A liturgia do 26.º domingo do Tempo Comum no Ano A mostra que
Deus chama todos os homens e mulheres a empenharem-se na edificação do Mundo
novo de justiça e de paz que Deus sonhou e quer para todos. Neste sentido, o
espaço de Deus é o espaço de todos, não sendo lícito nós pretendermos excluir
dele quem quer que seja.
Entretanto, a proposta de Deus implica, de cada pessoa, uma
de duas atitudes: dizer “sim” a Deus, cooperar com Ele e envolver neste “sim”,
como seus facilitadores, todos os nossos irmãos e irmãs; ou escolher caminhos
de isolamento e de demissão do compromisso com Deus.
A Palavra de Deus, ora proclamada, exorta-nos a um compromisso
sério e coerente com Deus, que mobilize o nosso empenho real e exigente na
construção da novidade da justiça, da fraternidade e da paz.
Desde logo, a primeira leitura (Ez 18,25-28) apresenta-nos o convite de Ezequiel, o profeta da
esperança, aos israelitas exilados na Babilónia a comprometerem-se, séria e
consequentemente, com Deus, sem rodeios, tomando cada crente consciência das
consequências do seu compromisso com Deus e vivendo, coerentemente, as
implicações práticas da sua adesão ao Senhor e à Aliança.
Ezequiel procurou alimentar a esperança dos exilados e
transmitir ao Povo a certeza de que o Deus salvador e libertador não abandonara
nem esquecera o seu Povo.
Até então, a relação de Israel com Deus processava-se em
termos coletivos e não pessoais. A catequese vigente preconizava que a Aliança
tinha sido feita, não com cada israelita, mas com toda a comunidade. Assim, as
infidelidades de uns (incluindo os antepassados) traziam sofrimento e morte a
toda a comunidade; e a fidelidade de outros (incluindo os antepassados) era
fonte de vida e de bênção para todos. Por isso, os exilados liam à luz desta
linha teológica o drama que se abatera sobre eles. Sentiam-se justos e bons,
que não tinham pecado e que expiavam os pecados de toda a nação. Havia um
refrão assaz repetido: “os pais comeram as uvas verdes, mas são os dentes dos
filhos que ficam embotados”. Parece uma velada reprovação à ação de Deus que,
na perspetiva da teológica da época, fez dos exilados o bode expiatório de
todas as infidelidades da nação. É este problema que o profeta irá resolver.
Na verdade, os membros do Povo de Deus exilados na Babilónia
não escapam à responsabilidade, presumindo de justos e inocentes: não há justos
e inocentes neste processo, pois todos, sem exceção, foram infiéis a Javé e desrespeitaram
os seus mandamentos. Não se trata de pagar o justo pelo pecador. Não faz sentido
os exilados acusarem Javé de injusto, depois de terem violado, sistematicamente,
a Aliança e de terem cometido tantos pecados e infidelidades. E não pode Israel
esconder-se atrás da responsabilidade coletiva, que implica todos, mas não
responsabiliza ninguém. É o momento de cada membro do Povo de Deus se sentir,
pessoalmente, responsável ante Deus pelas suas ações e pelos compromissos
assumidos na Aliança. Cada um tem de descobrir que, se faz escolhas erradas e
se obstina nelas, sofre as consequências; e, se deixa os caminhos de egoísmo e
de pecado e opta por Deus e pelos seus valores, encontra a vida. Não obstante, o
pecado de um membro da comunidade afeta os outros irmãos, os membros da comunidade,
pois o pecado introduz elementos de desequilíbrio e de rutura, que atingem todos
aqueles que caminham connosco. Mas o que Ezequiel quer vincar é que tem cada
homem ou mulher de sentir-se, pessoalmente, responsável ante Deus pelas suas
opções e pelos seus atos.
A superação da mentalidade coletiva, a dar lugar à
responsabilidade pessoal, é um dos grandes progressos na história teológica de
Israel. O Povo aprende a reagir em termos pessoais e não em termos de massa.
Está aberto o caminho a uma Nova Aliança, que não é feita, genericamente, com a
comunidade, mas uma Aliança pessoal e interior com cada crente, sem deixar de
ser com o povo. Assim, é justo o Senhor ao estabelecer: “Quando o justo se afastar da justiça, praticar o mal e vier a morrer, morrerá por causa do mal cometido. Quando o pecador se
afastar do mal que tiver realizado, praticar o direito e a justiça, salvará a
sua vida. Se abrir os olhos e renunciar às faltas que tiver cometido, há de
viver e não morrerá.”
***
O Evangelho (Mt
21,28-32) ensina como se concretiza o compromisso do crente com Deus. O “sim”
que Deus nos pede não é uma declaração de boas intenções, sem implicações
práticas, mas o compromisso firme, coerente e exigente com o Reino, com os seus
valores, com o seguimento de Jesus Cristo. O crente não é o que dá boa
impressão, que finge respeitar as regras e que tem comportamento irrepreensível,
no quadro das convenções sociais, mas o que pratica, na realidade da vida, a
vontade de Deus.
No cenário que antecede o episódio em apreço, mas em relação
direta com ele, os líderes judeus, encontrando-se com Jesus no Templo,
perguntaram-Lhe com que autoridade agia e quais as suas credenciais. Jesus
respondeu-lhes, convidando-os a pronunciarem-se sobre a origem do batismo de
João. Não quiseram responder: se dissessem que João Batista não vinha de Deus,
teriam a reação da multidão, que tinha João como um profeta; se admitissem que
o batismo de João vinha de Deus, temiam que Jesus lhes perguntasse por que não
O aceitaram. Ante o embaraçado silêncio dos interlocutores, Jesus deu-lhes a
entender que não tinha resposta para lhes dar, enquanto continuassem de coração
fechado, na obstinada recusa da novidade de Deus anunciada por João e
trabalhada por Jesus.
Na sequência, Jesus enuncia três parábolas, para ilustrar a
recusa de Israel em acolher o Reino. Com elas, Jesus convida os líderes da
nação judaica a refletirem sobre a situação de “gueto” em que se instalaram e a
reconhecerem a insensatez das suas posições fixistas. O trecho em causa é a
primeira dessas três parábolas, a parábola do pai e dos dois filhos, que
ilustra duas atitudes diversas, face aos desafios que Deus nos coloca.
O primeiro filho, convidado pelo pai a trabalhar “na vinha”,
respondeu: “Não quero.” No contexto familiar da Palestina daquele tempo, era
uma resposta totalmente reprovável, porque tal atitude ia contra as convenções
sociais. Envergonhava o pai e punha em causa a sua autoridade diante dos
familiares, dos amigos e dos vizinhos. Porém, este filho reconsiderou e foi trabalhar
na vinha.
Ao invés, o segundo filho, face ao mesmo convite, respondeu:
“Vou, sim, senhor”. Deu ao pai a resposta satisfatória que não punha em causa a
sua autoridade e a sua “honra”. Ficou bem visto diante de todos e todos o
consideraram um filho exemplar. Porém, não foi trabalhar na vinha.
A questão colocada por Jesus é: “Qual dos dois fez a vontade
do pai?” A resposta é óbvia: os próprios interlocutores de Jesus responderam
prontamente: “O primeiro.”
Assim, ficamos a saber que, na ótica de Deus, o importante
não é prometer, comportar-se bem e não escandalizar, mas cumprir, realmente, a
vontade do pai. Na perspetiva de Deus, não bastam bonitas palavras ou
declarações de boas intenções, mas é preciso dar a resposta adequada e coerente
aos desafios do Pai (Deus), que espelham a excelsa vontade divina.
Os fariseus, os sacerdotes, os anciãos do Povo, disseram
“sim” a Deus, ao aceitarem a Lei de Moisés. A sua atitude – como a do filho que
disse “sim” e, depois, não foi trabalhar para a vinha – foi irrepreensível no
molde das convenções sociais, mas, no do cumprimento da vontade de Deus, a sua
atitude foi uma mentira, por se terem recusado a acolher o convite de João à
conversão. Em contraponto, os que, segundo o “política e religiosamente correto”,
disseram “não” (por exemplo, os cobradores de impostos e as prostitutas),
cumpriram a vontade do Pai, pois acolheram o convite de João à conversão e o
Reino que Jesus veio apresentar.
No contexto do ministério de Jesus, esta parábola respondia aos
que O acusavam de acolher os pecadores e os marginais, ou seja, os que, de
acordo com as “convenções”, disseram não a Deus. Jesus deixa claro que, na
ótica de Deus, não interessam as convenções externas, mas a atitude interior. O
que honra a Deus não é aquele que satisfaz os ritos externos e que dá “boa
impressão” às massas, mas aquele que dá cumprimento à vontade de Deus.
Na comunidade mateana, a parábola serviu para iluminar a
recusa do Evangelho da parte dos Judeus e o seu acolhimento pelos pagãos.
Israel seria o filho que, verbalmente, aceitou trabalhar na vinha, mas que, de
facto, não cumpriu a vontade do Pai; os pagãos seriam o filho que parecia estar
à margem do desígnio do Pai, mas que aceitou o Evangelho de Jesus e aderiu ao
Reino.
***
A segunda leitura (Fl
2,1-11) apresenta aos Filipenses (e aos crentes de todos os tempos e lugares) o
exemplo de Cristo: apesar de ser Filho de Deus, não afirmou com arrogância a
sua condição divina, mas assumiu a fragilidade humana, fazendo-se servidor dos
homens para nos ensinar a suprema lição do amor, do serviço, da entrega total
da vida por amor. Os cristãos são chamados por Deus a seguir Jesus e a viver, no
mesmo estilo, a entrega total ao Pai e ao seu desígnio.
Na primeira parte (vv.
1-5), em tom solene, o apóstolo pede à comunidade de Filipos que não se deixe dominar
pelo orgulho, pela autossuficiência, pela vaidade, pela ambição, que só
provocam egoísmo e divisão. Recomenda-lhes que vivam unidos, que se amem e que
sejam solidários, pois foi o que Jesus Cristo ensinou aos discípulos, com palavras
e com a própria vida.
Na segunda parte (vv.
6-11), Paulo refere-se, com mais pormenor, ao exemplo de Cristo. Para tanto, recorre
ao hino litúrgico, que celebra a “Kenosis” (“despojamento”) de Cristo e a sua
exaltação.
Cristo Jesus – nomeado no princípio, no meio e no fim – é o
motivo do hino. Como os Filipenses são cristãos e como Cristo é o protótipo a
cuja imagem estão configurados, têm a incontornável obrigação de se comportarem
como Cristo, que lhes serve de modelo.
O hino alude, subtilmente, ao contraste entre Adão, o homem
que reivindicou ser como Deus e lhe desobedeceu (cf Gn 3,5.22) e Cristo, o Homem Novo que, ao invés do orgulho e da revolta
de Adão, responde com a humildade e a obediência ao Pai. E, enquanto a atitude de
Adão trouxe fracasso e morte, a atitude de Jesus trouxe exaltação e vida.
Depois, o hino define o “despojamento” (“kenosis”) de Cristo:
Ele não afirmou com arrogância a sua condição divina, mas aceitou fazer-Se
homem, assumindo, com humildade, a condição humana, para servir, para dar a
vida, revelando totalmente aos homens o ser e o amor do Pai. Não deixou de ser
Deus, mas desceu até aos homens, fez-Se servidor deles, para lhes garantir a vida
nova. Este “abaixamento” assumiu foros de escândalo: aceitou morte infamante – a
morte de cruz – para nos dar a suprema lição do serviço, do amor radical, da
entrega total da vida.
No entanto, a entrega completa ao plano do Pai não foi perda
nem fracasso: a obediência e a entrega de Cristo ao desígnio do Pai resultaram
em ressurreição e glória. Em consequência da sua obediência, amor e entrega,
Deus fez d’Ele o “Kýrios” (“Senhor” – nome que substituía, no Antigo
Testamento, o nome impronunciável de Deus); e a Humanidade inteira (“os céus, a
terra e os infernos”) reconhece “o Senhor” em Jesus, que reina em toda a terra
e que preside à História.
É óbvio o apelo à humildade, ao desprendimento, ao dom da
vida que Paulo faz aos Filipenses e a todos os crentes: o cristão deve seguir
Cristo, servo sofredor e humilde, que fez da sua vida o dom a todos – caminho que
não leva ao aniquilamento, mas à glorificação, à vida plena.
***
Seja, portanto, verdadeira força motriz da nossa vida pessoal
e comunitária a petição da oração dominical: “Seja feita a tua vontade assim na
terra como no céu.” Também, na sua agonia orante, no Getsémani, Jesus rezou ao
Pai: “No entanto, não seja como Eu quero, mas como tu queres.” (Mt 26, 39)
2023.10.01
– Louro de Carvalho
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