Vários fatores
originam a falta de água doce. O consumo excessivo e o desperdício, a nível
doméstico, público, agrícola e industrial tendem a esgotar as reservas naturais
ou artificiais de água; as secas prolongadas, com que contrastam as enxurradas
e as inundações, impossibilitam a reposição de águas nas reservas e, pela
erosão, acabam arrastam água e sedimentos para o mar, sem hipótese de
reposição. Por outro lado, a poluição inutiliza o consumo deste líquido vital.
A escassez de água (falta de recursos
para satisfazer à demanda do padrão) foi listada, em 2019, pelo como um
dos maiores riscos globais no impacto potencial nesta década. Espelha-se na
satisfação parcial ou inexistente da procura, na competição económica pela
quantidade e qualidade da água, na disputa entre utilizadores, no esgotamento
irreversível das águas subterrâneas e nos impactos negativos sobre o
ambiente.
Dois terços
da população global (quatro mil milhões de pessoas) vivem em condições de severa
escassez de água, pelo menos, um mês por ano. Meio milhar de milhões de
pessoas enfrentam grave escassez de água todo o ano. Metade das maiores
cidades sofre de escassez de água.
Só 0,014% da
água da Terra é doce e facilmente acessível. Da restante, 97% é
salina e pouco menos de 3% é de difícil acesso. Tecnicamente, há suficiente quantidade
de água doce à escala global, mas, devido à distribuição desigual (agravada
pelo aquecimento global), há locais muito húmidos e outros muito secos,
além do aumento acentuado da procura global de água doce, nas últimas décadas
impulsionada pela indústria. Por isso, a Humanidade enfrenta a crise hídrica. A procura superará a
oferta em 40%, em 2030, se a tendência atual continuar.
O aumento
da população mundial, a melhoria dos padrões de vida e de consumo e a
expansão da irrigação agrícola são as principais forças motrizes da
crescente procura de água. Mudanças climáticas, como padrões climáticos
alterados (incluindo secas e inundações), desmatamento, aumento da poluição, gases
de efeito de estufa e desperdício de água causam insuficiência de abastecimento. A
nível global e em base anual, há água doce suficiente disponível para satisfazer
a procura, mas são grandes as variações espácio-temporais da procura e da disponibilidade
de água, levando à escassez de água em várias partes do Mundo, em períodos específicos
do ano.
A escassez
varia, ao longo do tempo, em resultado da natural variabilidade hidrológica, e
varia mais em função da política económica vigente, do planeamento e das abordagens
de gestão.
Prevê-se a intensificação
da escassez com os modos de desenvolvimento económico, mas, se devidamente
identificada, muitas causas podem ser previstas, evitadas ou mitigadas. Alguns
países provaram a possibilidade de separar o uso da água do crescimento
económico. Por exemplo, o consumo de água, na Austrália, diminuiu 40%,
entre 2001 e 2009, enquanto a economia cresceu mais de 30%. O Painel
Internacional de Recursos (PIR) da Organização das Nações Unidas (ONU) afirma
que os governos investem em soluções ineficientes: megaprojetos como represas,
canais, aquedutos, ductos e reservatórios de água, que não são
ambientalmente sustentáveis, nem economicamente viáveis. Segundo o painel
científico, o modo mais custo-efetivo de dissociar o uso da água do
crescimento económico, é os governos criarem planos holísticos de gestão
da água que tenham em conta todo o ciclo da água: fonte, distribuição, uso
económico, tratamento, reciclagem, reaproveitamento e devolução ao
ambiente.
A disponibilidade
da água (o principal meio pelo qual sentiremos os efeitos da mudança climática)
torna-se imprevisível em muitos lugares, e o aumento da incidência de enchentes
ameaça destruir os pontos de água e instalações de saneamento e contaminar as
fontes de água. Nalgumas regiões, as secas exacerbam a escassez de água,
afetando negativamente a saúde e a produtividade das pessoas. Garantir que
todos tenham acesso a serviços sustentáveis de água e saneamento é uma estratégia
crítica de mitigação da mudança climática nos próximos anos. Temperaturas mais
altas e condições climáticas extremas e menos previsíveis afetarão a
disponibilidade e distribuição da chuva, o derretimento da neve e do gelo, os fluxos
dos rios e os lençóis freáticos, deteriorando mais a qualidade da água, levando
ao aumento da escassez. E comunidades de baixos rendimentos, as mais
vulneráveis ameaças ao abastecimento de água, serão as mais afetadas.
A escassez
de água tem muitos impactos negativos no ambiente, como efeitos adversos em
lagos, rios, lagoas, pântanos e outros recursos de água doce. O uso excessivo
de água conexo com a escassez de água, localizado em áreas de irrigação agrícola,
prejudica o ambiente de vários modos, incluindo o aumento da salinidade, a
poluição por nutrientes e a perda de várzeas e de pântanos.
Além disso,
a escassez de água torna problemática a gestão do fluxo na reabilitação de
córregos urbanos. Nos últimos cem anos, foram destruídas mais de metade
das zonas húmidas da Terra, importantes, por serem o habitat de muitas espécies (mamíferos,
pássaros, peixes, anfíbios e invertebrados) e por ajudarem o cultivo de arroz e
de outras culturas alimentares, além de propiciarem a filtragem de água e a proteção
contra tempestades e inundações. Sofrem os lagos de água doce, como o norte do Mar
de Aral, na Ásia Central. Era o quarto maior de água doce, mas perdeu mais de
58 mil quilómetros quadrados de área e aumentou imenso a sua concentração de
sal ao longo de três décadas.
Outro resultado
da escassez de água é a subsidência (afundamento gradual de formas de
relevo), que, para o Serviço Geológico dos Estados Unidos da América (EUA),
afetou mais de 17 mil milhas quadradas em 45 estados dos EUA (80%), com o uso
de água subterrânea. Nalgumas áreas a leste de Houston, Texas, o
terreno caiu mais de 2,7 metros.
***
Para
ultrapassar a crise hídrica, estão em debate várias soluções. Uma
delas, que não é nova, é a dessalinização – processo crucial nos países que sofrem maior
stresse hídrico –, que consiste em
eliminar os minerais (maioritariamente sal) da água do mar, mediante processos
físicos e químicos, com vista ao consumo humano ou agrícola, e que impõe
o aumento da capacidade das dessalinizadoras reduzindo, simultaneamente, o seu
impacto ambiental. Ocorre, de forma natural, durante o ciclo da água: a
evaporação da água do mar deixa atrás o sal, para formar nuvens que geram a
chuva.
Aristóteles
viu que a água do mar evaporada e condensada é doce e Da Vinci compreendeu que
é fácil obtê-la com o alambique. Posteriormente, a dessalinização foi
utilizada, sobretudo, em embarcações em submarinos, para fornecer a tripulação, em
longas travessias. Porém, o processo não esteve disponível em larga escala
até à revolução industrial e ao desenvolvimento das plantas de dessalinização. Segundo
o último estudo, de 2019, dos pesquisadores do Instituto para a Água, Meio
Ambiente e Saúde da Universidade das Nações Unidas (UNU-INWE), há cerca de 16
mil plantas de dessalinização em operação – distribuída por 177 países – a gerar
cerca de 95 milhões de metros cúbicos de água doce por dia. O primeiro país a adotá-la,
de forma massiva, foi a Austrália, país árido onde a Seca do Milénio, entre
1997 e 2009, causou estragos. Hoje possui plantas de
dessalinização nas principais cidades, que utilizam o processo da osmose
reversa. A Arábia Saudita é o primeiro país em dessalinização por
volume, seguido dos Emirados Árabes Unidos (EAU). Ambos os países são
desérticos e dependentes desse processo. Outros países do Oriente
Médio, como o Kuwait e o Catar, também apostaram nessa técnica. Nos EUA,
terceiro nesse particular ranking, há
microplantas de dessalinização perto de quase todas as instalações de gás
natural, para aproveitar o calor residual. A Espanha é o quarto, graças ao
impulso das Ilhas Canárias e da costa de Alicante e de Múrcia, onde as centrais
térmicas estão a ser substituídas por plantas de dessalinização.
A destilação consiste em ferver a água do mar num alambique, recolher o vapor e condensá-lo
para obter água doce. É o método mais óbvio para eliminar o
sal, mas não o mais eficaz, pois consome muita energia. Entre os processos de
dessalinização mais utilizados, contam-se a osmose reversa, a destilação solar, a eletrodiálise, a nanofiltração e a formatação
de hidratos gasosos.
A osmose reversa, o mais utilizado,
consome menos energia que os demais, por utilizar membranas
semipermeáveis que
deixam a água passar, mas não o sal. Tais membranas são de poliamida ultrafina,
que podem ser contaminadas com bactérias, pelo que a água deve ser tratada. A destilação solar imita o ciclo da água
e consiste em evaporar água do mar em grandes instalações cobertas, onde
se condensa e recolhe em forma de água doce. Embora a energia utilizada seja o
calor do sol, são necessárias grandes extensões de terreno.
A eletrodiálise consiste em mover a
água salgada, através de membranas carregadas eletricamente que retêm
os iões de sal dissolvidos na água, permitindo extrair
água doce. Há diversos tipos de eletrodiálise, como a convencional e a reversa.
A nanofiltração utiliza membranas de
nanotubos com maior permeabilidade do que a osmose reversa,
permitindo processar mais água em menos espaço e com menos
energia. As membranas são fabricadas com compostos sulfonados que, além do sal,
removem vestígios de poluentes.
Quanto à formatação de hidratos
gasosos, é de ter em conta que são cristais sólidos que se formam ao
combinar a água com um gás, como o propano, em alta pressão e a baixa
temperatura. Durante o processo, desaparecem todos
os sais e impurezas presentes na água e, ao elevar a temperatura, é possível
recuperar o gás permanecendo a água doce.
A dessalinização é uma necessidade crescente, à medida que diminuem as
reservas de água doce. Segundo o estudo da ONU, publicado pela revista Science of the Total Environment, combinada com o uso
responsável pelos recursos hídricos, pode ser o elemento-chave para obviar à escassez de água, no futuro, apesar
das desvantagens que convém não ignorar. De facto, o processo não está isento
de impacto, já que o resíduo resultante é a salmoura, água
residual com concentração elevada de sal e poluentes, que, em muitos casos, se despeja no mar, afetando os ecossistemas. Concretamente,
o estudo estimou a descarga de salmoura em 142 metros cúbicos por dia. E
há o risco de filtrações poderem contaminar os aquíferos da costa. Assim, Manzoor
Qadir, coautor do estudo, propõe “converter um problema ambiental numa
oportunidade económica”. No estudo, recomenda utilizar a salmoura para a
aquicultura, para gerar eletricidade ou para recuperar os metais
nela contidos, como o magnésio, o gesso, o cálcio, o potássio, o cloro ou o
lítio.
Muitos processos de dessalinização exigem aquecer a água, pressurizá-la
ou ambas as coisas, o que implica elevado custo energético. Então, há que utilizar energias renováveis, como
a solar, para reduzir o consumo das dessalinizadoras. Outra
via para uma dessalinização sustentável será utilizar a biotecnologia, mediante
cultivos de cianobactérias capazes de processar a água do mar, formando ao seu
redor um depósito de baixa salinidade.
***
A
dessalinização possui múltiplas vantagens, mas é só parte de um conjunto de
soluções ao dispor dos serviços de água, até pelas desvantagens e riscos que envolve.
Os desafios de gestão de água, decorrentes de secas prolongadas têm
permitido a proliferação do debate sobre as alternativas aos métodos
tradicionais de captação e de produção de água para consumo humano. Surge a
dessalinização como solução tecnológica inovadora que acabará com os males
advenientes da escassez de água, sem que isso implique mudança de
comportamentos de utilizadores ou de entidades gestoras. Ora, isso é exagero
decorrente do desconhecimento do processo (há 42 anos, iniciou-se a
dessalinização em Portugal) e do foco exclusivo nas vantagens do processo que
tem limitações e problemas para os quais não temos solução clara.
Há textos de toda a espécie sobre o processo e como ele eliminaria o
problema da escassez de água. Contudo, não se escreveu muito sobre os problemas
de segurança da qualidade da água, do dispêndio energético (maioritariamente
provindo de fontes não renováveis), que redundará no aumento do nível de
emissões de gases poluentes, e da carga de produtos químicos decorrentes da
salmoura resultante da dessalinização.
Alguns dos constrangimentos podem ser mitigados pela possibilidade de
recurso a energias limpas – por exemplo, o protótipo em testes desenvolvido
pelo INEGI, relativo ao sistema de dessalinização acionado por energia solar
térmica – embora a fatura energética continue a pesar, com reflexo financeiro e
ambiental na transição energética e nas metas de emissões a que Portugal se
vinculou. Estas limitações sugerem a dificuldade em massificar a dessalinização,
figurando esta como complemento aos métodos tradicionais e a outras ferramentas
que, de forma integrada, permitam maior eficiência na gestão da água para
consumo humano.
Muita da falta de água para consumo humano pode ser resolvida com o combate
à perda de água numa rede de distribuição envelhecida, que representa perda de
cerca de 30% da água produzida. Esta perda – a que acresce a deficiente
política tarifária – é nefasta para a capacidade de investimento em
modernização infraestrutural e tecnológica – ao dispor da entidade gestora e
que, numa empresa, representaria o seu colapso financeiro. Outra possibilidade
é o recurso à reutilização de águas residuais urbanas tratadas, nomeadamente,
para a rega de jardins e outras atividades diversas do consumo humano.
A água, apesar de ser um setor de capital intensivo, promove um
investimento multiplicador e sustentável, potenciador do desenvolvimento
económico alicerçado na sustentabilidade, em que o racional é mais do que o
valor acrescentado que traz à economia, projetando-se no impacto nas gerações
futuras e no ambiente e assegurando um presente que não compromete o futuro.
Porém, temos de empregar todos os esforços de moderação do consumo de água.
Tem, pois, a dessalinização múltiplas vantagens, mas não é a varinha mágica
que multiplicará a produção de água doce. Representa só parte das soluções ao
dispor dos serviços de água.
2023.10.27 – Louro de Carvalho
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