A liturgia do 28.º domingo do Tempo Comum no Ano A utiliza a alegoria
do banquete para descrever o espaço e o tempo da alegria sem fim, que Deus
oferece a todos os seus filhos. Não está em causa se Deus convida todos ou não
para o banquete, mas se nós aceitamos tal convite e em que condições pessoais e
comunitárias o satisfazemos.
Na 1.ª leitura (Is
25,6-10a), o profeta Isaías anuncia o banquete que Deus, na sua própria casa, no
alto de um monte, oferecerá a todos os Povos. É a afirmação inequívoca da
universalidade da salvação querida e oferecida por Deus. Assim, acolher o
convite divino e participar nele é aceitar viver em comunhão com Deus e com os
todos irmãos – independentemente da cor, da etnia, do sexo e da orientação sexual,
do ideário, do país ou do continente a que pertençam e da cultura em que
estejam imersos – comunhão de que resultará, para o homem, a vida em
abundância.
É difícil situar, no tempo histórico, o fragmento em apreço. Para
uns, o oráculo pertence à reta final da vida do profeta (fins do século VIII
a.C.) quando, desiludido da política e dos reis de Judá, começou a sonhar com o
tempo novo de felicidade sem fim para o Povo de Deus; para outros, não pertence
ao primeiro Isaías (autor dos capítulos 1-39 do Livro de Isaías), apesar de
estar integrado no seu livro, mas será de época posterior ao profeta, pois a superação
da morte, das lágrimas e da vergonha, pode sugerir que a composição do texto se
situa em tempo posterior ao Exílio na Babilónia, quando Judá reconquistou a
liberdade.
Seja como for, o trecho gravita em torno da alegoria do
banquete, que é, no ambiente sociocultural bíblico, o momento da partilha, da
comunhão, da constituição da comunidade de mesa, da criação de laços familiares
entre os convivas. Além disso, o banquete tem, muitas vezes, dimensão religiosa,
potenciando e celebrando a comunhão do crente com Deus, o estabelecimento de
laços familiares entre Deus e os fiéis. Assim, na visão dos catequistas que
redigiram as tradições sobre a Aliança do Sinai, o compromisso entre Javé e
Israel tinha de ser selado com uma refeição entre Deus e os representantes do
Povo. São, neste contexto, significativos os sacrifícios de comunhão (“zebâh
shelamim”) celebrados no Templo de Jerusalém, em que o crente trazia ao Templo
um animal destinado a Deus. Imolado o animal, era queimada a sua gordura sobre
o altar e a carne era repartida pelo oferente e pelos sacerdotes. O oferente e
a família comiam o seu quinhão no espaço sagrado do santuário. Deste modo,
sentavam-se à mesa com Deus, celebravam a sua pertença ao círculo familiar de
Deus e renovavam com Deus a harmonia e a comunhão.
Neste ambiente em que se enquadra o trecho em referência, o
profeta anuncia que Deus, num futuro, oferecerá um banquete, para o qual vai
convidar “todos os povos”. É uma iniciativa de Deus para estabelecer laços de
família com a toda a Humanidade. O cenário do banquete, “este monte” é o monte
do Templo, em Jerusalém, a “casa de Javé”, o lugar onde Deus mora no meio do
seu Povo, onde Israel presta culto a Javé e celebra os sacrifícios de comunhão.
Aceitar este convite de Deus significa participar no culto a Javé, ser acolhido
na sua casa, entrar na família de Deus e sentar-se com Ele à mesa. No banquete,
serão servidos “manjares suculentos”, “comida de boa gordura”, “vinhos deliciosos”
e “puríssimos” – tudo expressões conotativas da abundância e da qualidade de
vida, com que Deus cumula os convivas.
Para os que aceitam o convite, iniciar-se-á uma nova era, de
comunhão com Deus e de vida sem fim. O profeta sugere tal comunhão, com a
indicação de que será retirado “o véu que cobria todos os povos, o pano que envolvia
todas as nações” e que impedia o contacto total com o Mundo de Deus. Outrossim
o profeta sugere o início da nova era de paz e de felicidade, proclamando que
Deus destruirá a morte para sempre, enxugará “as lágrimas de todas as faces” e
eliminará “o opróbrio que pesa sobre o seu Povo”.
O banquete termina com um cântico de ação de graças que evoca
uma fórmula usada na aclamação do novo rei, significando que se iniciará, com o
banquete que o Messias oferece, o reinado de Deus sobre toda a terra.
***
O Evangelho (Mt
22,1-14), dando continuidade ao texto de Isaías, insta a que adiramos ao
convite de Deus para o banquete, vincando que os interesses e as conquistas
mundanas não podem desviar-nos nem distrair-nos dos desafios de Deus. A opção
que fizemos no batismo é um compromisso sério, que deve ser vivido de forma
coerente.
Os dirigentes religiosos judeus aumentam a pressão sobre
Jesus. Instalados nas suas certezas e seguranças, decidiram que a doutrina de
Jesus não vem de Deus, pelo que a rejeitam em absoluto.
O trecho em apreço integra um conjunto de três parábolas (Mt 21,28-32. 33-43; 22,1-14), que
ilustram a recusa do desígnio de Deus por Israel. Com elas, Jesus convida os opositores
a reconhecerem que se aprisionaram na autossuficiência, no orgulho, no
preconceito, que não lhes deixa abrir o coração e a vida ao dom de Deus. O
trecho em causa é a última das três parábolas.
Mateus uniu duas parábolas diferentes: a dos convidados para
o banquete (comum a Mateus e a Lucas, embora as duas versões tenham consideráveis
diferenças – Mt 22,1-10; Lc 14,15-24) e a do convidado que estava
sem o traje adequado (exclusiva de Mateus: Mt
22,11-14). Originariamente, as duas teriam ensinamentos diferentes, mas o tema do
banquete juntou-as.
Além do que já foi dito sobre o alcance o banquete, o
banquete era também a cerimónia pela qual se confirmava o status das pessoas e a sua posição na escala social. Quem
organizava um banquete – por exemplo, por ocasião do casamento de um filho –
fazia cuidada seleção dos convidados: a presença de gente desclassificada faria
descer, aos olhos da comunidade, o status
da família; e a presença de pessoas importantes vincava a importância e a honra
da família.
A primeira das duas parábolas do texto presente é a parábola
dos convidados para o banquete (vv 1-10).
Um rei que preparou o banquete nupcial do filho, convidou várias pessoas, mas
os convidados recusaram-se a participar no banquete, apresentando as desculpas
mais disparatadas. Mateus refere (o que não aparece no relato de Lucas) que
teriam assassinado os emissários do rei. É um facto gravíssimo, uma ofensa
inqualificável recusar um convite, mas, como se isso não fosse suficiente, os
convidados indignos manifestaram um desprezo inconcebível pelo rei, matando os
seus servos. Por isso, o rei enviou as suas tropas a castigar os assassinos (o
que não consta no relato lucano). Além da evocação do assassinato dos profetas
incómodos, será uma interpretação da destruição de Jerusalém pelos exércitos romanos
de Tito, no ano 70, podendo significar que a versão mateana é posterior a esse
ano.
O rei, apesar de tudo, manteve a festa e mandou que
trouxessem para o banquete todos quantos encontrassem nas “encruzilhadas dos
caminhos”. E esses desclassificados, que nunca se tinham sentado à mesa de uma importante
personalidade (com tudo o que isso significava de comunhão e de estabelecimento
de laços de família e de amizade), celebraram a festa à mesa do rei.
O sentido da parábola é: Deus é o rei que convidou Israel
para o banquete do encontro, da comunhão, dos tempos messiânicos (as bodas do
filho). Os sacerdotes, os escribas, os doutores da Lei recusaram o convite e
continuaram presos aos seus preconceitos e aos seus sistemas de autossalvação.
E Deus convidou para o banquete messiânico os pecadores e os desclassificados
que, na ótica da teologia vigente, estavam fora da comunhão com Deus e do
Reino.
A parábola explicita o cenário em que Jesus se move. Ele
aparece, com frequência, a participar em banquetes, ao lado de gente duvidosa e
desclassificada, ao ponto de os inimigos o acusarem de “comilão e bebedor de
vinho, amigo de publicanos e de pecadores”.
Jesus participa nesses banquetes, com o risco de adquirir má fama,
porque, no Antigo Testamento, os tempos messiânicos são descritos com a
alegoria do banquete que Deus prepara para todos os povos. E Jesus tem
consciência de que esses tempos chegaram com Ele. Por isso, o cenário do
banquete serve-Lhe para expressar a realidade do Reino: a mesa da festa, do
amor, da comunhão com Deus, para a qual todos, sem exceção, são convidados.
Para Ele, sentar-se à mesa com os pecadores é a forma privilegiada de lhes
dizer que Deus os acolhe com amor e que deseja estabelecer com eles relações de
comunhão e de familiaridade, sem excluir ninguém.
Não obstante, os líderes de Israel sempre reprovaram a Jesus
esse contacto com os pecadores e com os desclassificados. Para eles, as
prostitutas e os publicanos, por exemplo, estavam arredados, definitivamente, da
comunidade da salvação. Sentá-los à mesa do banquete do Reino é inédito e os
líderes de Israel acham-no totalmente inapropriado.
É provável que, originariamente, a parábola tivesse servido a
Jesus para responder aos que o acusavam de ter convidado para o banquete todo o
tipo de desclassificados e de pecadores, deixando claro que, na lógica de Deus,
a questão não é se Deus convida ou não, se esta ou aquela pessoa tem o direito
de se sentar à mesa do Reino, mas se se aceita ou não se aceita o convite de
Deus. Na verdade, os líderes de Israel recusaram o desafio de Deus, enquanto os
pecadores e desclassificados o acolheram de braços abertos. Mais tarde, a
comunidade cristã fará uma releitura um pouco diferente da parábola,
utilizando-a para explicar porque é que os pagãos acolheram melhor do que os
judeus a Boa Nova do Reino.
A segunda parábola é a parábola do convidado que se
apresentou na festa sem o traje nupcial (vv
11-14). E o rei que preparou o banquete mandou lançá-lo fora da sala onde
se realizava a festa.
A parábola, que se mantém no quadro da alegoria do banquete, é
uma advertência aos que aceitaram o convite de Deus para a festa do Reino, aderiram
a Jesus e receberam o batismo. Mateus escreve nos anos 80, quando os cristãos, esquecido
o entusiasmo inicial, viviam instalados numa fé descafeinada. Pensavam que,
tendo feito a opção definitiva, asseguraram a salvação. Porém, Mateus adverte
que não basta entrar na sala do banquete, mas que é preciso revestir-se de um
estilo de vida que ponha em prática o ensinamento de Jesus, testemunhando da
graça de Deus, pela humildade, pela gratidão e pela disponibilidade para amar e
servir os irmãos.
Quem aderiu ao banquete do Reino pelo batismo, mas recusou envergar
o traje do amor, da misericórdia, do dom da vida, da partilha, do serviço, e
continua revestido de egoísmo, de arrogância, de injustiça, não pode participar
na festa do encontro e da comunhão com Deus. Deus chamou todos os homens e
mulheres para participarem no banquete, mas quer que aqueles e aquelas que
responderem ao convite, se convertam, mudem completamente a sua vida.
***
Na 2.ª leitura (Fl
4,12-14.19-20), Paulo apresenta-nos um exemplo de comunidade que aceitou o
convite do Senhor e vive na dinâmica do Reino: a comunidade cristã de Filipos,
uma comunidade generosa e solidária, verdadeiramente empenhada na vivência do
amor e em testemunhar o Evangelho diante de todos os homens.
Mais uma vez, a 2.ª leitura nos oferece um excerto da carta
de Paulo aos Filipenses, desta vez tirado do seu capítulo final. Em tom
emocionado, o apóstolo agradece pelos dons recebidos e pela solidariedade que
os cristãos de Filipos lhe manifestaram.
Satisfeito com a ajuda recebida da comunidade cristã de
Filipos, a alegria de Paulo resulta, não da resolução das suas próprias
necessidades materiais, mas do significado do gesto dos Filipenses. O donativo
enviado é sinal da amizade dos cristãos da comunidade para com Paulo e da
solidariedade dos Filipenses com o anúncio do Evangelho. Assim, os Filipenses
manifestaram o apoio ao ministério de Paulo e ao trabalho que o apóstolo
desenvolve no sentido de fazer chegar Jesus a todos os homens. E isso alegra o
coração de Paulo. Por si, o apóstolo está acostumado às privações e à
frugalidade. A sua vida e a sua missão não dependem de comodidades materiais,
pois sabe “viver na pobreza” e sabe “viver na abundância”. Essa liberdade
interior, face aos bens, brota de Cristo, que dá forças ao apóstolo para
superar as privações e o anima nas dificuldades, que lhe dá a coragem para
enfrentar as necessidades que a vida apostólica impõe. E Paulo está certo de
que a solidariedade e a solicitude dos membros da comunidade beneficiarão,
primeiro, os Filipenses, pois Deus lhes pagará, generosamente, o seu gesto.
***
Enfim “Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus
Cristo, ilumine os olhos do nosso coração, para sabermos a esperança a que
fomos chamados” (Ef 1,17-18).
2023.10.15 – Louro de Carvalho
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