quase acabada
de especializar-se, aderiu Carla Meira, com 47 anos e também internista no
hospital de Viana, a Unidade Local de Saúde do Alto Minho. E da carta nasceu o
movimento Médicos em Luta, que de
três, em Viana do Castelo, já passou para mais de 5 mil, em todo o país.
A reunião fora marcada para 11 de setembro e o ministro
antecipou-a para dia 7, mas percebeu-se que não cederia. Acreditaram que olharia
o movimento como sendo a sério, mas não cedeu e avançou com a dedicação plena. “Criou
uma revolta e de um grupo, no WhatsApp,
tivemos de criar três; e, depois, ir para o Telegram,
para juntar todos os médicos”, disse Helena Terleira. “Nem sabíamos que a
plataforma existia, nem como se fazia”, atirou Carla Meira.
O movimento inorgânico ganhou uma estrutura. Funciona com
subgrupos para a dedicação plena, comunicação à população, cuidados primários e
formas de luta. “É muito dinâmico. Temos um link
que enviamos e os médicos aderem com o número de cédula”, explica a médica
sénior que gere a mobilização. Alexandra Esteves, a mais jovem, tem a parte
digital a seu cargo e Carla Meira o apoio jurídico, para casos em que as
administrações hospitalares tentam desviar médicos da atividade programada para
a urgência.
Além da especialidade e do local de trabalho, as três médicas
partilham o inconformismo. Fizeram todas as greves do ano e foram a duas
manifestações em Lisboa, mas não acontecia nada. Então, juntaram-se e
estruturaram a contestação, “que é muita”. Não têm filiação política e recusam
‘aparecer’, por acreditarem ter sido o desinteresse pelo protagonismo que mobilizou
os colegas.
Helena Terleira, que só participou na campanha política de Maria
de Lourdes Pintasilgo, por se tratar da primeira mulher candidata à
Presidência, diz que nada tem a perder: está a seis anos da reforma e quer sair
a saber que fez “tudo para que os mais novos fiquem no SNS”. Admitindo que o
protesto deixa os serviços sem resposta, afirma: “Fiz um juramento pela vida,
acima de tudo, mas não da minha. No meu tempo de trabalho cumpro o juramento.
Se um doente morrer durante o protesto, não seremos responsáveis. Será fora do
horário de trabalho.” E Carla Meira questiona: “Há o direito à saúde dos
doentes e dos médicos, a não errar, por ter sido obrigado a trabalhar demais.
Os pilotos, os camionistas não o fazem. Porque fazem os médicos?”
As médicas afirmam que o protesto só terminará quando os sindicatos
disserem à porta do Ministério que há acordo. Têm três meses – em janeiro, as
horas extra voltam a zero. “Ninguém estava à espera do que está a acontecer,
nem nós, nem o ministro. Se não resultar, vai ser a destruição total do SNS”,
profetiza Carla Meira.
***
Este protesto, que está a asfixiar, sobretudo, as urgências,
postula um balão de oxigénio imediato que “não pode ficar em lista de espera”,
mas não basta para curar ou regenerar o SNS. Por isso, o governo tem de
negociar com dos sindicatos, usando ambas as partes de razoabilidade e de
boa-fé. A tutela não pode tomar, unilateralmente, decisões em matéria tão
importante. E os médicos, que têm razão na luta, deviam abster-se de produzir
asserções como esta: “Se um doente morrer durante o protesto, não seremos
responsáveis. Será fora do horário de trabalho.” É desnecessária e chocante.
Com efeito, ninguém os questiona assim e qualquer cidadão lamenta a morte de
quem quer que seja, independentemente de ocorrer no seu horário de trabalho. Ou
teremos a medicina reduzida a função paga a dinheiro. Será por isso que os
hospitais privados não têm falta de profissionais, no contexto de medicina
ultraliberalizada?
O ministro deve saber que o tempo mudou: o negócio de saúde
privado cresceu a olhos vistos com as receitas que o SNS para ele transfere
para pagamento dos serviços que presta, pela abolição dos contratos do SNS com
a ADSE e com as seguradoras e pela ambição do negócio.
O Sindicato Independente dos Médicos (SIM), após 16 meses de
negociação sem acordo, vai “exigir resposta à possibilidade de os médicos
poderem estar, pelo menos três meses em exclusivo nas urgências”, “uma medida
concreta para um problema emergente”.
Cerca de metade dos turnos nas urgências é assegurada por
prestadores de serviços e a outra pelo recurso a horas extraordinárias, que
chega a ser de 90%. “Este é o nosso pecado original. Há muito que devíamos ter
avançado para as equipas dedicadas”, afirma Xavier Barreto, presidente da
Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.
Gasta-se nisto muito dinheiro, que poderia ser utilizado no
reforço dos quadros (trabalhadores efetivos), nos salários e nas carreiras – o
que significaria investimento no capital humano.
Xavier Barreto faz crítica generalizada à inércia dos
governantes. Os ministros dizem que sim ao modelo, porém nada muda. A
resistência às equipas fixas nos serviços de urgência não é justificável com
desconhecimento ou inexperiência. O modelo foi estreado, em 2003, no Hospital
de São João, e generalizado nas várias unidades que funcionaram em parceria
público-privada (PPP), com Loures, entre os exemplos mais eficientes. “Conseguimos
ter uma equipa de residência, de urgência interna, que foi um ganho brutal, que
se mantém e que é impensável não ter, quando há 1200 doentes internados”, diz o
diretor da Urgência do São João, Nelson Pereira, enfatizando: “A equipa
dedicada chegou a ter 45 médicos. Restam menos de 15 e, desde 2009, temos de
recorrer a internistas, que só faziam urgência interna.”
O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, e o diretor-executivo do
SNS, Fernando Araújo, estiveram no São João e sabem as virtudes da
exclusividade nas urgências. Em janeiro, Pizarro prometeu criar equipas
dedicadas, pelo menos, nos maiores hospitais. E, recentemente, o gabinete de Fernando
Araújo reforçou: “É preciso também, por exemplo, criar a especialidade de
medicina de urgência pela Ordem dos Médicos.” Como já dissera Fernando Araújo,
essa formação “é um eixo fundamental na estratégia delineada”. Nelson Pereira
só lamenta o atraso.
No final de 2022, um manifesto assinado por 56 antigos e
atuais diretores de serviços de urgência foi a votos, mas a Assembleia de
Representantes da Ordem dos Médicos (OM), na maioria constituída por
especialistas em medicina geral e familiar e medicina interna, disse “não”.
A formação preparada pelo grupo de trabalho terá cinco anos e
dará formação que permita prestar assistência qualificada em urgência, em
atendimento permanente, em cuidados primários e na emergência pré-hospitalar.
Adelina Pereira, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina de Urgência e
Emergência, frisa que o bastonário da OM prometeu criar um novo grupo. Porém,
avisa: “Fazer tudo de novo demora e estamos numa corrida contra o tempo.”
A OM confirma a intenção de retomar o projeto, sem pressa, mas
Adelina Pereira salienta que a especialidade pode ser criada sem o aval da OM,
ou seja, o governo pode decidir, sobretudo quando a OM pretende monopolizar as
decisões em desfavor do interesse público (digo eu).
***
Resta aguardar que o governo, nomeadamente o ministro das
Finanças, acolha a pressão do Partido Socialista (PS), nomeadamente de Lacerda
Sales, no sentido de que tem de assumir o “aumento da despesa estrutural no
SNS”, sob pena de pouco valerem os milhares de milhões de euros que se deitam
para cima do sistema. Vem aí o debate do Orçamento do Estado. Não se deve
descurar a descida do défice e a redução da dívida, mas não se pode comprar a
guerra do caos no SNS, bem como na escola. O dinheiro, por si, “é como manteiga
em focinho de cão”.
2023.10.07 – Louro
de Carvalho
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