Foi
Regina Quintanilha, de seu nome completo, Regina da Glória Pinto de Magalhães
Quintanilha de Sousa e Vasconcelos, nascida em
Santa Maria, Bragança, a 9 de maio de 1893, que estudou na Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra (FD-UC), entre 1910 e 1913, com inegável
sucesso, e que faleceu, em Lisboa, a 19 de março
de 1967.
Estreou-se
como advogada, em novembro de 1913, por autorização do Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça (STJ), facto saudado em Portugal, pioneiro no acesso das
mulheres à formação em Direito. Além do exercício profissional, publicou diversos
trabalhos jurídicos e desempenhou as funções de procuradora judicial, de conservadora
do Registo Predial e de notária.
Para
lá da morte, permanece como singular exemplo das qualidades no exercício da
profissão.
***
O
número especial de 2023 de A REVISTA do
Supremo Tribunal de Justiça, no 190.º aniversário de criação deste órgão de
topo do sistema judiciário, presta-lhe homenagem com artigo de Fernanda
Pinheiro, bastonária da Ordem dos Advogados (OA), de que se respigam os dados
mais relevantes. Na verdade, é de salientar, nesta efeméride, o relevante papel
do STJ na consagração da entrada das mulheres na advocacia, assim contribuindo
para o Estado de Direito e para concretização do princípio da igualdade
Filha
de Francisco António Fernandes Quintanilha, descendente de antiga e abastada
família transmontana de Miranda do Douro, e de Josefa Ernestina Pinto de
Magalhães, escritora e poetisa, descendente da casa de Sabrosa, da qual terá
descendido o navegador Fernão de Magalhães, frequentou o Colégio de
Franciscanas e o Liceu, em Bragança, até aos 16 anos de idade, e vindo a
concluir o ensino secundário no Liceu Rodrigues de Freitas, no Porto.
O
desvelo pelas suas três filhas tornou-se central para Josefa Quintanilha, que lhes
proporcionou cuidada educação e hábitos de estudo, superando os preconceitos
epocais. Foi a primeira mulher transmontana a proporcionar formação superior às
filhas, o que, no contexto social do papel da mulher ao tempo (quase
exclusivamente serviço doméstico e lavores femininos), lhe valeu fortes
dissabores. Em entrevista ao Diário de
Lisboa, de 31 de março de 1943, Regina Quintanilha conta que a mãe tinha “uma
visão ampla das coisas”, criando as filhas “com a ideia do trabalho”, não lhes
deixando um momento do dia sem terem “nada para fazer”.
A
6 de setembro de 1910, com 17 anos de idade, a futura advogada requereu a matrícula
na Faculdade de Direito, em Coimbra, que se tornou efetiva após deliberação do
Conselho Universitário, reunido para o efeito. O início das aulas, previsto para
17 de outubro, foi adiado na sequência da Revolução Republicana de 5 de outubro,
pois os ânimos encontravam-se “bastante exaltados”, o que levou a que, por
exemplo, a Sala dos Capelos da UC fosse totalmente destruída. A 23 de outubro,
Manuel de Arriaga e Sidónio Pais foram nomeados por decreto, reitor e vice-reitor
da UC, respetivamente. E, a 24 de outubro de 1910, Regina Quintanilha
atravessou, pela primeira vez, a porta férrea da Faculdade de Direito para
iniciar a licenciatura, festivamente “recebida por toda a Academia formada em
alas, com as capas no chão, para dar passagem à primeira mulher que iria em
Portugal frequentar o curso de Direito”, como confirmou o marido, Vicente Ribeiro Leite de Sousa e Vasconcelos, à época
juiz e, mais tarde juiz conselheiro do STJ.
Tirou
partido das modificações na estrutura da Universidade. Ao abrigo do disposto em
Decreto de 24 de Outubro de 1910, que instituiu os “cursos livres” (os alunos
não eram obrigados a frequentar as aulas e podiam elaborar o seu próprio plano
de estudos, com disciplinas de qualquer ano do curso), escolheu uma formação eclética
e frequentou, em simultâneo com o curso de Direito, algumas disciplinas da
Faculdade de Letras (onde foi aluna e, mais tarde, amiga de Carolina
Michaëlis), entre 1911-1912, entre as quais História Geral da Civilização,
Filologia Portuguesa, História Antiga e História Medieval. Para lá destas
matérias, estudou Química, com Charles Lepierre, e Física, com Sidónio Pais. Em
1913, aos 20 anos de idade, concluiu, com muito sucesso, a licenciatura em
Direito. Logo a seguir, foi convidada para reitora do recém-criado Liceu
Feminino de Coimbra (caso inédito), mas recusou, por ambicionar seguir a
carreira de advogada, que o n.º 2 do artigo 1345.º do Código Civil
Português de 1867 vedava às mulheres.
No
decorrer do século, o tema começou a ser debatido e surgiram vozes masculinas a
admitir a entrada das mulheres no mundo da Justiça. Para as mulheres
intelectuais, o combate pela igualdade foi duro de vencer. Eram muitos os
preconceitos sociais, que se manifestavam em atitudes diversas, da oposição
aberta à hostilidade. Não obstante, a recém-licenciada requereu autorização
para poder advogar livremente, o que foi deferido por despacho do então presidente
do STJ, juiz conselheiro Abel Augusto Correia de Pinho, lavrado em 14 de
novembro de 1913, que lhe conferiu posse no mesmo dia, no Salão Nobre. Passou a
usar o nome profissional de Regina Quintanilha até ao momento em que suspendeu
a sua inscrição, 44 anos depois.
Apesar
desta autorização ad casum, só em
1918, foi a mesma consagrada na letra da lei, quando foi publicado pela
Secretaria da Justiça e dos Cultos o Decreto n.º 4676, de 19 de julho, cujo
artigo 1.º estabelecia: “A partir da promulgação deste decreto, às mulheres
munidas de uma carta de formatura em direito é permitido o exercício da
profissão de advogado, ajudante de notário e ajudante de conservador”. Portugal
foi pioneiro nesta alteração consagrada para as mulheres, trazendo um novo
ímpeto aos seus direitos, a que se seguiram a Inglaterra, em 1919, a Espanha,
em 1920, e a Bélgica e a Alemanha, em 1922.
Regina
Quintanilha estreou-se como advogada no Tribunal da Boa Hora – que albergou os
julgamentos criminais da Lisboa, durante cerca de 166 anos – no dia seguinte ao
que foi empossada no STJ, patrocinando oficiosamente Ludovina Pereira e
Guilhermina Maria, acusadas de agressão a uma idosa na noite de Natal de 1912.
A sala do tribunal encheu-se de inúmeros curiosos, entre os quais vários
profissionais do foro, pessoas do povo e jornalistas dos jornais A República, Diário de Notícias, O Século
e A Luta. Este noticiou que a
atraente e simpática jovem, “envergando a toga de advogado, inquiriu as
testemunhas” e, apanhada de surpresa, “mostrou as suas faculdades de
inteligência”, enunciando, “em favor das rés, todas as circunstâncias
favoráveis à sua defesa”. Enfim, a primeira advogada portuguesa conquistou a
simpatia do público. O Magistrado Judicial Dr. Horta e Costa, e o Procurador
Morais de Carvalho (filho), em representação do Ministério Público,
prestaram-lhe calorosa homenagem, felicitando-a pela auspiciosa estreia no
universo dos Tribunais, que foi saudada pelo jornal da Liga Republicana das
Mulheres Portuguesas, A Madrugada.
Para
as mulheres empenhadas na defesa no trabalho dignificante foi vitória muito
significativa. E Regina Quintanilha foi militante de algumas organizações de
mulheres, como o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP), em 1917, de
que foi presidente da Assembleia Geral (1917-1919) presidente da Secção de Emigração, Secretária do Exterior e presidente
da Secção de Legislação. E esteve ligada à Cruzada das Mulheres
Portuguesas, embora não se possa dizer que tenha sido uma das militantes mais
ativas do feminismo. No entanto, apresentou a
tese “Reivindicações Políticas da
Mulher Portuguesa” ao I Congresso Feminista e de Educação,
em Lisboa (1924), para lá de ter redigido vários artigos no boletim oficial do
CNMP, como “As Leis e A Mulher”,
criticando as mentalidades e leis conservadoras que não se adaptavam aos tempos
em que se vivia, restringindo a capacidade jurídica dada às mulheres.
A
historiadora Alice Samara refere que, embora não seja uma feminista, nem tenha
tomado posição na primeira vaga de feminismo, Regina Quintanilha tem
importância significativa na emancipação da mulher portuguesa e é um exemplo
incontornável para as outras mulheres que se lhe seguiram, registando-se-lhe
algum ativismo. E a escritora e ativista Ana Vicente escreveu, em 1980, no Diário de Lisboa, que Regina Quintanilha
“não era feminista” e que se manteve isolada de “todos os movimentos de
emancipação que existiam na época”. Porém, a bastonária da OA raciocina de
outro modo. Com efeito, em entrevista ao Diário
de Lisboa, Regina Quintanilha afirmou ter entrado na Universidade
naturalmente, sem qualquer hostilização, antes com a maior amabilidade de todos.
E, interpelada pela jornalista Gabriela Castelo Branco sobre o problema social
da mulher, a resposta aproxima-se do feminismo, pois referiu ter verificado que
“as mulheres intelectuais são admiráveis mães” e sustentou que, sendo a mãe
quem mais influência tem sobre o filho, quanto mais culta for, “tanto mais
poderá compreender o papel que tem que desempenhar junto dele, e como
orientar-lhe o espírito”.
Além
disso, porfia que “a mulher não tem só um papel importante ao lado dos seus
filhos”, porquanto, por exemplo, ao lado de todos os nossos grandes homens
políticos, “tem-se encontrado sempre a mulher”. E, no final da entrevista,
insurge-se contra as desigualdades no Estado Novo afirmando que às mulheres “não
poderão nem deverão distribuir-lhe mais qualquer papel de inferioridade”, mas
colocá-las num “pé de igualdade intelectual absoluta”.
Até
26 de abril de 1957, data em que requereu a suspensão da inscrição na já
constituída (em 1926) OA, Regina Quintanilha exerceu a profissão de forma exemplar,
em Portugal, no Brasil e nos Estados Unidos da América (EUA), tendo sido autora
de diversos trabalhos jurídicos. Em 1941, na comemoração das bodas de prata de
início da sua carreira profissional, uma Comissão de Honra composta por 67
mulheres levou a cabo uma homenagem traduzida na elaboração do “Livro de Ouro”,
que reuniu dezenas de textos manuscritos de personalidades dos mais diversos
quadrantes da sociedade – obra que integra o acervo da Biblioteca da Ordem dos
Advogados, por doação à Ordem, em 1992, pelos seus descendentes. Dos seus
textos manuscritos, salienta-se o general Carmona, Presidente da República, que
escreveu em abril de 1941: “As homenagens que vão ser prestadas à Exma. Senhora
Dr. Regina Quintanilha, por ocasião das suas bodas de ouro como advogada são
credoras da minha maior simpatia”. E D. João Evangelista, bispo de Aveiro, escreveu:
“Já tenho ouvido dizer que os homens não se medem aos palmos: mas agora digo
eu, diante esta heroína que festejamos, que as mulheres muito menos.” Associaram-se
ao evento colegas e professores de várias escolas e academias e a sua filha
Maria Regina Vasconcelos.
***
E
a bastonária da OM aproveita o ensejo para dar conta do status atual da mulher advogada.
A
advocacia alterou-se muito desde a revolução de abril de 1974. O ensino
democratizou-se e consagraram-se, de forma quase plena, os artigos 43.º,
(liberdade de aprender e ensinar) e 47.º (liberdade de escolha de profissão e
acesso à função pública) da Constituição da República Portuguesa (CRP). A 31 de
dezembro de 2022, encontravam-se inscritos/as na OA 35.429 advogados/as, sendo
56% mulheres, que representam a maioria dos profissionais. Hoje, os problemas das
mulheres são diferentes dos que desafiaram Regina Quintanilha. É incontornável
o acesso das mulheres a todas as profissões, não sendo a advocacia exceção. E
prevalecem questões transversais na sociedade que são mais prementes na
advocacia, como é o escasso acesso a lugares de gestão de topo. Se é comum a
presidência de conselhos regionais e dos conselhos de deontologia ser ocupada
por advogadas, já assim não sucede, por exemplo, com o cargo de presidente do
conselho superior (só uma vez ocupado por uma mulher) e com o de bastonário,
que, em quase um século de existência da instituição, contou com três mulheres
eleitas.
Também
a maternidade, ainda sem direitos consagrados para as advogadas, tal como a
falta de compatibilização entre a vida profissional e pessoal, impedem as
advogadas de viverem a profissão de forma mais plena e mais participativa,
apontando soluções para os problemas da classe, trazendo a sua visão para a
discussão pública. 110 anos após a tomada de posse como “a primeira advogada,
conservadora e notária”, Regina Quintanilha é “exemplo da competência, da
resiliência, da combatividade, do empenho e da sagacidade que são absolutamente
inerentes ao bom exercício da profissão”.
***
O
que se passa com as advogadas sucede com a generalidade das mulheres
portuguesas, em termos de igualdade, precaridade, sobrecarga de trabalhos e asfixia
da vida familiar.
2023.10.20 – Louro de Carvalho
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