O dia 30 de setembro fica marcado por
manifestações de protesto pela habitação, supostamente pacíficas, mas que
acabaram por ser cenário, em Lisboa, de alguns incidentes menos
agradáveis.
Efetivamente, movimentos à margem de partidos políticos juntaram-se,
em 24 cidades do país, a exigir ao governo que assuma medidas que evitem
subidas de preços das casas.
O objetivo das manifestações que
ocorreram, de Norte a Sul, era contestar as políticas públicas de habitação e a
inexistência de políticas de ambiente, mas com foco na habitação, que “é uma
questão mais fácil de resolver do que a questão do ambiente”, como disse Nuno
Ramos de Almeida, do movimento Vida Justa, um dos vários envolvidos.
As plataformas Casa para Viver e
Their Time do Pay juntaram esforços, com objetivos diferentes mas
complementares, para levarem às ruas de Lisboa a reivindicação por habitação
justa. “As medidas que estão a ser tomadas são muito diminutas.
Nós temos um baixíssimo índice de construção, do ponto de vista social. Temos
menos de 2%, quando a Holanda tem 30%. Obviamente que a construção de habitação
social não se resolve num espaço de cinco minutos, mas é preciso começar a
construí-la”, defendeu Ramos de Almeida, vincando que “é preciso não
deixar o mercado funcionar simplesmente pelo mercado”, pois, com o mercado a
funcionar sozinho, os construtores fazem casas para os que têm dois milhões de
euros para pagar. Não as constroem para a classe média, para a classe média
baixa. E, pelo facto de o número de casas construídas ser escasso, “tem de
haver uma intervenção reguladora do Estado em relação ao mercado”, ou nada
mudará, como diz o ativista.
Marina Gonçalves, ministra da
Habitação, confrontada com as várias manifestações, considerou que, face a “um
problema real no nosso país”, é “importante a voz das pessoas ser
ouvida”. E, sobre o pacote de medidas para o setor que o governo
avançou em fevereiro e cujo diploma fundamental foi vetado pelo Presidente da
República (PR), em agosto, afirmou a importância de “ficarmos todos vigilantes
com a execução do ‘Mais Habitação’, [pois] construímos este diploma para ele
ser eficaz no seu objetivo. Portanto, é importante fazermos este trabalho.
As alterações legislativas a nível do
arrendamento, do alojamento local, dos imóveis devolutos e de impostos foram,
há uma semana, novamente aprovadas na Assembleia da República (AR), confirmando
o diploma vetado, só com o voto favorável da maioria parlamentar do Partido
Socialista (PS). E, a governante, complementarmente, declarou que o governo
ainda não decidiu se vai impor um travão ao aumento das rendas para 2024, mas
que “não há nenhuma demora” nessa decisão, que só terá implicações em janeiro.
Para Ramos de Almeida, o programa
‘Mais Habitação’ “não resolve nada”, é “um programa mais feito para
consumo mediático do que para alteração real das coisas”. Com efeito, do ponto
de vista das casas devolutas, os decisores políticos nada fizeram; do ponto de
vista do crédito à habitação, “empurraram com a barriga”; no atinente às rendas
das casas, o governo não pôs “os travões em vigor”; e, neste momento, os preços
estão a disparar. O efeito “foi exatamente o contrário”, argumentou,
sustentando que, na génese do problema, estão os rendimentos baixos. “O que não
pode suceder é os nossos salários estarem abaixo do preço das casas. Um aumento
de salários é mais do que necessário. Nós não podemos viver numa situação em
que os salários não pagam nem a comida nem a casa”, defendeu.
Por mim, julgo que o problema está
nos salários baixos (o trabalho é muito mal pago); no aumento dos juros,
mormente do respeitante ao crédito à habitação, graças à tirania do Banco
Central Europeu (BCE); na manutenção da chamada Lei Cristas; no aumento
oportunista do custo de vida; no descuido das autarquias (algumas só “reacordaram”
para a habitação social, acessível a famílias de parcos recursos, e a custo controlado,
acessível à classe média, baixa e média); e na especulação imobiliária, favorecida
pelos enxames do alojamento local, pelos vistos gold, pela incursão turística e
pela má vontade contra a alteração do status
quo, em matéria do arrendamento e da valorização da casa como produto
financeiro acessível apenas a quem tem dinheiro ou influência sobre os agentes
económicos.
Por conseguinte, muitos sentiram-se
expulsos da cidade; e os estudantes e os professores ficaram sem acesso a alojamento
(o preço de um simples quarto fica pela hora da morte).
Recordando que, na manifestação de
abril, em Lisboa, a polícia interveio junto de alguns manifestantes, dizia,
antes da manifestação de 30 de setembro: “Nós não conseguimos controlar numa
multidão de dezenas de milhar de pessoas. Mas esperemos que não haja problemas,
porque aquilo resultou de uma ação de um pequeno grupo que estava na
manifestação, que pintou alguns estabelecimentos bancários e, em função disso, a
polícia tentou fazer uma identificação.”
E, a reforçar o caráter pacífico do
protesto, à voz dos manifestantes, juntaram-se músicos, como A Garota Não (nome
artístico de Cátia Mazari Oliveira), Luís Varatojo e Luca Argel, porque o
problema também passou por eles. “A música deve estar ao lado das pessoas e focar
as questões que interessam”, realçou Varatojo, convicto de que a habitação é um
problema transversal. “Eu, músico, também tenho uma casa e, obviamente, não
escapo a esse problema”, disse. “Não é um problema que tenha aparecido neste
momento”, assinalou Varatojo, que pesquisou “o que os governos têm dito sobre
habitação”, utilizando, na música, um excerto de um discurso do
primeiro-ministro, a prometer resolver o problema. “Entretanto, passaram cinco,
seis anos, e as coisas continuam na mesma ou, se calhar, pior”, anotou.
***
As plataformas envolvidas nos
protestos não incluíam os partidos. Porém, na manifestação de Lisboa,
apareceram figuras notoriamente ligadas a partidos.
Assim, em
declarações aos jornalistas, no protesto pelo direito à habitação e pela
justiça climática, a coordenadora do Bloco de Esquerda (BE), Mariana Mortágua,
criticou a maioria parlamentar do PS, por rejeitar “todas as medidas que podem
ter um efeito prático no direito à habitação” e por se “juntar à direita, que
defende a especulação”: “Só que, em maioria absoluta, há uma única forma de
pressionar o governo a aprovar leis e a resolver um problema: pessoas na rua é
a mobilização popular e social que pressiona o governo. É por isso que a manifestação
é tão importante.
A líder do BE
sentiu-se perante “uma multidão que se junta para dizer o óbvio: que o direito
à habitação, que a necessidade de ter uma casa, uma casa que um salário possa
pagar é muito mais importante e vale muito mais do que a especulação, do que o
negócio, do que o lucro fácil”. “E, até agora, a verdade é que esse negócio tem
mandado nos destinos do país”, lamentou.
O secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, presente no protesto, criticou as
medidas do governo para o setor da habitação, por “insuficientes, tardias,
limitadas”. “Estamos perante um drama social, de uma grande dimensão, um
problema que afeta milhares e milhares de pessoas, que todos os dias se vão
privando das suas necessidades mais básicas, para fazerem tudo para aguentar
aquilo que é o seu maior bem, que é o seu lar, a sua casa, a sua habitação”,
alertou, dizendo que “há pessoas que já não aguentam mais as rendas, o brutal
aumento das prestações”, e sustentou que este é um problema “que é preciso
enfrentar de frente, com medidas concretas”.
O líder
comunista criticou, a este respeito, os lucros da banca: “O escândalo que é,
quando estamos todos apertados, apertadíssimos, a banca consegue acumular 11
milhões de euros de lucros por dia, nem vale a pena fazer mais comentários.” E,
questionado sobre o facto de três deputados do Chega terem sido, no início da
manifestação, escoltados pela PSP para fora do local, após protestos dos
participantes, não quis alimentar o tema, dizendo apenas: “Se as pessoas vieram
cá com um propósito, infelizmente conseguiram-no e está feito”.
Já Mariana
Mortágua, interpelada obre este caso, considerou “natural” a reação dos
manifestantes presentes, dado tratar-se de “um partido de extrema-direita que
defende a especulação imobiliária e o negócio imobiliário”.
Na verdade, três
deputados do Chega introduziram-se na manifestação, pelo que foram, notoriamente,
contestados; e a polícia, para tranquilidade geral e, para segurança dos
mesmos, escoltou-os para fora do contexto da manifestação. Com efeito, do meu
ponto de vista, os deputados têm ao dispor a arena da AR, devendo evitar a rua.
Já as vozes partidárias que não tenham assento direto na AR poderão integrar as
manifestações de rua, devendo ser coerentes.
Apesar do seu caráter pacífico, a manifestação
em Lisboa passou por um incidente: três manifestantes de cara tapada partiram a
montra de uma imobiliária na Avenida Almirante Reis.
Jornalistas, presentes no local,
presenciaram o momento: os três saíram da multidão e, pegando em martelos,
começaram a destruir a montra da empresa. Já antes, tinham sido arremessados
contra a imobiliária ovos com tinta vermelha.
***
O
Presidente da República (PR) considerou que os protestos pela habitação acontecem “por uma boa causa”,
são “importantes” e são sinal de que a democracia
está viva”. “É bom
querer-se encarar o problema da habitação e tentar acelerar processos para a
sua resolução. Gente de todas as idades, é bom. Gente com experiências muito diferentes, é bom”, disse aos jornalistas.
O chefe de
Estado deixou um recado ao governo, ao sublinhar que o Executivo tem, agora,
duas leis para combater a crise da habitação, uma das quais tinha vetado, por a
considerar “demasiado curta”, mas que já promulgou, após ter tido a aprovação
da AR. “Eu só espero que corra
bem, porque falta pouco tempo para o fim da legislatura e nós sabemos como pôr
de pé uma política de habitação e executá-la em várias frentes demora tempo.
Mete autarquias, mete a preparação dos projetos, mete contratação administrativa,
mete uma série de realidades”, disse, adiantando: “Se correr bem, é uma boa
notícia para todos. Nós queremos é que corra bem.”
Podia ter
usado uns segmentos linguísticos sem a reiteração do verbo “meter”.
As
manifestações pela habitação do dia 30, “pelo menos são uma chamada de atenção”,
considerou Marcelo. E insistiu: “Se o governo conseguir fazer, a partir desta
lei [Mais Habitação] que ela não seja tão curta assim e haja satisfação do
querer de milhares de portugueses, é bom e é uma forma democrática de se
resolver os problemas.” “Eu promulguei, porque a Assembleia confirmou e eu tinha
oito dias para promulgar, portanto, já promulguei, antes mesmo dos oito dias, a
lei chamada Mais Habitação”, revelou o chefe de Estado à entrada para o XXVI
Congresso da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), que decorreu
no Seixal.
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É verdade que a manifestação é um direito em democracia.
Porém, o PR bem poderia ter-se abstido de usar da palavra, porque o ruído que também
ele produziu, em consonância com as forças opositoras de feição neoliberal,
priorizando a iniciativa e a propriedade privadas (e usando palavras e expressões
como “melão” e “lei-cartaz”), nada contribuiu para a melhoria das leis, antes
ajudou ao seu bloqueio pelos agentes imobiliários e pelos proprietários e
senhorios.
Já o indicado nesta peça escrita indicia um apoio
indevido do órgão de soberania Presidente da República à contestação ao governo
e à AR. E, embora eu não tenha visto escrito o incentivo direto à participação
na manifestação, dizer que é bom, subentende-o. No entanto, eu ouvi uma declaração
num canal de televisão em que o PR disse que, se as pessoas concordam, que
participem.
Nem o PR se pode esconder numa promulgação arrancada à força!
A habitação é um problema e a solução encontrada é insuficiente.
O PR não o diz, mas a solução impõe, antes de mais, uma intervenção do Estado nos
preços das casas, em termos de compra e de arrendamento. Obviamente, é preciso
contruir mais e reaproveitar mais, mas será sempre insuficiente, se não houver
controlo de preços. Espero que não chamem comunista!
2023.10.01 – Louro de Carvalho
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