“Mais do que medidas ou apoios avulsos que, sem a devida monitorização e
avaliação, nunca se constituirão como estratégicos”, são necessárias “novas
abordagens e modelos de ação”. É o aviso do Presidente da República (PR) no Dia
Internacional para a Erradicação da Pobreza.
Num ano de excedente orçamental, o chefe de Estado pressiona o Governo a não descurar a situação da pobreza no país e a encontrar “novas abordagens e modelos de ação para o seu combate”. Em mensagem publicada na sua página oficial a propósito da efeméride, o PR avisa que cerca de dois milhões de portugueses [1,7 milhões] “são pobres”, que as novas realidades “têm agravado as condições de pobreza” e que “são necessárias novas abordagens e modelos de ação, mais do que medidas ou apoios avulsos que, sem a devida monitorização e avaliação, nunca se constituirão como estratégicos”. E, apesar de assinalar “os passos positivos na identificação” das causas da pobreza e “no avanço” da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza publicada em 2021 e a concretizar até 2030, reforça a urgência de novas abordagens: “Só assim se poderá equacionar a retirada de 660 mil pessoas da situação de pobreza, reduzindo para metade da taxa nas crianças e entre trabalhadores, objetivo traçado e que todos desejamos alcançar.”
Efetivamente, depois de, em 2019, ter apontado a data de 2023 para acabar
com a situação dos sem-abrigo, objetivo em relação ao qual o governo foi mais
prudente, admitiu a impossibilidade de cumprir o prazo, devido à pandemia de
covid-19, e apontou 2026 como a nova
meta para “reduzir drasticamente” o número de pessoas sem-abrigo e ter uma “cobertura
nacional em termos de prevenção”. Foi este o prazo indicado, a 15 de outubro,
no Algarve, no encontro nacional da Estratégia Nacional para a Integração de
Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENPISSA), lançada em 2017 e que termina este
ano, mas para a qual o PR quer novo objetivo temporal, a que junta o apelo a nova
estratégia a começar em 2024.
No discurso o Algarve, o PR apontou respostas como o Housing First (a casa,
primeiro), que aposta na autonomização dos sem-abrigo, um bom exemplo europeu e
mundial. Pediu atenção a situações de risco como a dos trabalhadores agrícolas
sazonais em Odemira, no Alentejo, e a dos Timorenses que vieram com promessas
de trabalho e acabaram a viver nas ruas de Lisboa.
Marcelo Rebelo de Sousa diz não desistir da causa da erradicação do
problema dos sem-abrigo – que apontou como um desígnio nacional, quando assumiu
o cargo – e que tem a expectativa de que o programa do governo tenha
continuidade até ao fim da legislatura.
***
A 17 de outubro, Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, o governo
apresentou o Plano de Ação 2023-2025 da Estratégia Nacional de Combate à
Pobreza (ENCP).
Segundo os dados das declarações do imposto sobre o rendimento
das pessoas singulares (IRS) partilhados pela Pordata, para marcar a efeméride,
mais de um terço das famílias ganhavam,
em 2021, o máximo de 833 euros brutos mensais e mais de metade
apresentava rendimentos até 1125 euros. E, numa altura em que a habitação e a inflação têm apertado cada vez mais a vida
de milhares de famílias, os dados da Pordata mostram que, em 2022, cerca de um terço (29%) gastava mais de
40% dos seus rendimentos só para pagar renda e despesas da casa. Neste indicador do Eurostat, Portugal mantém-se acima da média
europeia (21%), que nunca chegou a ir além dos 27%, desde que há registos.
Sem avançar mais detalhes sobre o plano de ação ora
divulgado, a coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, Sandra
Araújo, diz que o documento conta com seis eixos, 14 objetivos estratégicos e 273 atividades “que tocam todas
as áreas setoriais que contribuem para o combate à pobreza”.
Passaram-se três anos desde a criação da comissão que
preparou a Estratégia, aprovada pelo governo no final de 2021. Porém, só quase
um ano depois, foi definida uma coordenadora, que preparou o plano de ação para
o período de entre 2023 e 2025. O objetivo final é chegar
a 2030 com menos 660 mil pessoas em situação de pobreza, incluindo 230 mil
trabalhadores e 170 mil crianças. Entre as metas, conta-se também a
redução da privação material infantil e da disparidade da pobreza entre as
diferentes regiões do país.
Para o economista Carlos Farinha Rodrigues, que
participou na preparação da Estratégia, avançar com o plano “é positivo”, pois
é dada uma “consistência acrescida às políticas de combate à pobreza”, mas “já deveria ter avançado há mais tempo”.
Os dados da Pordata mostram também que, em
sete anos, o preço das casas subiu 90%, em Portugal, enquanto os salários
aumentaram apenas 20%. Em média, na União Europeia (UE), entre 2015 e
2022, o preço das casas subiu 48%. “Quer
as rendas, quer os juros estão a dificultar a vida de milhares de pessoas, que
não são só as pessoas em situação de pobreza”, frisa Carlos Farinha
Rodrigues, explicitando: “Temos algumas pistas a sugerir que há setores da
população a sofrer fortemente com o aumento dos preços e a inflação. Mas uma das minhas preocupações é que estas
dificuldades não surjam nos indicadores de pobreza tradicionais.”
Tal como já tinha defendido antes, o especialista considera necessário
pensar em “indicadores que possam ser articulados com existentes” e que
traduzam a “capacidade de acesso da população a bens e serviços essenciais”. Ainda
não é conhecida a percentagem da população que estava em situação de pobreza em
2022. Os dados mais recentes são de 2021, altura em que 1,7 milhões de
portugueses (16,4%) viviam com menos de 551 euros mensais.
Como se disse, o ENCP reúne mais de
270 medidas, com destaque para o apoio às crianças e jovens, habitação e
emprego. Além disso, em sintomia com o aviso do chefe de Estado, o
governo, pela mão de Ana Mendes Godinho, ministra do Trabalho, Solidariedade e
Segurança Social, avança com um novo modelo assente na “resposta integrada e personalizada”,
com um gestor para cada caso de pessoas em risco. Esta é, segundo o Jornal
de Notícias (JN), de 17 de outubro,
uma das mais de 270 medidas propostas no plano do governo, estruturado em seis
eixos de intervenção e 14 objetivos estratégicos. “É reformular toda a lógica
de atendimento e intervenção social no país”, apontou Ana Mendes Godinho, salientando
que as pessoas vão deixar de ter de bater a 200 portas, para resolverem os seus
problemas e que não haverá intervenções múltiplas.
A meta é
retirar 660 mil pessoas da situação de pobreza e reduzir para metade as
crianças em risco até 2030, num projeto com dotação média de três mil milhões
de euros anuais.
Em algumas
autarquias vai arrancar o projeto-piloto em 2024, sendo que o objetivo alargá-lo
a todo o país entre 2026-2030. “Tivemos uma reunião com a Associação Nacional
de Municípios Portugueses que ficou muitíssimo entusiasmada, até porque surge
no contexto da descentralização da ação social, em que cada vez mais a lógica é
de respostas de proximidade e não de distância”, frisou a responsável pela
pasta da Solidariedade e da Segurança Social.
A pessoa de
maior vulnerabilidade deve dirigir-se a um serviço de primeira linha, neste
momento, a ação social descentralizada na autarquia. Identificada a situação,
“será identificado um gestor de caso, que responderá “pela interação permanente
e integrada com essa pessoa”. Estão também previstas para a pessoa em questão
“visitas técnicas da educação, das equipas de saúde, da Segurança Social, da
ação social”.
O gestor de
caso “fará parte de uma ‘pool’ criada ao nível da ação social de primeira
linha”, explicou a ministra, e terá como missão “encontrar respostas nas várias
dimensões de políticas públicas sociais”. “Isto é de uma dimensão brutal” e,
para quem está em causa, é uma “viragem completa na forma como olhamos para as
respostas à pobreza”.
No Orçamento do Estado para 2024 (OE2024) está previsto um aumento da
despesa com prestações sociais. Além do abono
de família (desejavelmente automático), do reforço da garantia para a infância e
do alargamento da gratuitidade das
creches para 120 mil crianças, no próximo ano, será reforçado
o complemento solidário para idosos (CSI)
e o rendimento social de inserção (RSI).
Proceder-se-á à implementação de programas de bem-estar mental nas escolas e ao
aumento do número de psicólogos (pelo menos, um por 750 alunos).
Requalificar-se-ão as respostas de acolhimento residencial e aumentar-se-á o
número de famílias de acolhimento. Reforçar-se-á o apoio aos jovens na habitação
(renda acessível e aumento dos tetos de rendas elegíveis no Porta65 Jovem), na qualificação
profissional e no apoio financeiro ao ensino não superior em meio prisional. E
reforçar-se-ão, em articulação com os municípios, os apoios a idosos, a Agenda
do Trabalho Digno, a formação profissional de trabalhadores, a inserção de
sem-abrigo e de migrantes, a educação e a inserção socioprofissional de portadores
de deficiência e de dependentes.
***
A Organização
das Nações Unidas (ONU) marca este Dia Internacional para a Erradicação da
Pobreza sob o lema “Trabalho Decente e Proteção Social: Colocar a dignidade em
prática para todos.” A métrica para determinar a pobreza extrema é um rendimento
diário inferior a 2,15 dólares por pessoa. Atualmente, mais de 8,4% da
população global, cerca de 670 milhões de pessoas, vivem nessa condição. As
projeções até 2030 indicam que 7% da população mundial, o equivalente a 575
milhões de indivíduos, ainda enfrentará a extrema pobreza.
A data
promove a inclusão e o diálogo entre aqueles que vivenciam essa situação e a
sociedade em geral. Em 2023, o tema destaca as pessoas que enfrentam jornadas
de trabalho longas e difíceis, em condições perigosas, não regulamentadas e sem
ganhos adequados para o sustento pessoal e de suas famílias. Os benefícios de
adotar o conceito de trabalho decente incluem capacitar os indivíduos,
assegurar salários justos e condições de trabalho seguras, bem como reconhecer
o valor próprio e a humanidade dos trabalhadores. Por outro lado,
enfatiza-se a urgência de implementar a proteção social universal para garantir
que os rendimentos sejam seguros para todos, com especial atenção aos grupos
mais vulneráveis da sociedade.
O apelo aos
políticos é que tenham a dignidade humana na orientação dos processos de tomada
de decisão. A meta é garantir que avanços nos direitos humanos e na justiça
social tenham prioridade em relação à busca de lucros empresariais.
A ONU
defende o reforço de parcerias entre governos, empresas e organizações da
sociedade civil em nível global para se alcançar um desenvolvimento equitativo
e “garantir que ninguém seja excluído ou deixado para trás”.
Este ano, a
data é marcada por pedidos de solidariedade com as pessoas que vivem na pobreza
e compromissos em favor de uma economia justa com foco na proteção do bem-estar
humano e ambiental, ao contrário de prioridades financeiras. O
administrador do Programa da ONU para o Desenvolvimento (PNUD) propõe que os países
criem condições para novos empregos dignos, para se acabar totalmente com a
pobreza. A atuação deve ser com o setor privado, que responde por cerca de 90%
de vagas nos países em desenvolvimento. Todavia, os países devem buscar
“meios para que as pessoas que vivem na pobreza tenham apoio essencial”. O
mundo teve mais 165 milhões de pessoas extremamente pobres entre 2020 e 2023. E
o chefe do PNUD defende que se vá além do Produto Interno Bruto (PIB) e que se
adotem métricas para combater as causas profundas da pobreza e promover o
progresso nos objetivos globais de forma mais eficaz.
***
O plano do governo português e o da ONU são ambiciosos exigentes.
Oxalá que se cumpram fora do papel. Se isso acontecer, outro galo cantará.
2023.10.17 –
Louro de Carvalho
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