O artigo
89.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), no texto atual, estabelece,
no âmbito da “participação dos trabalhadores na gestão”, que “nas unidades de
produção do setor público, é assegurada uma participação efetiva dos
trabalhadores na respetiva gestão”.
Parece que o
governo quer estender essa doutrina a todas as grandes empresas. Com efeito, na
sessão de encerramento da Conferência Comemorativa do 45.º Aniversário da União Geral de
Trabalhadores (UGT), em Lisboa, Ana Mendes Godinho, ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social,
preconizou a ideia da criação de “mecanismos de inclusão” dos representantes
dos trabalhadores na administração das grandes empresas. “Temos sempre novos reptos pela frente e, neste momento
em que celebramos os 50 anos do 25 de Abril, precisamos de dar mais passos
nesta democratização nos locais de trabalho”, disse a governante, defendendo “a
capacidade de encontrar mecanismos de inclusão dos representantes dos
trabalhadores na administração das grandes empresas”.
Ana Mendes Godinho lembrou que, para que isto “aconteça”, deve garantir-se
que “há diálogo social”. “E o instrumento deve ser [feito] através dos
sindicatos, da negociação e dos IRCT – Instrumento de Regulamentação Coletiva
de Trabalho”, sublinhou.
Na sua intervenção, a ministra referiu que o número de IRCT aumentou 54%,
em 2023, devido “às medidas criadas pelo governo”, no âmbito do Acordo de
Rendimentos para “discriminar positivamente” as empresas que têm “diálogo
social ativo”. “Diálogo social ativo é democracia nos locais de trabalho. É
isso que cada vez mais precisamos de incentivar, porque esse é também o caminho
para o aumento da competitividade das empresas”, adiantou, para clarificar: “Trabalhadores
com mais direitos são melhores trabalhadores. São trabalhadores que participam
e aumentam a competitividade e o crescimento das empresas.”
Por sua vez, o secretário-geral da UGT, Mário Mourão, afirmou que a UGT é
“uma central sindical plural”, defensora dum “sindicalismo reformista”, de
“participação”, de “proposição” e de defensora dum modelo de desenvolvimento
económico e social assente no “diálogo social e na negociação”. Além disso, frisou
que a concertação social “é a base para a coesão”, para um “clima de paz
social” e para uma “mais efetiva” implementação de políticas.
Na conferência, foi apresentado o livro que assinala o 45.º aniversário da
UGT, “A Concertação Social em Portugal e o Papel da UGT”, de Cristina
Rodrigues, investigadora e coordenadora da Comissão de Recursos do Subsídio de
Desemprego e de João Freire, investigador, antigo oficial da Armada e agora
membro efetivo da Academia da Marinha. Os comentários ao livro estiveram a
cargo Luis Filipe Pereira, ex-presidente do CES, João Proença,
ex-secretário-geral da UGT.
Na sessão de abertura participaram Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal
de Lisboa, Francisco Assis, presidente do Conselho Económico e Social (CES) e
Lucinda Dâmaso, presidente da UGT.
***
A
esta ideia da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social o constitucionalista Vital Moreira, no blogue
“Causa nossa”, reagiu, saudando a defesa governamental da “participação dos
trabalhadores no governo das grandes empresas”, que diz vir “defendendo, há
muito, “como
devendo fazer parte do património doutrinário obrigatório de um partido
social-democrata […], como instrumento de democracia económica, de paz social e
de eficiência empresarial”. Lembra que a “cogestão” empresarial tinha sido defendida
pelo Partido Socialista (PS) nos idos da revolução abrilina e da Assembleia Constituinte,
mas que tal compromisso se foi “desvanecendo progressivamente nos programas e
na prática política do PS como partido de governo”. Por outro lado, considera
que, embora, “retomando a ideia, a ministra remete a sua instituição para a
negociação coletiva” e para o “diálogo social”, exclui “a intervenção legislativa”
(prevista no projeto de revisão constitucional do PS), o que não leva “a lado
nenhum”, mercê da oposição dos acionistas e da “tradição confrontacional da
cultura sindical em Portugal”.
Na
verdade, apesar de a CRP estabelecer “a participação dos trabalhadores na
gestão das empresas públicas, em geral” como foi referido, isso não se verifica
“em quase nenhuma”, pois “a lei não a prevê” (segundo Vital Moreira, inconstitucionalidade
por omissão) e os trabalhadores a não exigem. Não obstante, o
constitucionalista admite que esta “abertura governamental” venha a ocasionar
“o debate político e sindical” que o tema postula.
***
É
inteiramente verdade que Vital Moreira vem defendendo esta participação dos
trabalhadores na gestão das empresas. Com efeito, a 26 de junho de 2014, depois
de mencionar a publicação, no “Diário Económico” do dia anterior, das declarações de um administrador
e de um representante dos trabalhadores na Volkswagen, ambos pertencentes ao
“conselho de supervisão” da empresa-mãe, “no contexto do modelo de cogestão
alemão (Mitbestimmung), apontava a cogestão como “um elemento
essencial da noção alemã de economia social de mercado, por conferir “aos
trabalhadores um direito de representação no ‘parlamento’ das empresas,
conjuntamente com os representantes dos acionistas, tornando os trabalhadores
em codecisores e corresponsáveis das empresas em que trabalham”. Assim, a “cogestão
é um dos principais fatores da relativa ‘paz social’ na Alemanha”, pois
contribui para a redução dos conflitos de trabalho e das greves, “para vantagem
de ambas as partes na relação laboral”.
Também no mesmo dia 26 de junho de 2014, sublinhava que, “em
Portugal nunca vingou a cultura da cogestão empresarial, tendo prevalecido uma
cultura de luta de classes”, na empresa. Além disso, revelava que, em 1975, na Assembleia Constituinte (AC), o Partido Popular
Democrático (PPD), agora, Partido Social Democrata (PSD), defendia a cogestão.
Porém, tal ideia foi derrotada por uma aliança tática entre o Partido Comunista
Português (PCP) e o PS (que tinha, na AC, “uma considerável influência
trotskista”), vingando a noção de “controlo de gestão”, que ainda consta da CRP
(artigo 54.º), mas que foi sendo “esvaziada de sentido prático, à medida que as
comissões de trabalhadores foram desaparecendo”.
A Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) e a UGT
sempre entenderam a cogestão como “colaboracionismo de classe”. E, embora a CRP
estabeleça “a participação dos trabalhadores na gestão das empresas do setor
público, isso nunca foi levado à prática” – “situação flagrante de inconstitucionalidade
por omissão –, o que “nem os sindicatos nem os partidos reivindicaram”.
A 3 de abril de 2017, o constitucionalista denunciava a “falta de cidadania laboral nas empresas”. Comentando
o estudo, citado pelo Expresso, de
dois professores, “Greves, representação dos funcionários no
local de trabalho, sindicalismo e confiança: evidências de dados internacionais”, apontava “a
passividade organizativa dos trabalhadores portugueses nas suas empresas”. Com
efeito, Portugal surgia no último lugar em percentagem de empresas onde há
comissões de trabalhadores, delegados sindicais ou ambos, quando tem, pelos
vistos, “a Constituição e o código de trabalho mais avançados, em matéria de
reconhecimento de comissões de trabalhadores e dos seus direitos (incluindo
direito a instalações e crédito de horas)”.
Para o constitucionalista, essa falta de “cidadania laboral” constitui
“enorme debilidade”, pois, “organização é poder”, ao passo que “falta de
organização significa ausência de capacidade de intervenção”. E a falta de
representação dos trabalhadores nas empresas justifica a participação dos trabalhadores
na gestão empresarial (falta de cogestão), apesar de ser “constitucionalmente
obrigatória nas empresas públicas”.
Na AC, em 1975, na batalha ideológica entre os partidários da cogestão
(PPD) e os do “controlo de gestão” (PCP e PS), venceu este, exceto para as empresas
públicas. Porém, não há cogestão nem controlo de gestão. O que existe, regra
geral, é “a absoluta autocracia patronal nas empresas, sem nenhum poder dos
trabalhadores, que tem como contrapartida “um sindicalismo confrontacional”,
que Vital Moreira diz ser “dominado pela CGTP, de inspiração leninista, que se
reproduz a si mesmo, baseado no princípio do centralismo democrático”.
A 6 de maio de 2022, o mesmo académico constitucionalista
assinalava que, em França, a social-democracia representada pelo Partido
Socialista “se viu forçada” à “aliança política sob a égide do líder da
esquerda radical, [de] Mélenchon, para as eleições parlamentares”, lançando o
manifesto pelo “renascimento da social-democracia francesa”, que inclui a cogestão empresarial, com a representação
dos trabalhadores no “conselho representativo” das empresas de maior dimensão,
junto com os acionistas – modelo de tradição na Alemanha e noutros países
nórdicos, para superar a lógica confrontacional nas “relações industriais”, figurando
como “um elemento essencial” da noção de “economia social de mercado”.
Vital Moreira diz ter defendido, desde há anos, esse modelo para
Portugal, “junto com a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas
resultantes de aumentos da produtividade”, estranhando
porque é que o PS o descarta, não o fazendo aplicar, desde logo nas
empresas públicas, “onde é constitucionalmente obrigatório”. Apesar
do seu excessivo empenho na concertação social, ao nível macro das políticas
sociais, “o PS mantém-se fiel ao modelo tradicional das relações entre o
capital e o trabalho” nas empresas, que se mantêm como “coutadas dos acionistas
de referência”, longe das preocupações sobre o “stakeholders capitalism”
(capitalismo das parte interessadas), que não envolve apenas os trabalhadores.
E, a 5 de fevereiro, o professor Vital Moreira esteve presente, em
Coimbra, no lançamento do livro “Deveres da Corporate Governance –
Representação das Partes Interessadas no Conselho de Administração”, de Rui
Moreira e Carvalho. Considera-o “uma abordagem acessível” da
representação dos vários stakeholders, e não só dos stockholders
(acionistas), no conselho de administração das grandes sociedades, tendo a ver,
sobretudo, com a cogestão, ou seja, “com a participação de representantes dos
trabalhadores da empresa, como sucede, há muitas décadas, na Alemanha, solução
que “se estendeu a outros países europeus, a começar nos países escandinavos”.
Contudo, em Portugal, apesar de a CRP “impor a participação dos trabalhadores
no governo das empresas públicas”, o tema não tem estado na agenda política nem
na sindical.
O constitucionalista, que vem defendendo “a participação dos
trabalhadores no governo das sociedades acima de determinada dimensão”,
considera que “essa solução faz todo o sentido”, em termos de “economia social
de mercado”, onde as empresas não podem limitar-se a “criar valor” para os
acionistas. Porém, tem verificado que o PS, “partido que deveria lutar por
essa reforma” não tem agarrado “essa bandeira da social-democracia europeia” –
uma das falhas do programa eleitoral para 2022 –, nem a tem incluído nos temas de debate político-doutrinário promovidos
pelo partido ou a submeter à consideração do CES.
Entretanto, verificava que o projeto de revisão
constitucional do PS “propõe o alargamento do direito à
representação dos trabalhadores nos órgãos sociais das
empresas privadas, nos termos a definir por lei”, mas não explica “esta
pequena revolução político-doutrinária”. E ficava dúvida se tal inovação
merecerá o investimento político necessário para concitar o apoio do PSD.
Veremos o que dará a revisão constitucional, de que não se rem falado nos
últimos tempos.
***
Por mim, considero a necessidade e a validade da
cogestão e da distribuição de parte dos lucros pelos trabalhadores, mas duvido
que sejam acolhidas pela generalidade do patronato, a menos que a lei e a
fiscalização as imponham. Além disso, há o risco de os representantes dos
trabalhadores funcionarem como homens sanduíche, acomodando-se ao patrão, em
vez de zelarem pelos companheiros, sendo imperativo o rigor na eleição e a
aposta no escrutínio permanente. Por outro lado, a dialética entre capital e
trabalho produz sempre o seu resultado.
2023.10.29
– Louro de Carvalho
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