A liturgia do 30.º domingo do Tempo Comum no Ano A sustenta,
clara e inquestionavelmente, que o amor está no centro da experiência cristã e é
a mola propulsora da vida de união a Cristo e da comunhão fraterna. Como dizia,
há tempos, o cardeal Américo Aguiar, se a pedagogia de Jesus tivesse usado a informática
e a Internet, a password que identificaria cada um dos crentes para a cibernavegação
seria “amor”. Na verdade, a cada passo cantámos “Ubi caritas et amor, Deus ibi
est” (onde há caridade e amor, aí está Deus)
O que Deus pede e
exige a cada crente é que deixe que o coração se submerja no amor.
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A primeira leitura (Ex 22,20-26)
certifica-nos de que Deus não quer a perpetuação de situações de injustiça, de
arbitrariedade, de opressão, de desrespeito pelos direitos e pela dignidade dos
pobres e dos débeis. O trecho veterotestamentário em referência fala do
desconforto dos estrangeiros, dos órfãos, das viúvas e dos pobres, vítimas da
especulação dos usurários, vincando que toda a injustiça ou arbitrariedade
praticada contra o irmão mais pobre ou mais débil é crime grave contra Deus e
que, afastando-nos da comunhão com Deus, nos põe fora da órbita da Aliança.
O Decálogo ou dez mandamentos (cf Ex 20,2-17) constitui o coração da Aliança e apresenta os valores
fundamentais que devem marcar o comportamento do Povo de Deus em relação a Javé
e à vida comunitária. Porém, as leis do Decálogo, que eram gerais, não contemplavam
todos os casos e situações. Por isso, a complexidade da vida diária exigiu o
esclarecimento e a concretização das leis do Decálogo. Assim, foram-se gizando normas
concretas para regular o devir quotidiano do Povo de Deus, sendo que o Livro do Êxodo contém uma ampla recompilação
dessas leis que explicitam o Decálogo.
Logo a seguir ao Decálogo, os catequistas de Israel colocaram
um bloco heterodoxo de leis, conhecido como o “Código da Aliança” (cf Ex 20,22-23,19), isto é, um conjunto de
leis que os autores do Livro do Êxodo
apresentam como ditadas por Deus a Moisés, no Sinai, quando, na realidade, são
leis de proveniência diversa, cuja antiguidade é discutível, mas que a maioria
dos estudiosos situa no tempo dos “juízes” (século XII a.C.).
O “Código da Aliança” regula vários aspetos da vida do Povo
de Deus, desde o culto até às relações sociais. São prescrições, soluções,
disposições justas, sãs e sólidas, que explicitam os princípios, solucionam as
dificuldades e ordenam a conduta dos homens nas situações comuns e variáveis da
condição humana. Nele sobressaem a viva consciência de que Israel é chamado à comunhão
com Deus e o forte sentido social. Revela um Povo preocupado em concretizar os
compromissos da Aliança na vida de cada dia. E sugere que a fé de Israel não é realidade
abstrata ou fantasmagórica, mas realidade viva, que regula e anima cada setor
da vida prática.
O trecho em apreço, um excerto do “Código da Aliança”, refere
algumas exigências sociais que resultam da Aliança; e apresenta indicações sobre
como lidar com três realidades de carência, de necessidade, de debilidade: a do
estrangeiro, a do órfão e da viúva, e a do pobre que se obrigou a pedir
dinheiro emprestado. São pessoas em situação jurídica e socioeconómica difícil,
a maior parte das vezes, longe de serem acolhidas e compreendidas.
O estrangeiro é, habitualmente, um desenraizado, obrigado a
deixar a sua terra e o seu quadro de relações familiares, atirado para um adverso
ambiente cultural e social, onde as leis locais nem sempre protegem os seus
direitos e a sua dignidade. Ao invés, é votado ao desprezo e explorado. A debilidade
é aproveitada, muitas vezes, por pessoas que os exploram, escravizam e que praticam
impunemente contra eles as maiores injustiças.
O órfão e a viúva integram a categoria das vítimas
tradicionais dos abusos dos poderosos. Desprotegidos, ignorados pelos
dirigentes e pelos juízes, sem defesa ante as arbitrariedades dos fortes,
vítimas de toda a espécie de injustiças, têm em Deus o seu único defensor.
O pobre que pede dinheiro é, quase sempre, o camponês
carregado de impostos, arruinado por anos de más colheitas, que tem de pedir
dinheiro para pagar as dívidas e para sustentar a família. A sua extrema
necessidade é explorada pelos usurários e pelos especuladores, que o obrigam a
deixar como penhor os bens mais básicos. Sufocado por juros altíssimos, acaba
por perder tudo e ficar na miséria mais absoluta, condenado a morrer de frio ou
de fome.
A religiosa sensibilidade israelita dita que Deus não tolera
a perpetuação destas situações de injustiça e de opressão. Se Israel quer viver
em comunhão com Deus e aproximar-se do Deus santo, tem de banir as injustiças e
as arbitrariedades sobre os mais débeis – designadamente estrangeiros, órfãos,
viúvas e pobres. Essa é uma das condições para a vigência da Aliança.
***
O Evangelho (Mt 22,34-40)
preconiza que toda a revelação de Deus se sintetiza no amor – amor a Deus e
amor aos irmãos – e que estes dois mandamentos são inseparáveis, de modo que,
se alguém ama verdadeiramente a Deus, ama necessariamente o próximo; e, se alguém
não ama o próximo, não ama a Deus e, se diz que O ama, é mentiroso, pois estes
ditos dois mandamentos são semelhantes, isto é, têm a mesma índole. Amar a Deus
é fazer a sua vontade e estabelecer com os irmãos relação de amor, de
solidariedade, de partilha, de serviço, até ao dom da vida. O resto é
explicação, desenvolvimento, aplicação destas coordenadas da vida cristã à vida
prática.
Após as controvérsias com os dirigentes judaicos sobre o
tributo a César e sobre a ressurreição dos mortos, vem a controvérsia sobre o
maior mandamento da Lei. Os fariseus, ao perguntarem a Jesus qual é o maior
mandamento da Lei, procuram demonstrar que Jesus não sabe interpretar a Lei,
pelo que não merece crédito.
A questão do maior mandamento da Lei não era pacífica e, no
tempo de Jesus, era objeto de intermináveis debates entre os fariseus e os
doutores da Lei. A preocupação em atualizar a Lei, de modo que ela respondesse
a todas as questões que a vida do quotidiano colocava, levara os doutores da
Lei a deduzir um conjunto de 613 preceitos, dos quais 365 eram proibições e 248
ações a praticar. Esta multiplicação preceitual lançava a questão das
prioridades: Todos os preceitos têm a mesma importância ou há algum mais
importante do que os outros? Todavia, a resposta de Jesus supera o estreito horizonte
da pergunta, situando-se ao nível das opções profundas do homem. O importante,
na perspetiva de Jesus (responde aos fariseus, que ouviram dizer que reduzira
ao silêncio os saduceus), não é definir qual o mandamento mais importante, mas
encontrar a raiz de todos eles. E, nesta perspetiva, essa raiz gira à volta de
duas coordenadas: o amor a Deus e o amor ao próximo – de que a Lei e os
Profetas são apenas comentários.
Os cristãos de Mateus usavam a expressão “a Lei e os
Profetas” para se referirem aos livros inspirados do Antigo Testamento, que
apresentavam a revelação de Deus. Portanto, dizer que a Lei e os Profetas se
resumem nestes dois mandamentos significa que eles encerram toda a revelação de
Deus, contendo a totalidade da proposta de Deus aos homens.
A originalidade deste sumário evangélico da Lei não está nas
ideias de amor a Deus e ao próximo, que são conhecidas do Antigo Testamento (Jesus
limita-Se a citar Dt 6,5, no atinente ao amor a Deus, e Lv 19,18, no
respeitante ao amor ao próximo), mas está no facto de Jesus os aproximar um do
outro, pondo-os em paralelo, e no facto de Jesus simplificar e concentrar toda
a revelação de Deus nestes dois mandamentos. Portanto, o compromisso religioso,
proposto aos crentes do Antigo e do Novo Testamento, resume-se no amor a Deus e
no amor ao próximo, amor que deve ser entendido na ótica de Jesus.
Segundo os relatos evangélicos, Jesus nunca se preocupou
excessivamente com os rituais que a religião judaica estabelecia, nem viveu
obcecado com a oferta de dons materiais a Deus. A sua grande preocupação foi discernir
a vontade do Pai e cumpri-la com fidelidade e amor. Amar a Deus é, pois, na lógica
de Jesus, estar atento ao desígnio do Pai e procurar concretizar, na vida
diária, os seus planos. Ora, na vida de Jesus, o cumprimento da vontade do Pai
passa por fazer da vida uma entrega de amor aos irmãos, se necessário, até ao
dom total de si mesmo.
Assim, para Jesus, amor a Deus e amor aos irmãos estão
interligados. Não são dois mandamentos diversos, mas duas faces da mesma moeda.
Amar a Deus é cumprir o seu desígnio de amor, que se concretiza na
solidariedade, na partilha, no serviço, no dom da vida aos irmãos.
O texto ensina que deves amar a Deus totalmente, ou seja, “com
todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua inteligência” (em vez
de “com toda a tua inteligência”, Lucas diz: “com todas as tuas forças”; e
Marcos diz: “com toda a tua capacidade”). Exige um empenho total de si próprio.
Costumamos dizer “amar a Deus sobre todas as coisas”, não dizemos “sobre todas
as pessoas”, porque isso seria negar o dito segundo mandamento.
O texto, no atinente ao amor ao próximo estatui que é preciso
“amar o próximo como a ti mesmo”. A expressão “como a ti mesmo” não significa nenhuma
espécie de condicionalismo, mas implica a totalidade do amor, exatamente como
no amor a Deus. Por outro lado, supõe que a pessoa gosta de si própria, cuida do
seu corpo, da sua saúde, da sua alimentação, do seu vestuário, da sua alma, da
sua casa, da sua família. E é bom que assim seja, para, de igual modo, proceder
com o semelhante. Mais: não vá suceder que sejamos bons para os outros e
desprezemos a família, que também é o nosso próximo.
Noutros textos mateanos, Jesus explica aos discípulos que é
preciso amar os inimigos e orar pelos perseguidores. Isto quer dizer que o amor
ao próximo é sem limites, sem medida e não distingue bons e maus, amigos e
inimigos. Aliás, Lucas, ao contar este episódio, acrescenta-lhe a parábola do bom
samaritano, explicando que o amor aos irmãos, pedido por Jesus, é incondicional
e deve atingir todo o irmão que encontrarmos nos caminhos da vida, mesmo que
ele seja um estrangeiro ou inimigo.
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A segunda leitura (1Ts
1,5c-10) apresenta-nos o exemplo da comunidade cristã de Tessalónica que,
apesar da hostilidade e da perseguição, aprendeu, com Cristo e com Paulo, o caminho
do amor e do dom da vida.
Paulo continua, no trecho em referência, a longa ação de
graças que havia começado. Com efeito, à ação evangelizadora dos apóstolos
(Paulo, Silvano, Timóteo) e do Espírito Santo, responderam os Tessalonicenses com
o acolhimento entusiasta do Evangelho. O nascimento para Cristo da jovem
comunidade cristã aconteceu em ambiente de alegria e de júbilo, apesar da
hostilidade provocada pela oposição dos Judeus e pela tensão entre os cristãos
e as autoridades da cidade.
Aliás, a alegria e o sofrimento fazem parte do dinamismo do
Evangelho. Cristo ofereceu a sua vida até à cruz, para que a Boa Nova do Reino
chegasse a toda a Humanidade; Paulo imitou Cristo e anunciou o Evangelho em dificuldades
e perseguições; os Tessalonicenses imitaram Paulo e receberam jubilosamente o
Evangelho, apesar da hostilidade dos concidadãos; e os crentes de toda a Grécia
(“da Macedónia e da Acaia”, as duas províncias romanas da Grécia) imitaram os Tessalonicenses
e sofreram alegremente pelo Evangelho.
Assim, fica manifesto que o Senhor, os apóstolos e toda a
Igreja partilham o mesmo destino: todos percorrem o mesmo caminho, iluminados
pelo Evangelho, na alegria e no sofrimento.
Esta longa cadeia histórica – de Jesus à Igreja – mostra que
o Evangelho se faz dinamismo de vida e de salvação para todos os povos, se
acolhido na alegria, apesar do sofrimento.
***
É o amor a prioridade e a marca dos cristãos; é o amor que
leva a suportar o sofrimento com alegria. É a falta de amor, aliada ao exibicionismo,
que gera a hipocrisia, a mentira e as estruturas de pecado que invadem o campo
eclesial (desde os batizados até ao topo da hierarquia). Mas é o amor que tem a
força regeneradora e a capacidade de instaurar o perdão.
2023.10.29
– Louro de Carvalho
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