Serve o enunciado
em epígrafe para caraterizar sinteticamente, do meu singelo ponto de vista, a
personalidade de Manuel António Pina, acerca de quem nunca tive a ousadia de
escrever, embora o devesse, pois era, para mim e para muitos jovens, uma das
maiores referências do Jornal de Notícias
(JN), um dos diários nortenhos mais
bem conseguidos e que nós líamos, quando estudantes ou quando laborávamos nos
recantos perdidos do interior do país.
É, pois,
natural que o 19 de outubro de 2012 fosse dia de desapontamento, por causa do
seu falecimento, ainda novo, apesar de a antropologia cristã nos levar a
acreditar que os homens não morrem, apenas passam a fronteira, ficando a
acenar-nos com a lonjura da eternidade. Não obstante, o desaparecimento, do
mundo dos que se consideram “os vivos”, da figura polifacetada do jornalista, escritor,
poeta e tradutor – lembrando o granito que sorri ou o vento forte que afaga os desamparados
– cavava uma lacuna humana no património cultural e humanístico que Manuel
António Pina vinha enriquecendo.
***
Manuel António Pina, filho de Manuel Pina e de Ester Mota,
nasceu a 18 de novembro de 1943, no Sabugal, distrito de guarda [“Nasci no Sabugal, mas
costumo dizer que me nasci a mim mesmo no Porto” – dizia], e faleceu a 19
de outubro de 2012, no Hospital de Santo António do Porto, de doença prolongada.
Aos 17 anos de idade, passou a viver no Porto. Licenciado em Direito pela
Universidade de Coimbra, em 1971, exerceu a advocacia e foi técnico de
publicidade.
Entretanto, abraçou a carreira de jornalista profissional,
exercendo no JN, no Porto, entre 1971 e 2001, onde veio a desempenhar funções de
editor e de chefe de redação. Além do JN, tem colaboração dispersa
por outros órgãos de comunicação, entre imprensa escrita, rádio e televisão – República,
Diário de Lisboa, O Jornal, Expresso, Jornal de
Letras, Artes e Ideias, Marie Claire, a Visão (de que foi colunista), a Península
(Barcelona), Rádio Porto, RTP, etc.
Foi também
professor da Escola Superior de Jornalismo do Porto e membro do Conselho de
Imprensa. E, depois de deixar o trabalho de permanência no JN, continuou a sua colaboração nele como cronista, bem como na
revista Notícias Magazine.
A sua obra consegue
forte coesão estrutural, mantendo em
ambos os registos – poesia e literatura para a infância – o que foi
classificado como “um discurso de invulgar criatividade e de constante desafio
à inteligência do leitor”, independentemente da sua idade. E reflete grande criatividade, exigindo do leitor
profundo sentido crítico e descodificador. Por vezes, o jogo vocabular e conceptual,
aliado ao permanente jogo de imaginação, parece criar um labirinto que obriga a
um verdadeiro trabalho de desconstrução para se encontrar a saída.
Na obra poética,
revela um cariz sentido e reflexivo, de tom irónico e de pendor filosofante, revelando
uma tendência nietzschiana, para conseguir, segundo alguns críticos, “uma
segunda e mais perigosa inocência”. Já a sua obra de literatura para a
infância, que tem lugar privilegiado no panorama nacional, graças a um nonsense de
tradição anglo-saxónica (onde se deteta a influência de Lewis Carroll), brinca,
inteligente e seriamente, com as palavras e com os conceitos, em jogo de persistente
imaginação. Por isso, grande parte desta literatura infantojuvenil está
presente em manuais escolares e em antologias de Portugal e de Espanha.
Manuel Frias Martins considera que o poeta se afirmou como uma das mais
originais vozes na expressão pós-pessoana da fragmentação do eu, manifestando,
sobretudo a partir de Nenhum Sítio, tendência para a exploração das possibilidades
filosóficas do poema, transportando a palavra poética, “quer para a
investigação do processo de conhecimento, quer para a investigação do processo
de existência literária”.
Tem estreita
relação com o teatro, tendo sido, em 1982, bolseiro do Centro Internacional de
Teatro de Berlim junto do Grips Theater (Berlim). Foram feitas mais de duas
dezenas de produções teatrais baseadas em textos seus, por várias companhias
teatrais do país. Apresenta vários programas de ficção e de entretenimento para
a televisão, entre os quais uma série infantil de doze episódios “Histórias com
Pés e Cabeça” (1979/80). Aliás, foi desde 1994, autor de vários guiões para
séries de ficção para TV. E tem obra adaptada ao cinema: José Carvalho
realizou, em 1980 “Uma História de Letras”, a partir de um conto de O
Têpluquê. João Botelho realizou, em 1999 “Se a Memória Existe”, filme sobre
texto integral de O Tesouro. Está editada em vídeo “Pequena
Antologia Poética de Manuel António Pina” (1998). Foram editados vários discos
com textos seus musicados, nomeadamente “O Inventão”, “O Bando dos Gambozinos”,
“O Beco” e “A Casa do Silêncio”. E o poema “Farewell Happy Fields” foi objeto da
exposição com o mesmo nome de 50 desenhos de Alberto Péssimo, apresentada na
Galeria Labirinto, no Porto, em 1992.
Organizou,
prefaciou e traduziu O Homem Invisível (antologia poética de Pablo
Neruda), Porto: Afrontamento, 1965; e subscreveu, dispersas por jornais e
revistas, traduções de Frei Luis de Léon, de Jules Laforgue, de T. S. Eliot, de
Paul Éluard e de outros poetas.
Colaborou ou
está representado nas seguintes publicações coletivas e antologias: Antologia
da Poesia Portuguesa, Lisboa: Moraes ed., 1979; De que São Feitos
os Sonhos, Porto: Areal ed., 1985; Sião, Lisboa: Frenesi,
1987; Poesia Portuguesa Hoje, Rio de Janeiro: Fundação da
Biblioteca Nacional do Ministério da Cultura do Brasil, 1993; O Poeta e
a Cidade, 2.ª ed. Porto: Campo das Letras, 1996; Cadernos de
Serrúbia, n.º 2, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, Dez. 1997; Retratos
e Poemas, Lisboa: Casa Fernando Pessoa, 1998; Poemas de Amor,
Lisboa: Publicações D. Quixote, 2001; Rosa do Mundo / 2001 Poemas para
o Futuro, Porto 2001 e Lisboa: Assírio & Alvim, 2001; Ao Porto,
Lisboa: Publ. D. Quixote, 2001; Século de Ouro / Antologia Crítica da
Poesia Portuguesa do Século XX, Coimbra: Capital Nacional da Cultura e
Lisboa: Cotovia, 2003. Integrou as representações oficiais da Literatura Portuguesa
na Feira do Livro de Frankfurt (1997), no Salão do Livro de Paris (2000) e no
Salão do Livro de Genève (2001). Em 1997, foi poeta residente convidado da
cidade de Villeneuve-sur-Lot (França) e, em 2001, foi agraciado com a Medalha
de Ouro de Mérito da Câmara Municipal do Porto.
Em 2005, a 9 de maio, foi feito Comendador da Ordem
do Infante D. Henrique.
Integrou a
carteira de itinerâncias da Direcção-Geral do Livro e das
Bibliotecas DGLB –
antecessora da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) –, como líder de comunidades de leitores em Bibliotecas
Municipais. Está traduzido e publicado em Espanha, na França, na Dinamarca, na
Croácia, na Bulgária, na Rússia, nos Países Baixos e nos Estados Unidos (EUA),
com o apoio da DGLB, e recebeu vários prémios.
É autor de vários títulos de poesia, novelas, textos
dramáticos e ensaios.
Em poesia, temos, por exemplo: Nenhum Sítio (1984), O Caminho de Casa (1988), Um Sítio Onde pousar a Cabeça (1991), Algo Parecido Com Isto da
Mesma Substância (1992); Farewell Happy Fields (1993), Cuidados Intensivos (1994), Nenhuma Palavra e Nenhuma
Lembrança (1999), Le Noir (2000), Os Livros (2003).
Em novela, destaca-se O Escuro (1997). Em texto dramático: História com Reis, Rainhas, Bobos, Bombeiros e Galinhas (1984), A Guerra Do Tabuleiro de Xadrez (1985). No ensaio: Anikki – Bóbó (1997). Na crónica, O Anacronista (1994). E, na literatura infantil: O País das Pessoas de Pernas para o Ar (1973), Gigões e Anantes (1978), O Têpluquê (1976), O Pássaro da Cabeça (1983), Os Dois Ladrões (1986), Os Piratas (1986), O Inventão (1987), O Tesouro (1993), O Meu Rio é de Ouro (1995), Uma Viagem Fantástica (1996), Morket (1999), Histórias que me contaste tu (1999), O Livro de Desmatemática e A Noite, obra posta em palco pela Companhia de Teatro Pé de Vento,
com encenação de João Luís.
***
Quando lhe
perguntavam o que queria ser quando fosse grande, respondia, em verso, que
queria ser santo, bombeiro, detetive e “Salazar” (tudo
profissões). Tinha alguns brinquedos, mas os preferidos eram as palavras: “E outros brinquedos que eu tinha, de facto, eram as palavras. E
descobri isso, quando era muito novo. Com as palavras inventava coisas. Sempre
gostei muito das palavras…” As palavras viveram uma história
de amor com Manuel António Pina. “As palavras, todas as
palavras, adoravam-no – e voam, deslumbradas, para ele”, diz Álvaro
Magalhães, companheiro de longa data do poeta e seu biógrafo.
Sentava-se à mesa com um livro aberto
em frente ao prato da sopa, sendo repreendido por isso. Aos 7 anos de idade,
fez uma das leituras mais emocionantes: os dois volumes de A Vida Sexual, de Egas Moniz, que leu às
escondidas e que figurou, para sempre, na lista dos favoritos, com Alice no País das Maravilhas, Joanica-puff, a Bíblia e a Ilíada. Lia tudo, incluindo
entradas avulsas da Enciclopédia Verbo. Dos poetas, Pessoa ficou-lhe para
sempre: “Apanhei então alguma daquela poesia […], como se
apanha uma doença.”
Além das tertúlias no café Orfeu,
havia um grupo mais restrito que desaguava em casa de Manuel António Pina, aí
continuando as conversas sobre literatura. Era um bom conversador e contador de
histórias. Esclarece Álvaro Magalhães que, até quando narrava um drama ou uma
desgraça, corria o risco de ser engraçado. Foi professor, advogado, guionista,
publicitário, ator de teatro, praticante de artes marciais, revolucionário,
adepto de futebol e jogador de póquer. E foi poeta inimitável, “um poeta que já nasceu feito”, no
dizer de Álvaro Magalhães, relativamente ignorado, desde que começou a
publicar, em 1974, até 1999, quando tinha quase 60 anos e viu a sua poesia ser
publicada pela Assírio & Alvim.
Também se registam dados meio
picarescos. Uma professora da Escola Secundária Maria Lamas, no Porto, que
havia sido aconselhada a ensinar a sua poesia nas aulas, recusou, alegando que
não a entendia. Tendo conhecimento do facto, o poeta comentou: “É natural, eu também não entendo aquilo que escrevo.” Durante
uma visita escolar, um aluno pergunta-lhe por que escolhera ser poeta e
escritor: “A literatura é que me escolheu a mim.”
Em 2011,
recebeu “a coisa mais inesperada que podia esperar”: o
Prémio Camões.
Acreditava
que não vale a pena fazer planos para a eternidade, porque esta “está-se nas tintas” para os nossos planos. Só pediu: “Fazei com que alguma coisa permaneça. Um
verso, um poema.” “A ideia de reforma, que é horrível, aterroriza-me. Quero
trabalhar até morrer.”, disse em 2000, quando, então com 57 anos, deixou o
jornal onde trabalhara como jornalista durante 30 anos.
***
A sua obra tem merecido destaque, tendo sido já homenageado com diversos
prémios, como, por exemplo, o Prémio Literário da Casa da Imprensa, em 1978,
por Aquele Que Quer Morrer; o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para
Crianças e Jovens e a Menção do Júri do Prémio Europeu Pier Paolo Vergerio, da
Universidade de Pádua, em 1988, por O Inventão; o Prémio do Centro Português de Teatro para a Infância e
Juventude, em 1988, pelo conjunto da obra; o Prémio Nacional de Crónica Press
Clube/Clube de Jornalistas, em 1993, pelas suas crónicas; o Prémio da Crítica
da Associação Portuguesa de Críticos Literários, em 2001, por Atropelamento e Fuga; e o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava e o Grande
Prémio de Poesia da APE/CTT, ambos pela obra Os Livros, recebidos em 2005. Em 2011, foi-lhe atribuído o Prémio
Camões. E, a título póstumo, foi galardoado com o Prémio de Poesia Teixeira de
Pascoaes, pelo livro Como se Desenha uma
Casa, e com o Prémio Especial da Crítica dos Prémios de Edição
Ler/Booktailors 2012, pelo livro Todas as Palavras – Poesia
Reunida.
***
Como dizem 10 amigos que se reuniam com ele no café Convívio (e por quem
esperavam) e que fundaram o “Clube dos Amigos à Espera
do Pina”, “talvez continuemos
todos à espera do Pina”. Entretanto, vamos lendo e refletindo.
2023.10.24 – Louro de Carvalho
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