A guerra na Ucrânia tem consequências religiosas,
da parte do poder político, na relação entre as diversas Igrejas ortodoxas
entre si e, ainda, na relação com a Igreja Católica.
A
nível político, a grande notícia é que o Parlamento ucraniano (Verkhovna Rada)
pretende ilegalizar a
Igreja ortodoxa alinhada com Moscovo. Com efeito, foram ineficazes as diligências
do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) para congraçar as duas principais Igrejas
ortodoxas da Ucrânia: a historicamente ligada ao Patriarcado de Moscovo
(IOU-PM) e a autocéfala, recente, ligada ao Patriarcado Ecuménico de
Constantinopla (IOU-PEC).
Como
declarou, em comunicado, Jerry Pillay, secretário-geral do CMI, apesar dos melhores
esforços, “obstáculos práticos e políticos” tornaram o arranque do “processo de
diálogo” impraticável”. Foram aprovadas rondas de diálogo no verão de 2022, na
cidade de Karlsruhe, na Alemanha, aquando da XI Assembleia do Conselho Mundial
das Igrejas. Não obstante, o líder do CMI continua a acreditar que o
compromisso da IOU-PM e da IOU-PEC é “uma base essencial para o processo de
diálogo”, com vista a “promover a coesão social entre o povo da Ucrânia, no seu
percurso como nação livre e independente, e pela busca mais ampla da paz num mundo
profundamente dividido e em conflito”.
Este
falhanço ocorre quando o Parlamento se prepara para apreciar, em primeira leitura,
um o projeto de lei n.º 8371, visto por vários setores como preparação do
terreno para o banimento da IOU-PM. O projeto visa alterar parcialmente a lei
ucraniana “sobre a liberdade de consciência e as organizações religiosas” em
determinados aspetos. Num dos artigos é adicionada uma alínea que refere: “Não
são permitidas atividades de organizações religiosas que estejam afiliadas a
centros de influência de uma organização religiosa, cujo centro de direção esteja
localizado fora da Ucrânia, num Estado que leve a cabo uma agressão armada
contra a Ucrânia.”
O
projeto foi submetido à Rada pelo primeiro-ministro, no início do ano, mas,
segundo Peter Anderson, especialista que acompanha de perto as questões do
universo ortodoxo, ainda não tinha avançado por não estar assegurado o apoio
de, pelo menos, 226 deputados. Porém, no início de outubro, o deputado Oleg
Dunda declarou que o diploma podia avançar para primeira leitura, já que “o
apelo dos deputados do povo para proibir a IOU-PM” havia recolhido cerca de 240
assinaturas. Quem reagiu a estes desenvolvimentos foi o Patriarcado de Moscovo
e o próprio Cirilo, que apelou a várias instâncias internacionais – Vaticano, CMI,
Organização para a Segurança e Cooperação na
Europa (OSCE) … – contra este atentado à liberdade religiosa.
Também
o CMI manifestou “sérias preocupações” quanto à eventual proibição da UOC e à
conformidade da decisão com as normas internacionais sobre liberdade religiosa.
A
mensagem, citada pelo jornal Strana, terá sido
canalizada por Peter Prove, diretor da Comissão das Igrejas para os Assuntos Internacionais
do CMI, notando que, segundo as conclusões do Gabinete de Peritos Científicos
do Parlamento [ucraniano], a linguagem do projeto de lei “não cumpre os requisitos
constitucionais” e o texto do projeto “não foi revisto na sequência desse
parecer consultivo”. A este ponto, que é também sublinhado na análise da
situação feita e publicada por Peter Anderson, o CMI acrescenta que é inaceitável
a aplicação do princípio da responsabilidade coletiva às organizações
religiosas.
“Os
indivíduos que cometeram traição ou outros crimes contra a Ucrânia, no contexto
da invasão russa, devem […] ser responsabilizados ao abrigo das leis ucranianas,
através de processo legal adequado. No entanto, proibir ou punir a Igreja
Ortodoxa Ucraniana (IOU-PM) como um todo, sem provas claras e públicas de que a
própria Igreja representa uma ameaça genuína para a segurança nacional da
Ucrânia, seria […] profundamente divisivo e contraproducente”, escreve Peter
Prove, vincando que muitos membros da UOC servem “nas Forças Armadas da Ucrânia”
e todas as famílias ligadas à Igreja, como todas as famílias ucranianas, têm “filhos,
irmãos, pais, homens ou outros membros da família em risco na defesa da Ucrânia
contra a agressão russa”.
***
Nos últimos meses, tem-se assistido, na República da Moldávia, à
transferência maciça de clero da Igreja Ortodoxa Moldava (IOM), vinculada a
Moscovo, para a Igreja Metropolitana Ortodoxa autónoma da Bessarábia,
canonicamente ligada ao Patriarcado da Roménia. O fenómeno agudizou-se desde 13
de julho de 2023, quando o patriarcado e o governo romenos assinaram um
protocolo de cooperação com o Departamento de Relações Externas da República da
Moldávia, perante o metropolita Petru. O clero viu-se obrigado a corresponder
às orientações do patriarca Cirilo, incluindo a legitimação da invasão da
Ucrânia pela Rússia, e a receber o salário do orçamento do Estado, com um
governo que se demarca da influência russa e se abre ao Ocidente. A isto
soma-se o facto de um tribunal de recurso de Chisinau, a capital, ter anulado
dois acordos entre o governo moldavo e a IOM, o que, segundo a oposição pró-russa,
pode levar ao confisco dos mosteiros dessa Igreja e a expulsão dos monges.
Os acontecimentos apontam para a estratégia governamental de neutralização
dos ortodoxos ligados a Moscovo, em consonância com um vasto setor político e
da opinião pública do país que recusa a influência de Cirilo, devido à sua
política, face à guerra. Segundo o blogue Parlons d’Orthodoxie, o partido no poder, da Presidente da
República, Maia Sandu, defende o corte radical entre os ortodoxos moldavos e o
patriarcado de Moscovo e está a examinar a possibilidade de transferir o
edifício da Academia Teológica de Chisinau para a jurisdição da Igreja Ortodoxa
em que superintende o metropolita da Bessarábia. E prevê-se que a Universidade da
Moldávia retome o ensino da Teologia, agora ministrado por académicos vindos da
Roménia. E a oposição pró-russa fez soar o alarme, badalando que a Igreja
Ortodoxa Moldava está a ser atacada.
***
O
Patriarca Ecuménico Bartolomeu, de Constantinopla, disse, a 1 de setembro, que
os esforços que desenvolveu para a unidade e cooperação das Igrejas ortodoxas
autocéfalas (independentes) “foi destruído, nos últimos anos, por uma nova Eclesiologia,
que vem do Norte, e por uma nova Teologia, a Teologia da guerra”.
Bartolomeu
falava na abertura do ano novo eclesiástico (Indicção), a que presidiu,
acompanhado pelo metropolita Epifânio “de Kiev e de toda a Ucrânia” e líder da
Igreja Ortodoxa Ucraniana autocéfala. E a sua reflexão liga-se com o
afastamento e rutura desta Igreja relativamente a Moscovo, que se começou a
desenhar a partir de 2014 e se formalizou com o reconhecimento da sua
autocefalia em 2019, e ganhou força com a invasão da Ucrânia. “É esta Teologia
que a Igreja irmã da Rússia começou a ensinar, para tentar justificar uma
guerra injustificada, profana, não provocada e diabólica contra um país
soberano e independente, a Ucrânia”, especificou.
O
patriarca considerou que, desde há quase dois anos, se vive uma tragédia no
centro da Europa, pela degradação das relações entre as duas Igrejas e devido ao
derramamento de sangue: “150 mil, talvez 200 mil soldados russos foram mortos
nesta guerra, cerca de 100 mil soldados ucranianos e inúmeros civis. […] Isto,
evidentemente, também tem um impacto nas relações das respetivas igrejas
ortodoxas irmãs”, fez notar. E, referindo ter recebido propostas de várias
Igrejas para que o Patriarcado Ecuménico convoque nova conferência pan-ortodoxa
ou uma assembleia (sinaxe) de primazes para “tratar da questão eclesiástica
ucraniana”. “O nosso Patriarcado – assegurou – rejeita estas propostas, porque
não está disposto a submeter ao julgamento das outras Igrejas um ato canónico
que ele próprio realizou”. E explicou: “Digo ato canónico, porque a concessão
da autocefalia à Igreja da Ucrânia, com os seus 44 milhões de fiéis, foi feita
no quadro dos direitos e responsabilidades diaconais do Patriarcado Ecuménico.”
Uma
região que tem sentido o forte impacto da invasão da Ucrânia pela Rússia é a dos
Estados bálticos (Lituânia, Estónia e Letónia), que fazem fronteira com a Rússia
e integraram, até 1991, a União Soviética. As suas Igrejas ortodoxas integravam,
como na Ucrânia, o Patriarcado de Moscovo. A eclosão da guerra e o receio do
expansionismo da política de Putin funcionaram como fatores de pressão sobre
aquelas Igrejas, no sentido de “tomarem uma posição clara contra a guerra e
distanciarem-se do Patriarcado de Moscovo”, como apontou Sebastian Rimestad, do
Instituto de Estudos de Religião da Universidade de Leipzig.
Na Lituânia,
cinco padres ortodoxos discutiram, em 2022, a transferência do vínculo para
Constantinopla, rompendo com Cirilo, e o bispo suspendeu-os, mas o titular do
Patriarcado de Constantinopla (primus inter pares)
visitou o país e debateu com o governo a possibilidade de criar, ali, nova
jurisdição eclesiástica autónoma, ligada a Constantinopla. E o metropolita
local declarou discordância de Cirilo quanto à guerra e requereu a Moscovo o
estatuto de autonomia.
Na
Letónia, o metropolita foi duro com a cobertura do Patriarca de Moscovo à
guerra e à violência militar russa. Apesar de a Igreja ortodoxa local gozar de
autonomia, foi o governo a declará-la autocéfala, obrigando-a a alterar os estatutos.
O novo enquadramento foi enviado ao Patriarcado de Moscovo, mas ainda não houve
pronunciamento. Cirilo poderia vir a considerar a autocefalia da Letónia como uma
declaração puramente política, sem consequências canónicas.
Na
Estónia, há algumas especificidades, pois a Igreja Ortodoxa está dividida desde
1996, com uma parte ligada ao Patriarcado de Moscovo e a outra ao de
Constantinopla. A invasão da Ucrânia e as posições dúbias do metropolita têm
acicatado as divergências pré-existentes, representando “potencial para novas
divisões”.
E
Rimestad conclui que, “embora as igrejas ortodoxas do Báltico sejam pequenas e
não sejam uma voz poderosa no mundo ortodoxo, a forma como respondem pode, no
entanto, ter impacto na futura reconciliação ou numa maior divisão da ortodoxia
mundial”.
***
Neste contexto, Cirilo e Francisco têm um
encontro no horizonte, mas visões antagónicas.
Desde a visita à China do cardeal Matteo Zuppi, enviado do Papa, a explorar
caminhos para o términus da guerra na Ucrânia, as posições de Moscovo deram sinais
de maior flexibilidade, no plano político e na esfera religiosa, mas o caminho é
longo.
Apesar de o regresso de Zuppi à Rússia não estar marcado, o ministro dos
Negócios Estrangeiros, Serghei Lavrov, assegurou que a deslocação acontecerá
e que Moscovo está pronto a recebê-lo. Essa possibilidade terá sido objeto de
desenvolvimentos, na entrega de cartas credenciais do novo embaixador russo
junto da Santa Sé. Já relativamente ao patriarca Cirilo, esteio na política
bélica de Putin, a informação existente indica que há abertura russa para um
encontro entre ele e o Papa, mas os passos teriam de partir do Vaticano.
Segundo o arcipreste Nikolai Balashov, conselheiro de Cirilo, a Igreja
Ortodoxa Russa permanece aberta a novo encontro entre o Patriarca de Moscovo e
de Toda a Rússia e o Papa; esse encontro deve ser devidamente preparado para
ser eficaz; estão em funcionamento os canais para essa interação, levados a
cabo pela Igreja Ortodoxa Russa através do Departamento para as Relações
Eclesiásticas Externas; porém, devem esperar-se passos pró-ativos do Vaticano.
No entanto, tal encontro está longe de significar aproximação de posições,
no atinente à busca da paz. Em recente deslocação à base militar de Vilychinsk,
no extremo leste do país, onde estão sediadas as forças marítimas da frota do
Pacífico da Federação Russa, que inclui submarinos equipados com ogivas nucleares,
Cirilo foi consagrar uma nova igreja destinada a serviço religioso de civis e de
militares. Aí invocou a “bênção de Deus, para que, pela ajuda divina”, os
soldados “não tenham medo de qualquer força inimiga”.
Defendendo que “a formidável arma” que está nas mãos dos soldados “nunca
deve ser usada”, o patriarca afirmou: “Tive a oportunidade de ver a
formidável arma para a defesa da nossa pátria. […] Que o Senhor proteja a terra
russa, o nosso povo, as forças armadas e a nossa Igreja. Que todos juntos
sejamos um só exército espiritual e temporal, capaz de defender as fronteiras
sagradas com a nossa força militar, a nossa competência profissional e a nossa
lealdade à pátria”. Mostrando a articulação entre ele e Putin, Cirilo
rezou pelo Presidente, “um verdadeiro ortodoxo, o comandante supremo
Vladimir Vladimirovich Putin”, que pediu a Cirilo para ser portador das
saudações presidenciais para todos os militares e seus familiares.
***
Em contraste, o Papa Francisco escreveu numa publicação divulgada na sua
conta da rede social X (ex-Twitter): “A posse de armas atómicas é
imoral, porque – como observava João XXIII na encíclica Pacem in Terris – ‘não é impossível que
um facto imprevisível coloque em movimento a máquina da guerra’. Sob a ameaça
de armas nucleares, todos somos sempre perdedores!”
Enquanto “Cirilo recorre à fé para confirmar a necessidade das armas, inclusive
as nucleares, Francisco denuncia a sua imoralidade, não só quanto à
utilização, mas também à sua posse”, considera Lorenzo Prezzi, no Settimana News. Também Paul R. Gallagher, secretário da
secção para a relação com os Estados, da Secretaria de Estado do Vaticano, em
discurso na Organização das Nações Unidas (ONU), a 26 de setembro, e Daniel
Pacho, seu colaborador na Secretaria de Estado, em discurso à Agência
Internacional de Energia Atómica, no mesmo dia, em Viena, reiteraram o pedido
do Papa por um desarmamento atómico.
E não se pode esquecer o equívoco surgido entre a Igreja Católica da
Ucrânia e o Vaticano pelo facto de o Papa haver incitado os jovens russos ao cultivo
das suas raízes históricas, o que levou ao protesto da chefia da diplomacia diplomática
ucraniana a criticar o Pontífice e o chefe de Estado a declarar inadequado o
Vaticano para qualquer mediação.
***
Enfim, a guerra prejudica as relações entre as diversas confissões cristãs
e cria ruído entre as mesmas e os poderes políticos.
2023.10.17 – Louro de Carvalho
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