Decorreu, a 30 de setembro, no Pavilhão Cidade de Amora, no concelho do Seixal, do distrito
de Setúbal, o XXVI Congresso da Associação Nacional de Municípios
Portugueses (ANMP), onde os temas debatidos (interligados) foram a
descentralização, a autonomia, a coesão territorial e o financiamento local.
Assumindo que a descentralização, há
muito reivindicada pelos autarcas, ganhou importância central, a presidente da
ANMP, Luísa Salgueiro, frisou que não se trata de um processo para aferir se um
município passa a ter mais poder ou de um processo fechado, mas em curso, para
garantir melhor serviço às pessoas. “O processo não está concluído. Nós temos
de continuar a negociar, mas, à medida que vamos avançando nas várias etapas
que vão sendo trabalhadas, vamos neutralizando os impactos e, portanto, a
ambição mantém-se”, disse, na abertura do congresso, a líder da ANMP e presidente
da Câmara Municipal de Matosinhos, no distrito do Porto.
A socialista referiu que o processo tornou
clara a inevitável conclusão de que muitas das áreas, agora alvo de
descentralização, estavam subfinanciadas. Por isso, o trabalho dos últimos dois
anos na ANMP foi no sentido de a descentralização não ter impacto negativo nos
orçamentos dos municípios, o que tem sido conseguido. Com efeito, é importante
garantir que os municípios se mantêm financeiramente saudáveis e capazes de
responder às pessoas.
“Nós sabemos que o processo de
descentralização não está perfeito, mas também sabemos que […] não está no
mesmo ponto em que estava. E isso tem de ser reconhecido”, sustentou Luísa
Salgueiro, ressalvando que o trabalho feito até agora teve um “enorme
significado na vida dos municípios, mas sobretudo na vida das pessoas”.
Também, na abertura do congresso, o
primeiro-ministro (PM) assumiu que este processo tem constituído uma “longa
caminhada” e passado por uma negociação “muito difícil, exigente e transparente”,
entre governo e os municípios, que “nunca estará acabada”. “Eu não sei se é uma
boa notícia ou se é uma má notícia, mas aquilo que vos quero mesmo dizer é que
este é um processo que nunca estará acabado”, sublinhou António Costa.
A principal razão, entre outras, por
que a descentralização “nunca estará acabada” tem a ver com a confiança de quem
transfere e de quem recebe as competências. Assim, no dizer do PM, à medida que
vão ganhando confiança, os municípios percebem que podem ir mais além do que
foram até então. “Muitos dos presidentes de câmaras que hoje já assumiram as
competências na área da educação ou na área da ação social eram muitos do que
eu ouvi dizer que nunca iriam assumir essas competências, porque não havia
condições”, reforçou.
O PM apontou outra razão para a
índole inacabada do processo, esta atinente à sua evolução: conforme se vão
conhecendo e analisando, com “mais olhos”, os processos, vai-se percebendo que
“muitos dos problemas estavam escondidos”. E verbalizou: “A descentralização só
será um sucesso quando os meios acompanharem as competências, de forma que, no
final do dia, quer o Estado, quer os municípios, quer as freguesias possam
dizer aos cidadãos: ‘hoje estamos em melhores condições para prestar melhores
serviços às populações’.”
O chefe do governo recordou que,
neste momento, 100% dos municípios já assumiram as competências na área da ação
social e da educação e que 85% dos 201 municípios com quem estão a negociar a
transferência das competências na área da saúde já as assumiram.
O PM reconheceu que o processo não é
fácil, mas “muitíssimo aliciante e motivador” e que “será sempre feito de um
lado e de o outro, para bem do país e para bem das portuguesas e dos portugueses”.
E, no atinente à habitação, adiantou que a cada município compete
definir a melhor estratégia local, cabendo ao governo criar os instrumentos
legais e financeiros para a sua execução.
Também o presidente da Câmara Municipal
de Lisboa, Carlos Moedas, na qualidade de presidente da mesa do congresso,
pediu mais descentralização, com mais recursos, nas áreas da educação, da saúde
e da ação social, com a dupla convicção de que o país precisa de mais
municipalismo, para ser mais forte, e de que os municípios podem fazer mais, “nestes
tempos difíceis, tempos de inflação, tempos de aumento do custo de vida, de
transformações tão profundas como a digitalização como a inteligência
artificial”.
Retomando palavras do presidente da
Câmara do Seixal, dirigiu-se o ministro da Educação, João Costa, ali presente,
para falar da dificuldade recorrente em conseguir fazer a descentralização sem os
recursos necessários, dando como exemplo, “o défice que temos entre aquilo que
nós investimos na educação e aquilo que recebemos do governo”.
Terá sido por isso que António Costa,
no fim da sessão de abertura, não prestou declarações aos jornalistas, mas
chamou o ministro da Educação, com quem falou durante algum tempo?
O autarca lisbonense revelou que as
câmaras municipais não querem só gerir e contratar pessoal operacional,
construir escolas ou requalificar escolas, mas podem ajudar na afetação de
“casas dignas” para professores, por exemplo. É de perguntar de que estão à
espera, para o fazerem.
Na área da saúde, “construímos o
centro de saúde, mas, depois, também podemos fazer mais nesses centros de
saúde. Podemos contratar os médicos, se for necessário. Podemos fazer com que a
saúde seja realmente tratada naquilo que é base local da proximidade e dos cuidados
primários”, sublinhou Carlos Moedas, acentuando que só é preciso que o governo
confie nos autarcas, lhes delegue competências e lhes atribua “os recursos que
são necessários e que são tão precisos para termos uma verdadeira
descentralização”. “A verdade é que ainda estamos, de certa forma, nesta descentralização
a meio da ponte”, admitiu. “Não podemos ficar a meio da ponte. Temos de
atravessar a ponte”, porfiou.
Desde já, quero alertar para o perigo
de uma descentralização desviante, sem duvidar da boa-fé de muitos autarcas.
Algumas autarquias podem fazer da gestão de proximidade, com dinheiro e com
poder decisório, algo que não pode acontecer, por exemplo, dar ordens
desgarradas às escolas (ou seja, sem articulação com os dirigentes escolares)
sobre gestão (nomeadamente horários e distribuição de serviço), progressão e
promoção do pessoal; e, se alguma vez, as autarquias tiverem uma palavra a
dizer na colocação dos docentes, terão de afastar a permeabilidade da eventual
intenção do voto em eleições e não passarem a consignar a gestão da escola
pública a entidades privadas. Isto evita-se com acurada avaliação do exercício
das competências.
E é de esclarecer que a transferência
de competências da administração central para a local não é um simples
delegação de competências: esta pode cessar por vontade unilateral do
delegante, ao passo que aquela só cessa, mediante denúncia do acordo, por
motivos objetivos devidamente comprovados e, eventualmente, por decisão dos
competentes tribunais.
***
Por seu turno, a ministra da Coesão
Territorial, Ana Abrunhosa, garantiu que, em 2024, o fundo de financiamento
para a descentralização voltará a aumentar, sem, contudo, adiantar números,
pois a negociação continuará até ao encerramento do Orçamento do Estado.
Contudo, a governante ressalvou que
as transferências financeiras para as autarquias não aumentaram só no item da
descentralização ou só por causa dele. Desde 2015, acrescentou, as
transferências sofreram um aumento de 36%. E, assumindo que a descentralização
é “uma das maiores reformas administrativas das últimas décadas”, vincou: “Temos
a certeza de que irá ajudar as freguesias, os municípios, as comunidades
intermunicipais e as regiões a terem um papel mais interventivo na definição
das políticas públicas, nas metas de desenvolvimento a que se propõe e no serviço
que prestam às populações.”
O objetivo da reforma é criar “maior
autonomia, participação, poder de decisão e poder para resolver o problema das
pessoas”. Portugal está a mudar profundamente a relação entre a administração
central e as autarquias. Contudo, a reforma administrativa em curso é “um
caminho longo que ainda está a ser percorrido”, com avanços significativos, por
vezes, em contrarrelógio, às vezes não à velocidade que desejamos, mas fazendo
caminho, tirando pedras do caminho”.
Ana Abrunhosa revelou que a
descentralização “pôs a descoberto injustiças e problemas” que, agora, serão
corrigidas. Mas, vincou, não há, efetivamente, descentralização sem o financiamento
adequado para às novas competências.
E, no respeitante à transferência de
competências, lembrou que não é função do governo andar a fiscalizar as
competências que transfere: “Não é função do governo andar a pedir mapas e mapas
e mapas, não é função do governo andar a fazer essa fiscalização. Que se crie,
então, uma entidade que tenha esse papel, que hoje está na Inspeção-Geral de
Finanças (IGF), mas que todos sentimos, de algum modo, que tem que ser
reforçado.”
***
O congresso terminou com a estrela do evento, o Presidente da
República (PR), que pediu aos autarcas que tentem criar, nos próximos dois anos,
acordos de regime em áreas como as finanças locais, o Plano de Recuperação e
Resiliência (PRR) e o Portugal 2030, destacando que nem sempre os acordos de
regime são possíveis, e realçando que foi o caso da regionalização do país, que
continua por cumprir.
Resta perguntar-lhe pelo seu contributo, como líder da oposição
para a armadilhar com a via referendária obrigatória, através da revisão constitucional
de 1997.
No entanto, destacou que o novo regime das finanças locais, o
(PRR) e o programa comunitário Portugal 2030 são áreas para novos acordos entre
autarcas de várias forças políticas. “Aproveitem estes dois últimos anos para
aprofundar as pontes possíveis”, recomendou.
O PR
preconiza que essas pontes deverão ser criadas também na relação dos municípios
com o Estado, com as freguesias e com as regiões autónomas, mas que os autarcas
têm razões para estarem orgulhosos dos primeiros dois anos deste mandato, que
foram “muito difíceis”, tendo enfrentado uma pandemia e, agora, uma guerra.
Marcelo Rebelo de Sousa, que defendeu
a necessidade de uma reforma do Estado, pois o Estado não pode continuar a ser
o que era antes do processo de descentralização para os municípios, afirmou que
a “descentralização tem duas faces da moeda”: transferir competências e
recursos equivalentes ou correspondentes para o poder local; e reformar-se o
Estado, porque não pode o poder local ser chamado a reformar-se, ficando o
Estado para trás, na reforma.
O PR avisou que o Estado não “se pode
habituar à ideia do álibi fácil” de que as competências descentralizadas já não
são nada com ele. São com o país e, por isso, também com o Estado, ao qual
compete “a visão nacional das políticas públicas”, ficando as autarquias com “uma
quota-parte da intervenção nessas políticas públicas”, o que “pode não resultar,
se o enquadramento nacional falhar”.
O PR exemplificou que “vem a caminho –
e bem, finalmente – aquilo que é, a partir de janeiro, a definição dos termos
de gestão do Serviço Nacional de Saúde, antecedido por alguns diplomas” que
espera para promulgação: “Todos sabem que vai ser alargada a competência das
autarquias. Mas a responsabilidade pela gestão nacional dessa nova realidade,
que vai dar um novo sopro ao Serviço Nacional de Saúde, é da instituição
pública nacional, criada no quadro do Estado.”
***
O quadro da transferência de competências
está desenhado e, em parte, está em execução. Seria bom que as autarquias
gerissem melhor do que a administração central. Todavia, a gestão de proximidade
é, às vezes, mais permeável do que a estatal a influências particulares e a objetivos
de política doméstica, sobrepondo-se ao escrutínio a dependência política,
económica e social.
2023.09-30 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário