Entrou em vigor, há quase um ano, o novo
Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS), aprovado através do Decreto-Lei
n.º 52/2022, de 4 de agosto, que marcou uma suposta profunda mudança
organizacional no SNS, fortalecendo a sua capacidade para investir na promoção
da saúde e do bem-estar, permitindo-lhe oferecer mais eficiência, maior
acessibilidade e melhores cuidados de saúde. E, com a criação da Direção Executiva (DE-SNS, I. P.), cuja
orgânica foi aprovada pelo do Decreto-Lei n.º 61/2022, de 23 de
setembro, diz o governo, “conferiu-se uma nova dimensão à estrutura de gestão e
operacionalização do SNS, sendo essencial dotá-la de uma capacidade operacional
efetiva, que a torne capaz de implementar as políticas e ações que permitirão
promover a equidade de acesso, a otimização da utilização de recursos e a
melhoria contínua da qualidade dos serviços prestados, num conceito de rede do
SNS.
Faltava a publicação dos Estatutos da
Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde, I. P. (DE-SNS, I. P.), omissão
que deu lugar a várias críticas (incluindo as de setores ligados à Saúde e as do
Presidente da República) assinalando que o SNS não andava nem desandava e apontando
a responsabilidade para o Ministério das Finanças sob cujo controlo e até limitação
tem funcionado o Estado, desde há quase um século. Porém, após as ditas críticas e com vários meses de atraso,
foi publicada a Portaria n.º 306-A/2023, de 12 de outubro, que “aprova os Estatutos da Direção Executiva do Serviço Nacional de
Saúde, I. P. [Instituto Público]”, com sede na cidade
do Porto.
Porém, enquanto o médico Adalberto Campos Fernandes, antigo ministro da Saúde,
sustenta que há “muitas perguntas por responder” e adverte que “vai haver um
tempo de perturbação”, uma vez que “reformas desta magnitude demoram anos a
preparar e a executar”, o economista Pedro Pita Barros alerta para riscos na
articulação de competências entre as diversas entidades.
Este organismo, que está responsável por gerir o SNS, vai ter 11
departamentos, quatro serviços e três cargos de direção intermédia, absorvendo
ainda as competências das cinco administrações regionais de saúde (ARS), que
são agora extintas. Os departamentos são: o de Estudos e Planeamento; o de Contratualização; o de Gestão
de Pessoas, Promoção do Bem-Estar, Diversidade e Sustentabilidade; o de Gestão
da Rede de Serviços e Recursos em Saúde; o de Gestão de Instalações e
Equipamentos; o de Sustentabilidade Económico-Financeira; o de Gestão da
Transformação Digital; o de Compras e Logística; o de Gestão da Doença Crónica;
o de Gestão da Qualidade em Saúde e Segurança do Utente; e o de Formação,
Investigação, Inovação e Desenvolvimento. Os serviços são: o serviço de
Gestão Interna, o serviço Jurídico, o serviço de Comunicação e Marca e o
Serviço de Auditoria Interna. E os cargos de direção intermédia são os de diretor de departamento, de diretor de
serviço e de coordenador de unidade.
O n.º 1 do artigo 1.º do anexo ao diploma, de que faz parte integrante,
além dos departamentos e dos serviços, menciona “unidades”, que não vêm
especificadas nos números seguintes. No entanto, o n.º 4 estabelece: “Por decisão do
diretor executivo, a publicar no Diário
da República, podem ser criadas, modificadas ou extintas até vinte e oito
unidades orgânicas flexíveis, integradas ou não nos departamentos ou serviços
referidos nos n.os 2 e 3, que assumem a forma de unidades e cujas
competências são definidas naquela decisão.”
Também o n.º 5 estabelece que, para o desenvolvimento
de objetivos específicos de natureza multidisciplinar e temporária, podem ser
constituídas por decisão do Diretor Executivo, a publicar no Diário da República, até ao limite
máximo de dez equipas de projeto, mediante despacho”, o qual, nos termos do n.º
6, “define, para cada equipa de projeto, os objetivos, o período de duração e
os recursos humanos a afetar, bem como designa o respetivo coordenador”.
O preâmbulo do recém-publicado diploma prevê que “a conclusão deste edifício organizacional imporá ainda, num
futuro próximo, a introdução, a nível orgânico, de alterações à estrutura de
organismos do Ministério da Saúde, designadamente da Administração Central dos
Sistema de Saúde, I. P. [ACSS], e dos Serviços Partilhados do Ministério da
Saúde, E. P. E. [Entidade Pública Empresarial], e a integração dos serviços das
diferentes Administrações Regionais de Saúde, I. P., na DE-SNS, I. P., ou nas
ULS [Unidades Locais de Saúde].
“É o estatuto possível, atendendo às condições em que
a Direção Executiva foi criada”, afirma
Adalberto Campos Fernandes, lembrando que a nova estrutura foi criada pela
antiga ministra da Saúde, Marta Temido, quando o SNS enfrentava grande pressão
das urgências hospitalares. O antigo ministro da Saúde reitera que todo o
processo foi apressado: “Viu-se,
na altura, a dificuldade que foi elaborar o instrumento legal de enquadramento
e viu-se que estivemos um ano à espera de um estatuto.”
Entre as competências da DE-SNS, consta ainda a designação dos responsáveis
de direção dos hospitais EPE e dos agrupamentos de centros de saúde (ACS), a
celebração de Parcerias Público-Privadas ou outros acordos com entidades do
setor privado e social, bem como a gestão das redes nacionais de cuidados
paliativos e de cuidados continuados e celebrar contratos-programa, entre
outras competências. Porém, como aponta Campos Fernandes, há “muitas perguntas por responder”, por exemplo: “Como é que o
financiamento é gerido, qual é o papel verdadeiramente da ACSS, os recursos
humanos, os limites entre a própria ACSS e os hospitais, como é que fica a
relação dos hospitais no seu grau de autonomia prometido?”
Já Pedro Pita Barros realça que a portaria tem muitas vezes a palavra
‘articulação’ em matérias onde se esperava que a DE tivesse “capacidade de
decisão, em lugar de consenso articulado”. Para o especialista em
Economia da Saúde e professor na Nova SBE, este pormenor tem riscos, dado que
se pode cair em “dois pântanos”: culpabilizar o “outro”,
num cenário de indecisão ou de ter corrido mal, “porque o outro lado não quis
articular”; e “só o que for consensual, para as partes que têm de articular,
será decidido”, pois, quando “houver divergências de opinião, não é claro como
a ‘articulação’ vai resolver”. Além disso, diz Pita Barros, “como há também
situações onde não é só articulação entre DE-SNS e ACSS, [mas] envolve SPMS [Serviços Partilhados do Ministério da Saúde] e/ou Infarmed, optou-se por uma
abordagem de zonas cinzentas que será complicada de gerir em decisões onde haja
visões fortes divergentes”. A este respeito, o antigo ministro da Saúde admite
que “pode haver um impulso para capturar áreas de intervenção da DGS [Direção-Geral
da Saúde]” que “devem ser tecnicamente independentes e devem ser
poderosas”, dado que há ainda uma “zona de nevoeiro” sobre “onde acaba a ação política e onde começa a ação da Direção Executiva”.
É de notar que, entre os departamentos que integrarão a DE, está o de Gestão da
Doença Crónica e o de Gestão da Qualidade em Saúde e Segurança do Utente, atualmente
na alçada na DGS.
Campos Fernandes, que foi ministro do primeiro governo de António Costa,
assume que estes estatutos poderão retirar autoridade política ao ministro da
Saúde, dado que “toda a gente vai olhar para o diretor executivo como o
futuro ministro e toda a gente vai olhar para o número dois da direção executiva
como o novo diretor executivo”, sublinha, acrescentando que tudo “vai
depender dos protagonistas”. “É preciso acautelar que esses
riscos são minimizados e não querer que a Direção Executiva seja uma estrutura
paternalista que faça aquilo que sempre combateram”, nomeadamente o
diretor executivo, isto é, “que se sobreponha à desejável autonomia de gestão
das ULS agora criadas”, sintetiza. É de notar, que no âmbito da reforma do SNS,
para o próximo ano, vão ser criadas 31 ULS, que se juntam às oito já
existentes.
Entretanto, Pedro Pita Barros sublinha que o organismo liderado por Fernando
Araújo “deverá seguir as orientações políticas” definidas pelo governo e pela
tutela, mas que, nas decisões técnicas, “o número de articulações com a
ACSS [embora as haja também com outras entidades] sugere que as diferenças de opinião entre entidades tenham que vir
a ser resolvidas por decisão do Ministério da Saúde”. O especialista em
Saúde aponta ainda que “área menos clara é nos recursos humanos”,
dado que não fica claro se “as negociações futuras de
sindicatos devem ser feitas com a ‘entidade patronal’ SNS, dirigida pela
DE-SNS, ou se continuará, como tem sucedido, no último ano, de forma muito
mediática, centrada no Ministro da Saúde”.
Face a tais incertezas, Campos Fernandes diz que “tem de haver um tempo de
operacionalização”, para que se verifique “quais são as virtudes e quais são as
dificuldades que o estatuto encerra”, mas tem “esperança” de que o diretor
executivo “tenha o génio e a arte” para ir testando, retificando e
introduzindo” as mudanças necessárias. Porém, avisa, nomeadamente mercê da
extinção das ARS: “Vai haver um tempo de perturbação. Não tenho
dúvida nenhuma de que este processo, o primeiro ano de implementação destas
medidas, vai ser difícil, vai ser duro, porque vão surgir muitas dificuldades“,
sublinhando que “reformas desta magnitude demoram anos a preparar e anos a
executar”. Para o ano, a DE-SNS contará com 300 funcionários e com um
orçamento de 30 milhões, valor que compara com os 10 milhões alocados neste
ano.
No âmbito da reforma do SNS, para o próximo ano vão ser
criadas, como se disse, 31 ULS, que se juntam às oito existentes. Em junho de
2023, o SNS contava com 150.422 profissionais, mais
25% face a dezembro de 2015 e mais 10,8% face a dezembro de 2019.
***
Antes dos
estatutos, os especialistas diziam que a DE-SNS não tinha as competências clarificadas e que
a generalização das ULS,
no modelo de financiamento por capitação ajustada, traz riscos, pois, se estas gastarem mais do que o orçamento que
lhes é atribuído, criam “dívida e pagamentos em atraso”, bem como “monstros
administrativos e económico-financeiros”.
Campos
Fernandes e Carlos Cortes defendem que esta
entidade trouxe “enorme esperança e expectativa” de mudança, prometendo uma
“visão global” do sistema de saúde público, ao “conectar
as instituições”. No entanto, um ano depois, o bastonário da
Ordem dos Médicos (OM) diz que ficou aquém das expectativas. Todos os problemas que havia, há um ano,
mantêm-se e amplificaram-se, diz Carlos Cortes, dando o exemplo dos problemas
com as maternidades, onde “há obstetras a apresentarem a
demissão”. As urgências “estão cada vez piores” e continua o cenário de utentes
sem médico de família e o das listas de espera para cirurgia e consulta.
Campos Fernandes ressalva que um ano “não é
nada”, face às transformações no SNS. Porém, apesar da “vontade, motivação e determinação”
de Fernando Araújo, o facto de a DE não ter estatutos
aprovados não era “de menos importância”. E “talvez falte aquele gatilho que
despoleta um envolvimento e uma mobilização dos diferentes stakeholders, das diferentes partes envolvidas neste
processo”, admite. E Pedro Pita Barros realça que a “maior aposta” da DE foi o “esforço de generalização das ULS”
e a redefinição do sistema de urgências, que
“apesar do esforço feito, não terá conseguido todos os resultados esperados”.
Campos
Fernandes vê benefícios nesta forma
de gestão das ULS, mas considera erro
implementar as ULS nos “grandes hospitais universitários”, por se tratar de
unidades de ensino, de investigação e de referenciação e por não suportarem a
criação de “monstros administrativos e económico-financeiros de elevadíssimo
risco”. Já o bastonário considera que as ULS existentes “não deram provas de
que realmente foram capazes de melhorar os cuidados de saúde”.
Pita Barros realça que a generalização das ULS
é exigente em acompanhamento e em ajustamento e que o financiamento por capitação
é uma forma de “criar maior interesse das ULS em procurar assegurar uma melhor
saúde da população”. Todavia, alerta para o risco de a ULS gastar mais do que o
orçamento atribuído, perdendo o efeito do
pagamento por capitação, e para o risco de uma ULS ter interesse em ‘exportar’ doentes mais
complicados para outras ULS, o que baralhará o orçamento destas.
Outro risco é o de o funcionamento da ULS ser dominado pelas necessidades
hospitalares, o que perturba o funcionamento dos cuidados de saúde primários. Além
disso, defende que, antes de proceder à generalização das ULS, a DE devia dar “maior atenção à questão dos pagamentos em
atraso”, bem como “à
melhoria da capacidade da gestão hospitalar”.
Todavia, a DE-SNS tem poderes limitados e, sobretudo,
poderes mal definidos, quando deve ter
capacidades e poderes efetivos para executar. Ao invés, não passará de mais um
ente criado, para que, mudando, tudo fique, mais ou menos, na mesma. Mas haja
esperança!
2023.10.14
– Louro de Carvalho
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