O
que parece uma verdade de La Palisse foi um sério aviso deixado pelo Presidente
da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa, nas comemorações do 5 de Outubro –
113.º aniversário da implantação da República –, às instituições nacionais e às
internacionais, sobretudo àquelas que Portugal integra ou com as quais se
relaciona.
Embora politicamente mais contido do que em 2022 – em
que aproveitou a efeméride para denunciar “erros, omissões, incompetências e
ineficácias” na condução do país e lembrou que detém o poder de veto e o de
dissolução parlamentar –, o chefe de Estado não deixou eclipsar a ferida que
sente no país. E, condicionado pela necessidade de arrefecer a tensão instalada
na coabitação com o primeiro-ministro (PM), deambulou por alguns meandros da
História para desafiar António Costa que para mude de registo discursivo e de
orientação governativa, pois o leme tem de funcionar na direção ajustada à rota
pré-determinada (programa do governo).
O discurso do PR, de certo modo, parecia consonante
com o do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, que falou
primeiro. Efetivamente, o autarca, ao sustentar que temos de “recusar imagens
idílicas de nós mesmos”, parecia querer atingir o irritante otimismo que o
chefe de Estado encontra no governo.
Basicamente, a alocução presidencial tocou três pontos nevrálgicos: quando se perde tempo para “reformar a sério” e se
fica no “esperar para ver”, acaba-se a mudar à força e mal, porque “atabalhoadamente”,
pois as instituições mudam sempre “a bem ou a
mal”; as “inércias” deixam atrás de si vazios que outros ocuparão, com
potenciais riscos para as democracias (depois dos loucos anos 20 – tinha a
República sido implantada há 13 anos –, a Europa acreditava que “dominaria
sempre o Universo” e que “as guerras não regressariam”, mas findaram os
impérios e instalaram-se as ditaduras); e, em 2023, “temos tempo e espaço para
novos caminhos”, desde que saibamos reformar a sério”.
O repto que
o PR lançou abrange as instituições nacionais e internacionais, no contexto de
uma guerra global, sem olvidar os bloqueios nas questões climáticas por parte
da Organização das Nações Unidas (ONU), da União Europeia (UE), da Organização
do Tratado do Atlântico Norte (NATO) da Comunidade de Países de Língua
Portuguesa (CPLP) e do mundo ibero-americano. Porém, inclui, explicitamente, as
“instituições domésticas”, onde cabem o governo e todos os escalões da
administração púbica, o parlamento, o sistema judiciário, as autarquias, as
áreas metropolitanas e as comunidades intermunicipais. E os recados ao governo são
nítidos, mas não exclusivos. Podemos evitar o pior, disse o PR, “se não nos
habituarmos a prometer, ano após ano, que vamos reformar, sabendo que não vamos
cumprir”. “Mais vale preparar a mudança do que deixar, para improvisos, acertos
ou remendos de última hora, o que tinha de ser feito”.
Marcelo Rebelo de Sousa, aludindo “à guerra global feita de muitas outras
guerras”, alertou para os tantos que insistem “em não ver que a balança de
poderes do Mundo está em mudança”.
Segundo o PR, a situação agravar-se-á, se houver
atrasos com o clima, com a energia, com a inteligência artificial ou em relação
ao “peso das comunidades”, bem como se persistir a incapacidade ou a lentidão
na superação da pobreza e das desigualdades sociais, no reconhecimento do papel
da mulher ou do papel das minorias migrantes e dos jovens.
Há cem anos, vincou o chefe de Estado, na Europa e no
Mundo, “ainda mandavam os do passado” e acreditava-se que “o liberalismo
parlamentar de minorias era como que o fim da História”. “Olhamos
para o que era o Mundo, a Europa e Portugal, há precisamente 100 anos, e há
realidades que, vistas a mais distância, nos impressionam”, vincou,
recordando as dificuldades no acesso à educação, à informação e ao conhecimento
que, “na altura, era acessível a privilegiados”.
Todavia, o PR defendeu que é possível ter “democracias
mais fortes”, se não se optar por “esperar para ver”, pedindo reformas “a
sério”, para evitar mudanças vindas dos pântanos e para “revolver águas paradas”. “A mudança chegar, porque se prefere a
antecipação ao conformismo, a abertura ao fechamento, a alteração das
mentalidades, das instituições e das práticas ao situacionismo e à inércia, só
depende de nós. Nós, responsáveis a todos os níveis, nós povos, nós cidadãos de
Portugal, da Europa e do Mundo”, sustentou.
“Podemos fazer organizações universais mais fortes, se
não nos habituarmos a prometer, ano após ano, a sua reforma, sabendo que não vamos
cumprir. Podemos reformar a sério, prosseguir o caminho das reformas, para não
termos de ver contrarreformas fazerem ou pretenderem fazer aquilo que fizemos
de conta que não importava assumir”, defendeu, advertindo para o risco que
advirá, se as instituições e os sistemas demorarem
“eternidades a compreender que devem evoluir e reformar-se, reaproximar-se dos
povos e, desse modo, não deixarem espaço para que outros preencham o vazio que
vão deixando atrás de si”. Tudo isto poderá
suceder e mais depressa do que se pensa: a mudança submergir pântanos, revolver
águas paradas, abrir comportas demasiado tempo encerradas”, alertou. Esta
mensagem não é exclusiva para o governo.
***
O anfitrião das comemorações, na Praça do Município, avisou que o divórcio entre a
política e as pessoas pode criar um vazio “capturado pelas minorias barulhentas
e pelos ativismos radicais” que podem levar ao fim do regime: “É este o
atual divórcio que todos sentem entre a política e as pessoas. A política tem
de voltar a ser vista, sentida e vivida pelas pessoas. Mas entre este mundo
imaginário e o mundo real das pessoas, o que é que há? Há um vazio, capturado
pelas minorias barulhentas e pelos ativismos radicais. À falta de um ativismo
social moderado que dê respostas concretas, é a estes que as pessoas se
agarram.”
O autarca sublinhou que os
políticos, como atores sociais, têm a “responsabilidade ética, moral e social
de não deixar que os Portugueses se habituem a discursos políticos
inconsequentes”, que parecem falar de “um país imaginário onde não vivem as
pessoas reais”. E lembrou que a República de 1910 se autodestruiu “também por
causa dessas minorias barulhentas e desses radicalismos e, por isso, o 5 de
Outubro é “também uma lição histórica”.
“Quem fomenta esses radicalismos
arrisca-se a colher, mais cedo ou mais tarde, a dissolução do regime. Não
queiramos nós, hoje, que caminhamos para os 50 anos do 25 de Abril, contribuir
para um desfecho assim”, exortou.
O autarca de Lisboa dirigiu-se ainda
aos trabalhadores que fazem Portugal, “todos os dias, com a sua dedicação”,
muitos dos quais “pensam, com razão, que vivem sobrecarregados de impostos”,
para lhes dizer que “é possível não trabalhar apenas para alimentar a máquina
do Estado”. “Sim, é possível diminuir os obstáculos à vossa vida. Todos temos
de fazer este esforço: Estado central e autarquias”, afirmou. E, a este
respeito, Carlos Moedas relevou que, durante o seu mandato, a autarquia tem
baixado os impostos. “E, para o ano, baixaremos mais um ponto percentual,
devolvendo aos lisboetas 4,5% do seu IRS. Gradualmente, mas com firmeza”,
porfiou.
“É preciso estar do lado das pessoas”, vincou. E,
aproveitando para ‘vender’ o que tem vindo a fazer em Lisboa – baixar impostos,
apoiar “um Estado Social local”, nas áreas da saúde e dos transportes – Carlos Moedas
mostrou-se disposto a “ajudar” António Costa: “Senhor primeiro-ministro, pode
contar connosco”, afirmou, garantindo que “todos os municípios” estão a
trabalhar na resposta aos problemas sociais do país.
Tal como o PR fez, Carlos Moedas, a tentar moderar a
crispação que, também em Lisboa, tem marcado a sua relação com o Partido
Socialista (PS) e com o governo, pediu “moderação, bom senso e pragmatismo”. E
fechou com a expressão do Papa Francisco – “Todos,
todos, todos” – que marcou a recente Jornada Mundial da Juventude (JMJ).
Já a sua proposta da celebração dos símbolos nacionais
foi provocadora, nomeadamente quando defendeu que “o que fazemos com os
símbolos é a nossa responsabilidade” e anunciou que, em Lisboa, vai associar às
comemorações do 25 de Abril “uma grande iniciativa para celebrar o 25 de
novembro”. A esquerda é contra e o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva,
chegou a considerar inoportuno alargar as comemorações do 25 de Abril (a cuja
comissão presidiu antes de ir para o governo) a datas “fraturantes”. Mas a
discussão está em marcha e os “novos caminhos” de que fala o PR também passarão
por aqui.
Porém, se todas as datas são importantes e não há
ideologia na proposta, deverá estar aberto a comemorações do 28 de Setembro e
do 11 de Março, para não falar do 16 de março de 1974.
***
António Costa, que não usou da palavra nas
comemorações (é esse o costume), considerou o discurso do PR uma “reflexão interessante”.
“O discurso do senhor Presidente da
República foi uma reflexão particularmente interessante para aquele alerta que
todos temos que estar, que é preciso antecipar as questões para tomar as boas
decisões.”
O PM considerou este alerta “particularmente oportuno”
no momento em partia para Granada, em Espanha, para a III reunião da Comunidade
Política Europeia e para uma reunião informal do Conselho Europeu, no dia 6 de
outubro, onde se debaterá o que vai ser o futuro da
Europa, do ponto de vista estratégico, e onde há decisões fundamentais a tomar
relativamente ao alargamento. E isso é, no dizer do PM, uma condição essencial
para assegurar uma paz justa e duradoura na Ucrânia, mas que implica, no caso
concreto, que haja reformas na UE, “para que este alargamento seja um caso de
sucesso como têm sido todos os outros”.
O chefe do executivo lembrou que Portugal aderiu à UE
há relativamente pouco tempo, em 1986, e salientou a “extraordinária revolução”
que o país teve desde esse ano. “E é aquilo que temos que garantir que todos os
novos Estados-membros, seja a Ucrânia, sejam os países dos Balcãs Ocidentais,
possam fazer também esse percurso e para isso é necessário que a União se
prepare para isso”, frisou.
***
Não vale a pena estar com rodeios. O PR disparou em
várias direções. Atingiu o governo, como é óbvio, mas também as oposições,
quase parecendo não acreditar que uma alternativa a este governo seja melhor ou
mesmo igual. Não vale a pena os partidos à direita regozijarem-se com os
recados ao PM ou (alguns) demarcarem-se de populismos e arruaças, como é vão o
discurso à esquerda, no sentido de que o PR deveria ter ido mais longe nas
críticas ao governo (não é por falar mais vezes e mais alto que este muda) ou no
de que dá indicações, mas sem dizer como se aplicam (o PR não tem funções
executivas stricto sensu).
Carlos Moedas surge como o pacificador, mais do que
Marcelo, e cooperante para a instauração de um Estado social local. Uma ótima
ideia, desde que o governo e todas as autarquias a assumam. Será convincente
esta disponibilidade do autarca lisboeta, que revela sentido de Estado?
O PM, parecendo obnubilar o lado doméstico das
advertências do PR, apontou para as instâncias internacionais. Tem alguma razão,
pois as advertências presidenciais assumem uma índole universal. Resta saber se
a Europa e as demais instâncias internacionais ouvirão nosso PR.
Contudo, Portugal tem de fazer tudo o que está ao seu
alcance, a todos os níveis.
2023.10.05 – Louro de Carvalho
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