O governo entregou, para debate na Assembleia da
República (AR), a proposta de Lei do Orçamento para 2024 (OE2024). O debate
ainda não começou (o debate na generalidade desemboca na aprovação na
generalidade, que lança o debate e a aprovação na especialidade, a que se
seguirá a votação global final, a redação da lei, a promulgação, a referenda
ministerial e a publicação), mas as fugas de informação e as declarações de
alguns membros do executivo já mostram o rumo que o documento vai seguir.
Não sei dizer se é um fenómeno de antropagogia
que está em curso ou se é um módulo de propaganda política governamental. Em
todo o caso, o júbilo silencioso de alguns e as críticas de tantos, mercê das
alegadas insuficiências, obsessões e teimosias dos atuais governantes (aliás,
como dos anteriores) estão no terreno a animar as hostes.
Um dos pontos que marcam a agenda orçamental é o
que afeta os cidadãos mais débeis do ponto de vista reivindicativo, que são os
pensionistas de reforma ou de aposentação – isto sem falar dos muitos que vivem
abaixo do limiar da pobreza.
Dizem que o aumento das pensões não resulta de
decisão do governo, mas do cumprimento da lei, cuja fórmula este governo queria
alterar. Contudo, seria absurdo que a Lei do Orçamento, de abrangência anual,
não contemplasse, explicitamente, tão relevante matéria em termos sociais.
Assim, a novidade, já esperada, é que as pensões
mais baixas sobem 6,2%, as intermédias aumentam 5,8% e mais altas crescem 5,2%.
No total, em causa estão 2,7 milhões de pensionistas, segundo a ministra do
Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que o revelou, a 11 de outubro, em conferência de imprensa de apresentação do OE2024
para a Segurança Social (SS).
“Este Orçamento é também de compromisso com os pensionistas“,
sublinhou Ana Mendes Godinho, dando conta que, em 2024, haverá “aumentos históricos e sem cortes” das pensões.
Em maior detalhe, as reformas até 1.020 euros
terão uma subida de 6,2%. Em causa estão cerca de 2,5 milhões de
pensões, precisou o secretário de Estado da Segurança Social, Gabriel Bastos.
Já as superiores a 1.020 euros, mas inferiores a 3.061
euros, terão um aumento de 5,8%. Neste
escalão, estão cerca de um milhão de pensões, segundo o mesmo governante.
Por sua vez, as pensões acima de 3.061 euros (até ao valor
a partir do qual o aumento está bloqueado) crescerão 5,2%. Há menos de
100 mil pensões nesta situação, realçou Gabriel Bastos.
Assim, por exemplo, alguém que ganhe 500 euros de
reforma conta com um aumento mensal de 31 euros. São mais 434 euros ao
fim de um ano do que hoje, anotou a ministra. Já para quem ganha uma pensão de mil euros, o aumento mensal será de 62 euros, ou seja, a subida anual será de 868 euros,
observou a mesma governante.
Estes aumentos resultam da fórmula prevista na lei, que tem por base a
evolução da economia nos últimos dois anos e a trajetória dos preços. Contudo, essa
fórmula utiliza os dados disponíveis em novembro de cada ano, pelo que os aumentos sinalizados são “ainda provisórios”. Ainda
assim, é possível já adiantar que, à boleia da inflação e do crescimento
económico, os aumentos das pensões terão um impacto de 2,2 mil milhões de euros, adiantou Ana Mendes Godinho.
Em 2023, face aos níveis históricos de inflação, o governo decidiu não
aplicar, num primeiro momento, a fórmula na íntegra, mas avançou com aumentos
intercalares, no verão.
Já este ano, com a inflação ainda em níveis elevados, o Executivo promete
aplicar os aumentos de forma plena. Questionada sobre o que mudou, Ana Mendes
Godinho assegurou que o governo tem o compromisso de dar passos
responsáveis que não levem, depois, a cortes. E num ano em que até
se espera um reforço da almofada das pensões, nomeadamente por efeito do
crescimento dos salários, o Executivo sente-se em
condições de cumprir a fórmula. Ao mesmo tempo, está em curso o trabalho
de uma comissão que avalia a sustentabilidade da SS, cujas conclusões poderão levar à revisão da fórmula. Todavia,
aos jornalistas, a ministra frisou que, para já, a prioridade é manter a confiança no sistema, não relevando se 2024
será ou não o último ano de aplicação dessa fórmula nos moldes atuais.
Quanto à referida almofada, é de relevar que o Fundo
de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) será reforçado, no
próximo ano, com 2,63 mil milhões de euros, nesse ano, em transferências de
capital. É
o segundo valor mais elevado nos 34 anos de existência do fundo de reserva da
SS. Este reforço de capital acontece depois de, em 2022, o Estado ter injetado
um valor recorde superior a 3,1 mil milhões de euros, através de transferências
de capital e de alienações de imóveis, que superou a totalidade de
transferências realizadas nos três anos anteriores.
Significa
que, dos 18,1 mil milhões que o Estado transferiu
para o FEFSS, desde 1989 (quando foi constituído), 31% deste montante foi
angariado em 2022 e em 2023. “Já transferimos verbas muito significativas em
2022 e vamos voltar a fazer em 2023”, referiu Fernando
Medina na apresentação da proposta de Lei do OE2024, em conferência de
imprensa.
A
aposta no reforço deste fundo, que tem como responsabilidade garantir o
pagamento das pensões numa situação deficitária da SS, vai ao encontro das indicações
do ministro das Finanças após a entrega do documento ao presidente da AR, ao
classificar o OE2024 como um “orçamento com os olhos postos no futuro […] na
consciência que esta geração tem a responsabilidade de proteger
melhor as gerações que lhe seguem […] que tem a obrigação e a oportunidade de
proceder à criação dos instrumentos de reforço do FEFFS”.
***
Além das pensões, a proposta de OE2024, que foi entregue, a 10 de outubro,
pelo ministro das Finanças, Fernando Medina na AR, traz um reforço de várias outras prestações sociais, como o
abono de família e o complemento solidário para idosos (CSI). Daí que Ana
Mendes Godinho tenha realçado que este é um “orçamento marcado pela
prioridade no investimento social”, no atinente às famílias, às
crianças, aos mais velhos ou aos mais vulneráveis. “É o orçamento com o maior
aumento de sempre nos apoios às famílias.”
No total, vincou a governante, são 2,3 mil milhões de euros para as
famílias com filhos. “É mais do dobro do que era dedicado
tradicionalmente às famílias, por exemplo, em 2015.”
No respeitante ao abono de família, os
beneficiários até ao quarto escalão terão, a partir de janeiro, um aumento de 22 euros, que incorpora, de forma definitiva,
por um lado, o apoio mensal extraordinário de 15 euros que foi pago, ao longo
de 2023, às famílias e, por outro, o impacto do IVA zero. Só esta medida
custará aos cofres do Estado 320 milhões de euros.
Além disso, quanto à garantia para a infância, o complemento
ao abono para as famílias mais carenciadas, depois de ter arrancado nos 70
euros e de ter passado para 100 euros, em 2023, vai chegar, em 2024, aos 122 euros.
Outra medida pensada para as famílias é o alargamento da gratuitidade
das creches, o que deverá beneficiar 120 mil crianças e custar 100 milhões de euros.
Quanto aos mais velhos, o governo decidiu antecipar a convergência do CSI com o limiar da pobreza. Isso
significa que o valor de referência desta prestação passa para 550 euros
por mês, ou seja, mais 62,45 euros do que agora. Com esta subida do
valor de referência, o governo estima que serão abrangidas mais 20 mil
pessoas, totalizando 150 mil pessoas cobertas por esta prestação social. Este
reforço deverá ser pago já a partir de janeiro.
“Nenhum pensionista de baixos recursos ficará abaixo
do limiar da pobreza”, assegurou Ana
Mendes Godinho, referindo que esta medida terá um impacto orçamental de 55 milhões
de euros.
Importa ainda notar que o indexante que guia a evolução de diversas
prestações sociais, o Indexante dos Apoios Sociais (IAS), subirá para
510 euros (aumentará 30 euros), conforme adiantará o ministro das Finanças.
E a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social sublinhou que
tal tem impacto, por exemplo, no subsídio por parte, na prestação
social para a inclusão (PSI), no rendimento social de inserção (RSI) e nos
limites das prestações de desemprego.
Na referida conferência de imprensa, a ministra Ana Mendes Godinho
aproveitou para fazer um ponto da situação das contas da SS, indicando que,
pela primeira vez, o governo estima que o sistema terá receitas acima
de 40 mil milhões de euros. São mais 1.670 milhões de euros do que este
ano e mais 16.100 milhões de euros, face a 2015. Para tal evolução, contribui,
nomeadamente, a evolução do emprego e dos salários.
Por exemplo, o número de trabalhadores declarados à SS está hoje acima do
registado em 2022, em 190 mil indivíduos. As contribuições estão a subir
13%. E, só de janeiro a julho, já foi possível ultrapassar o valor
total de salários declarados em todo o ano de 2022.
Também do lado da despesa há um aumento: em 2024, deverá subir 1.940
milhões de euros, face a este ano, totalizando 35 mil milhões de
euros.
Por outro lado, Ana Mendes Godinho assinalou que, quando o governo iniciou
funções, em 2015, havia a previsão de que a almofada das pensões,
o FEFSS, se esgotaria em 2029. “Ganhamos, entretanto, mais 40 anos no nosso
cofre das pensões. Temos as pensões garantidas para lá de 2070”,
disse, anunciando que, em 2025, pela primeira vez, estarão
garantidos dois anos de pensões. “Era um dos objetivos de sempre do
FEFSS. Isto resulta claramente da evolução do emprego, dos salários e da
diversificação das fontes de financiamento.” É de notar que, com este novo
cenário, os primeiros saldos negativos do FEFSS foram adiados em 18 anos,
face ao previsto em 2015.
Já o secretário de Estado da Segurança Social, Gabriel Bastos precisou que,
só neste ano, foram transferidos 2,6 mil milhões de euros para o FEFSS, sendo dois mil milhões relativos a transferências de saldos e 600
milhões de euros relativos, por exemplo, à transferência do Adicional ao
Imposto Municipal sobre Imóveis (AIMI), de parte da receita do imposto sobre o rendimento
das pessoas coletivas (IRC) e da contribuição adicional sobre o setor bancário.
***
É óbvio que o aumento das pensões mais baixas devia, em crises como a
atual, superar o estabelecido na lei, porquanto, um aumento de 6,2%, para
pensões de 500 euros ou menos – ou até de 8% como esperava, a 5 de outubro,
Maria do Rosário Gama, presidente da Associação de Aposentados, Pensionistas e
Reformados (APRe!) – não tira ninguém da situação de pobreza.
Por outro lado, a APRe! está
contra a descida da Taxa Social Única (TSU), como querem as entidades
patronais, porque tal prejudicaria os atuais e os futuros pensionistas.
Além disso, as reivindicações da APRe! prendem-se
com a dedução específica no imposto sobre o
rendimento das pessoas singulares (IRS). Até 2011, foi de seis
mil euros. A partir de 2011, passou para 4.104 euros. Ora, como o IAS, que está
na base do cálculo da dedução específica, tem vindo a aumentar, entende-se
que é altura de a atualizar, para 14 vezes o IAS, ou seja, cerca de 6.700 euros. E outra das reivindicações tem que ver com o CSI, cujo
valor é inferior ao que deveria ser pago, porque não atinge o limiar da
pobreza. Foi aumentado no ano passado, mas devia voltar a ser mais reforçado,
para que todos os pensionistas ultrapassem o limiar da pobreza.
***
Não há dúvida de que o OE2024 constitui um
esforço do governo para aliviar o mal-estar dos cidadãos de menores recursos.
Porém, a insuficiência na atenção à classe média baixa deixa pairar o sabor do benefício
amargo, agravado pelo aumento dos impostos indiretos, que atingem a todos (por
exemplo, 0,02€ por cada saquinho para frutas e legumes). É a obsessão das
contas certas – bandeira da direita já capturada pelo governo dito de esquerda –
útil, mas não a qualquer preço!
2023.10.11 – Louro de Carvalho
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