O ditame evangélico “Dai a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus” (“Apódote oûn tà Kaísaros Kaísari kaì tà toû Theoû tôi
Theôi”) presta-se a interpretações que nem sempre estão em linha com
a intenção evangélica.
Tendo em conta que a conjunção “kaí” entre o primeiro tramo
da frase e o segundo é copulativa, e não disjuntiva, não é lícito aos cristãos voltar
as costas às realidades terrenas (questões políticas, sociais, económicas, culturais,
humanitárias, etc.) e muito menos desprezá-las ou hostilizá-las. Porém, não é
lícito ao cristão deixar-se ofuscar por elas e esquecer Deus ou dar-Lhe os
restos que as realidades temporais lhe deixem à disposição. A relação é de adição,
mas com a primazia de Deus, de modo que o cumprimento dos deveres para com a
sociedade humana, nomeadamente na vertente política e na vertente económica nos
encaminhem para Deus e que esse cumprimento leve o Mundo a ser cada vez mais próximo
de Deus, o que a realidade diacrónica e a realidade sincrónica do Mundo parecem
rejeitar.
Assim, a liturgia do 29.º domingo do Tempo Comum no Ano A
convida-nos a refletir sobre o modo como equacionar o nexo entre as realidades
de Deus e as realidades do Mundo. Deus é a nossa prioridade (primeiro, o Reino
de Deus: Mt 6,33) e que a Ele devemos
subordinar toda a nossa vida. Todavia, Deus convoca-nos ao compromisso efetivo
com a construção do Mundo e da sociedade a que pertencemos, pelo pagamento de contribuições
e impostos – para que todos tenham acesso à alimentação, ao vestuário, à saúde,
à educação, à habitação, à segurança física, à proteção social, à cultura, e à intervenção
na vida da comunidade – incluindo o exercício de uma profissão, a participação
política e cidadã.
O Evangelho (Mt
22,15-21) ensina que o homem, sem deixar de cumprir as suas obrigações para com
a comunidade em que se insere, pertence a Deus, devendo entregar-lhe toda a sua
existência. Tudo o mais deve ser relativizado, inclusive a submissão ao poder
político.
O trecho em análise situa-nos em Jerusalém, onde se
desenrolará o confronto final entre Jesus e o judaísmo: dum lado, os dirigentes
judeus instalados nas suas certezas e preconceitos recusam o acolhimento do
Reino; do outro, Jesus procura que os dirigentes do seu Povo tomem consciência
de que, ao recusarem o Reino de Deus, recusam a oferta de salvação que Deus
lhes faz.
Para tanto, Jesus conta-lhes três parábolas: numa, identifica-os
com o filho que disse “sim” ao seu pai, mas não foi trabalhar no campo; na
segunda, equipara-os aos vinhateiros que mataram o filho do dono da vinha; e, na
terceira, assemelha-os aos convidados para o banquete que rejeitaram o convite.
Irritados com a ousadia de Jesus e incomodados pelas suas comparações, os
líderes judaicos procuram pretexto para o acusarem. É neste contexto que Mateus
nos apresenta três controvérsias entre Jesus e os fariseus, sendo o objetivo
destes surpreende-Lo em afirmações controversas e encontrar argumentos a apresentar
em tribunal contra Ele.
A primeira questão que os fariseus, mancomunados com os partidários
de Herodes Antipas (herodianos), levantam é delicada. Diz respeito à obrigação
de pagar o tributo ao imperador de Roma. Com efeito, além dos impostos indiretos
(portagens, direitos alfandegários, taxas várias), as províncias pagavam ao
Império o tributo, isto é a quantia estipulada por Roma e que todos (exceto
crianças e idosos) deviam pagar. Era um sinal infamante da sujeição a Roma. E
os fariseus e os herodianos perguntam se Jesus acha lícito pactuar com tal sistema
escravizante e injusto.
Os herodianos e os saduceus (a alta aristocracia sacerdotal)
estavam de acordo com o tributo, pois aceitavam a sujeição a Roma. No entanto, os
movimentos revolucionários estavam frontalmente contra, por considerarem o
imperador usurpador do poder que só pertencia a Javé, pelo que interditavam os
seus partidários do pagamento do tributo. Os fariseus, embora não aceitando o
tributo, não propunham uma solução violenta para o problema. Fosse como fosse, a
questão era uma armadilha. Se Jesus se pronunciasse a favor do pagamento do
tributo, seria acusado de colaboracionismo e de defender a usurpação pelos Romanos
do poder que pertencia a Javé; e, se se pronunciasse contra o pagamento do
imposto, seria acusado de inimigo da ordem romana.
Confrontado com a questão, Jesus convidou os interlocutores, hipócritas,
a mostrarem a moeda do tributo e a reconhecerem a efígie gravada na moeda (a efígie
de César). Depois, concluiu: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de
Deus”. Não se trata de uma repartição equitativa das obrigações do homem entre
o poder político e o poder religioso, mas de reconhecer a autonomia das
realidades terrestres, face às espirituais – um dado bem expresso na Constituição
Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo, Gaudium et Spes, do Vaticano II.
Jesus sugere que o homem não pode nem deve alhear-se das obrigações
para com a comunidade em que se integra, devendo ser um cidadão exemplar e
contribuir para o bem comum. Isso é “dar a César o que é de César”. No entanto,
é ainda mais importante que o homem reconheça Deus como o único senhor. As
moedas romanas têm a imagem de César: que sejam dadas a César. Porém, o homem não
tem inscrita em si a imagem de César, mas a imagem de Deus (cf Gn 1,26-27: “Deus disse: ‘façamos o
homem à nossa imagem, à nossa semelhança’… Deus criou o ser humano à sua imagem,
criou-o à imagem de Deus”). Portanto, o homem pertence a Deus, deve entregar-se
a Deus e reconhecê-Lo como o seu único senhor. Entregue-se o homem a Deus!
Jesus vai muito além da questão que Lhe apresentaram. Não
entrando num debate político, situa a questão a um nível mais profundo. Na sua
abordagem, a questão deixa de ser discussão acerca do pagamento do imposto,
para se tornar apelo a que o homem reconheça Deus como o seu senhor e realize a
sua vocação essencial de entrega a Deus (foi criado por Deus, pertence a Deus e
transporta consigo a imagem do seu criador e senhor). Jesus não se preocupa em
afirmar que o homem deve repartir equitativamente as suas obrigações entre o
poder político e o poder religioso, mas preocupa-se em clarificar que o homem
só pertence a Deus e deve entregar toda a sua vida nas mãos de Deus. Tudo o
mais é de relativizar, inclusive o poder político.
***
A primeira leitura (Is 45,1.4-6)
sugere que Deus é o Senhor da História e que é Ele quem orienta a caminhada do Povo
rumo à felicidade e à realização plena. Os homens que atuam e intervêm na
História são instrumentos de Deus para concretizar o seu desígnio de salvação. O
trecho em causa integra o “Livro da Consolação” do Deuteroisaías (cf Is 40-55). “Deuteroisaías” é o nome com
que os biblistas designam um profeta anónimo da escola de Isaías, que profetizou
na Babilónia, entre os exilados judeus, na fase final do exílio, entre 550 e
539 a.C.
Em 553 a.C., no reinado de Nabónides, da Babilónia, Ciro, rei
dos Persas, qual nova estrela da política internacional, conquista Ecbátana,
capital da Média e junta, no mesmo império, os Medos e os Persas. Em 547 a.C.,
marcha contra a Lídia, conquista Sardes e apodera-se da maior parte da Ásia
Menor. Nos anos seguintes, uma série de vitórias dá-lhe o domínio do Irão
oriental, do Afeganistão e do Turquestão, até à Índia. Fortalecido em ouro e em
homens, dirige os seus exércitos contra a Babilónia e, em 539 a.C., entra
vitorioso na capital babilónica onde, sem oposição, é recebido como libertador.
A atividade do Deuteroisaías desenvolve-se nos anos que
precederam a entrada de Ciro na Babilónia. As notícias das vitórias de Ciro
levam os exilados a sonhar com a proximidade da libertação do cativeiro. Porém,
à alegria pela libertação iminente junta-se alguma perplexidade. O libertador
não provém do Povo de Deus, mas é um rei estrangeiro. E instala-se a dúvida
sobre a quem deve ser atribuída a libertação quando ela acontecer: a Javé, o
Deus dos exilados judeus, ou a Marduk, o deus de Ciro. É um problema teológico
que pode determinar a manutenção ou não da fé do Povo em Javé. O profeta esclarecerá
a questão e explicará o papel de Javé.
O profeta não duvida: Javé
é o verdadeiro condutor de todo o processo que vai culminar na libertação do
Povo de Deus. Ciro, o rei que se apresta a derrubar o poderio babilónico, é “o
ungido” de Javé. Com efeito, Ciro recebeu a unção com óleo e, através dela,
recebeu o Espírito de Deus e foi investido numa missão. A unção com óleo
capacita o ungido para a missão real, para a missão sacerdotal ou para a missão
profética. Aqui trata-se da missão real. Deus escolheu Ciro, derramou sobre ele
o seu Espírito e concedeu-lhe a insígnia do poder (“cingi-te”) para que ele,
desempenhando a sua missão real, se tornasse o instrumento de Deus no Mundo.
Ciro foi designado por Deus para “subjugar as nações”, “fazer
cair as armas das cinturas dos reis”, “abrir as portas à sua frente sem que
nenhuma lhe seja fechada”. Estas expressões situam a missão confiada por Deus a
Ciro no âmbito político-militar. Porém, o preponderante é que a missão se concretiza
em benefício do Povo de Deus: se Deus chamou Ciro “pelo nome”, lhe deu “um
título glorioso” e lhe confiou o poder sobre as nações foi “por causa de Jacob,
meu servo, e de Israel, meu eleito…”. Ciro aparece, pois, como o instrumento
pelo qual Deus atua no Mundo e na História, realizando o desígnio de salvação e
de libertação do seu Povo. É, normalmente, através dos homens que Deus intervém
no Mundo.
De resto, o profeta deixa claro que só Javé é o Senhor da História
e que, fora d’Ele, não há Deus. Ciro ainda não conhece Javé, mas, sem o saber,
realiza o projeto do Senhor. Portanto, é a Javé, não a Marduk, que os exilados
devem agradecer. Embora servindo-se de rei estrangeiro, Deus é quem salva e
liberta. É, pois, Nele que o Povo pode e deve confiar.
***
A segunda leitura (1Ts
1,1-5b) apresenta o exemplo de uma comunidade cristã que pôs Deus no centro do
seu caminho e que, apesar das dificuldades, se comprometeu, corajosamente, com
os valores de Deus. Eleita por Deus para ser sua testemunha no Mundo, vive
ancorada na fé ativa, na caridade esforçada e na esperança inabalável.
Tessalónica era, no século I, a cidade mais relevante da
Macedónia. Como porto marítimo de referência e cidade de intenso comércio, era
uma encruzilhada religiosa, em que os cultos locais coexistiam com todas as
propostas religiosas vindas de todo o Mediterrâneo.
Durante a sua segunda viagem missionária, no inverno dos anos
49-50, Paulo chegou a Tessalónica com Silvano e Timóteo, depois de ter sido
forçado a deixar a cidade de Filipos. O tempo de evangelização foi curto (uns
três meses), mas foi o bastante para fazer nascer a comunidade cristã numerosa
e entusiasta, constituída maioritariamente por pagãos convertidos. Todavia, a
obra foi interrompida pela colónia judaica. Os judeus acusaram Paulo de agir
contra os decretos do imperador e levaram alguns cristãos à presença dos magistrados
da cidade. Paulo deixou a cidade à pressa, de noite, indo para Bereia e, depois,
para Atenas.
Entretanto, Paulo tinha a consciência de que a formação
doutrinal de Tessalónica deixava muito a desejar. A comunidade, fundada há
pouco tempo e ainda insuficientemente catequizada, estava quase desarmada no
contexto adverso de perseguição e de provação. Por isso, o apóstolo enviou
Timóteo a Tessalónica, a fim de saber notícias e de encorajar os Tessalonicenses.
Quando Timóteo voltou e apresentou o relatório, Paulo estava em Corinto.
Confortado pelas informações dadas por Timóteo, decidiu escrever aos cristãos
de Tessalónica, felicitando-os pela fidelidade ao Evangelho, esclareceu dúvidas
doutrinais que os inquietavam e corrigiu alguns aspetos menos exemplares da
vida da comunidade.
Trata-se do primeiro escrito do Novo Testamento. Apareceu na
primavera-verão do ano 50 ou 51.
O trecho em apreço apresenta os emitentes da carta (“Paulo,
Silvano e Timóteo”), o seu destinatário (a “Igreja dos Tessalonicenses, que
está em Deus Pai e no Senhor Jesus Cristo”) e um extrato da longa oração
colocada no início da carta, em que Paulo dá graças a Deus pelo comportamento
exemplar dos Tessalonicenses: apesar das provas que tiveram de suportar,
permanecem fiéis ao Evangelho e ao ensino de Paulo (cf 1Ts 1,2-3,13).
O verbo principal do texto
é “eukharistéô”(“dar graças”). Todos os outros verbos que aparecem são secundários.
Assim, vê-se quais os sentimentos e qual a atitude fundamental de Paulo,
Silvano e Timóteo, os emitentes da carta: estão agradecidos e reconhecidos a
Deus. Com efeito, a ação de Deus nota-se no quotidiano da comunidade. Ante a
proposta do Evangelho, os Tessalonicenses responderam generosamente, com fé ativa,
caridade esforçada e esperança firme. A fé ativa é uma adesão ao Evangelho que
não se manifesta só em palavras, mas também em atitudes concretas de conversão
e de transformação; a caridade esforçada dá conta de um amor que não é teórico,
mas efetivo, que se traduz em gestos de entrega, de partilha, de doação; e a
esperança firme traduz a confiança inabalável em Deus e na vida nova que Ele
reserva aos que O amam – confiança que nem a hostilidade do Mundo, nem as
dificuldades da vida deitam por terra.
Tudo isto resulta do facto de os Tessalonicenses terem sido
eleitos de Deus. No Antigo Testamento, a eleição é privilégio de Israel,
escolhido por Deus de entre os outros povos, não em virtude dos seus méritos,
mas em resultado da graça e do amor de Deus; agora, as comunidades cristãs de
origem pagã são objeto deste privilégio, que tem a fonte no amor gratuito de
Deus.
O Evangelho que Paulo, Silvano e Timóteo anunciaram não foi discurso
feito de belas palavras, mas a Boa Nova de Deus, poderosa e transformadora, que
encontrou eco no coração dos Tessalonicenses que, pela ação do Espírito Santo,
deu frutos de fé, de amor e de esperança.
Por tudo isto é que Paulo, Silvano e Timóteo louvam o Senhor.
***
Temos, na palavra litúrgica
desta dominga, Dia Mundial das Missões, um grande incentivo ao novo ardor missionário
da Igreja que escuta Jesus, ama Jesus e sai a testemunhar Jesus. Igreja (e
Igreja somos todos os batizados) que não seja missionária e que não esteja em saída
não é Igreja ou, dizendo que o é, não presta para nada. É, pois, imperioso que
os discípulos (todos o somos, segundo a condição de cada um) tenham a
capacidade de brilhar como estrelas no Mundo, proclamando e testemunhando a
palavra da vida.
2023.10.22
– Louro de Carvalho
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