A Provedoria de Justiça espanhola entregou, a 27 de outubro,
ao Congresso dos Deputados, o “Relatório sobre os abusos sexuais no âmbito da
Igreja Católica e o papel dos poderes públicos – uma resposta necessária”, no
qual se estima que 1,13% da população adulta em Espanha tenha sido vítima de
abuso no seio da Igreja Católica, quando era menor de idade, o que
corresponderá a cerca de 440 mil dos 38,9 milhões de adultos espanhóis.
Na
apresentação do estudo de 779 páginas, solicitado há um ano e meio pelo
Congresso (não pela Igreja), o provedor espanhol de Justiça, Ángel Gabilondo,
“evitou os números a todo o momento”, como assinala a revista “Vida Nueva”. Não
obstante, confirmou que o inquérito realizado a 8.013 pessoas revelou que 11,7%
afirmam ter sido vítimas de abuso sexual antes de terem completado 18 anos, e
que 1,13% dizem que os abusos ocorreram no contexto da Igreja. Há 0,6% que
indicam que os abusadores foram padres ou religiosos, número que – extrapolado
– corresponderá a mais de 200 mil pessoas e que é “semelhante ao encontrado em
estudos realizados noutros países”.
Gabilondo
informou também que a unidade de atendimento às vítimas, criada no âmbito deste
estudo, para recolher testemunhos, recebeu 487 denúncias de abusos, que
aconteceram desde 1940 até ao presente, tendo o pico ocorrido entre 1960 e
1970, coincidindo com “os anos da ditadura franquista”, e começando a decrescer
a partir dos anos 80.
Três em quatro vítimas relatam ter sido apalpadas, 22%
reportam masturbação passiva e 16% ativa. Foram reportados 115 casos de
violação.
O relatório, que foi disponibilizado online refere que a “resposta da
Igreja Católica, pelo menos a nível oficial, foi caraterizada, durante muito
tempo, pela negação ou minimização do problema” e que só “pouco a pouco”, à
medida que os casos foram sendo conhecidos e como “consequência das diretrizes
emanadas pela Santa Sé, os representantes da Igreja em Espanha foram tomando
medidas e posições mais firmes, ainda que mais orientadas para a prevenção do
que para a reparação”. “Algumas vítimas tiveram de enfrentar, não só a negação
e ocultação, como até pressões e reações dos seus representantes, nas quais
foram responsabilizadas pelos abusos sofridos”, pode ler-se no documento.
Defendendo que as vítimas “merecem ser escutadas, atendidas e
correspondidas”, o provedor espanhol de Justiça deixou várias recomendações à Igreja,
entre elas, a promoção de um “ato público de reconhecimento e de reparação
simbólica” e a abertura por parte das dioceses e institutos de vida consagrada
do “acesso à informação contida nos arquivos”. Além disso, preconiza a criação
de um “fundo estatal para o pagamento de compensações a favor das vítimas”,
O relatório conclui que é necessário “prestar a máxima
atenção tanto aos processos de seleção” dos membros do clero, bem “como à sua
formação, para deteção de abusos”.
Entretanto, a
Conferência Episcopal Espanhola (CEE) fez saber que já convocou uma assembleia
plenária extraordinária para 30 de outubro, com o objetivo de analisar o
relatório. Paralelamente, está a decorrer um estudo sobre os abusos na Igreja
encomendado pela própria CEE ao Escritório Cremades & Calvo Sotelo, o qual
pediu para “prorrogar o prazo de entrega dos trabalhos”, pedido esse que também
foi avaliado durante a assembleia extraordinária.
***
Foram mais de cinco horas de reunião, com apenas um terço dos bispos
presentes e os restantes via Zoom. No
final da Assembleia Plenária Extraordinária da Conferência Episcopal Espanhola,
convocada para a tarde de 30 de outubro, na sequência da apresentação do
relatório da Provedoria de Justiça sobre os abusos sexuais no âmbito da
Igreja, foi divulgado um comunicado que sustenta que a extrapolação feita dos
dados obtidos num inquérito – que indica ter havido 440 mil casos de abusos
desde 1940 – “surpreende”. Os números, asseguram os bispos, “não correspondem à
verdade, nem representam o conjunto de sacerdotes e religiosos que trabalham,
lealmente e com entrega da sua vida, ao serviço do Reino”.
O comunicado dos bispos espanhóis, citado pelo jornal “Religión
Digital”, refere que estes “valorizaram, de maneira especial, o testemunho
recolhido das vítimas, que permite colocá-las no centro. Consideraram-se também
valiosas as recomendações propostas neste relatório”.
Assinalando que “não ter em conta a magnitude do problema e a sua dimensão
largamente extraeclesial significa não enfrentar as causas do problema e
perpetuá-lo no tempo” e que, “além disso, centrar-se exclusivamente na
reparação das vítimas da Igreja, discriminaria a maioria das vítimas,
transformando-as em vítimas de segunda classe”, a CEE assegura que, “caso
se constitua um fundo de compensação para reparar as vítimas a partir das
autoridades públicas”, a Igreja contribuirá para o mesmo.
O principal “ponto de atrito” desta reunião, refere o Religión Digital, terá sido “o que fazer com a
auditoria [sobre os abusos na Igreja Católica espanhola] encomendada ao
escritório Cremades & Calvo Sotelo”, em fevereiro do ano passado, cujos
resultados já deveriam ter sido entregues, mas cuja entrega se encontra
atrasada. O escritório terá pedido uma prorrogação do prazo de entrega e os
bispos decidiram adiar a decisão para a assembleia de novembro.
Seja como for, “a Igreja quer contribuir para a erradicação do abuso sexual
na infância, não só na Igreja, mas em toda a sociedade, e coloca a sua triste
experiência ao serviço da mesma, num espírito de colaboração”, conclui o
comunicado da CEE.
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Além
do referido comunicado, o portal do Vaticano “Vatican News” menciona uma
conferência de imprensa da CEE, para discutir o relatório do Defensor cívico
sobre abusos sexuais na Igreja e expressar a sua tristeza pelos danos causados,
reafirmando o seu compromisso de erradicar esse flagelo na Igreja e na sociedade.
Ao mesmo tempo, o secretário da CEE pede que a sombra da suspeita não se
estenda a todos os sacerdotes: “A grande maioria trabalha fielmente a serviço
do povo de Deus.”
“Dor,
perdão e desejo de reparação”. Eis o sentimento expresso dos bispos espanhóis
que, na manhã de 31 de outubro, apresentaram aos jornalistas o trabalho
realizado na Assembleia plenária extraordinária realizada, a 30 de outubro,
para analisar o relatório do Defensor cívico, Ángel Gabilondo, sobre os abusos
sexuais na Igreja, publicado recentemente. Essa foi a quarta Assembleia
plenária extraordinária realizada pela CEE, que contou com a presença de um
total de 88 bispos, 31 bispos pessoalmente e 57 por vídeo.
O
cardeal presidente, Juan José Omella, juntamente com o secretário-geral, Dom
Francisco César García Magán, relataram os dois pontos-chave que analisaram: o
estudo e a avaliação do relatório apresentado pelo Defensor cívico e o estudo
do pedido da empresa Cremades & Calvo Sotelo para estender o prazo do
trabalho que está a ser realizado em nome da CEE.
Os bispos expressaram tristeza pelos
danos causados pelos abusos sexuais cometidos por alguns membros da Igreja e
reiteraram o seu pedido de perdão às vítimas. Reiteraram, igualmente, o desejo
de trabalharem juntos na reparação global e de aprofundar os caminhos para a
proteção e o apoio aos sobreviventes e a prevenção de abusos. No entanto, a CEE
disse-se surpresa com a extrapolação feita a partir de alguns dados obtidos num
estudo anexado ao relatório. “Não correspondem à verdade”, diz um comunicado
emitido pela CEE, “nem representam o grupo de sacerdotes e religiosos que trabalham
com lealdade e dedicação das suas vidas a serviço do Reino”. Vários jornalistas
presentes na conferência de imprensa insistiram no número de vítimas, mas o
presidente do episcopado explicou que não queria entrar na questão das cifras: “São
vítimas”, disse ele, essa é a única preocupação. Os bispos asseguram que
trabalharão para garantir a reparação e o apoio: “Existe a vontade de todos”.
A Conferência Episcopal assegura que
se junta ao pedido do Defensor cívico, instando o Estado a implementar as
recomendações contidas no relatório às várias instituições, para que elas
assumam as suas responsabilidades em pôr fim a este flagelo que afeta toda a
sociedade.
Juntamente com a responsabilidade da
Igreja na questão dos abusos, o estudo do Defensor apresenta uma visão geral do
problema também fora da Igreja: “o abuso sexual contra menores é um problema
social ao qual todas as instituições públicas e empresas privadas têm o dever
de responder”, diz o estudo. “Não levar em conta a extensão do problema e a sua
dimensão amplamente extraeclesial significa não enfrentar as causas do problema
e perpetuá-lo ao longo do tempo”, afirmam os prelados espanhóis. “Um único caso
de abuso já é intolerável”, reiteram, expressando o compromisso de erradicar os
abusos sexuais contra menores na Igreja e na sociedade.
Durante a conferência de imprensa, o
secretário da CEE, Dom Francisco César García Magán, quis enfatizar que “é
injusto e falso estender uma sombra de escuridão e suspeita sobre todos os sacerdotes
e pessoas consagradas”. “A grande maioria de nossos sacerdotes e religiosos”,
disse, “trabalha fiel e desinteressadamente, servindo ao povo de Deus, tanto
nas paróquias como nas comunidades, e naquelas áreas da Espanha esvaziada e
rural, prestando serviço espiritual e de acompanhamento, porque estamos a falar
de solidão e de uma população idosa. Aí temos muitos padres que trabalham com
horários heroicos.”
***
É de salientar, além da surpresa dos
bispos, a sua determinação em se juntarem à postura da Provedoria de Justiça, a
manutenção do estudo por eles requisitado e, sobretudo, apesar de criticarem a extrapolação
(que se entende necessária como estratégia metodológica), afirmarem
categoricamente a necessidade da extinguir o flagelo na Igreja e na sociedade,
incluindo a contribuição pecuniária para o sugerido fundo estatal.
Também é de enaltecer a tentativa de equanimidade
da Provedoria de Justiça ao salientar as respostas que a Igreja, no meio da sua
grande heterogeneidade, tem vindo a dar ao problema. Com efeito, o relatório
especifica, no quadro das respostas da Igreja, o marco jurídico e
institucional; atuações específicas da Igreja em Espanha, ante as denúncias de
abuso sexual, e a atenção às vítimas; e respostas da Igreja ao defensor do
povo.
Por outro lado, o relatório fala dos
abusos noutras confissões religiosas e das obrigações também dos Estados, quer
na prevenção, no combate e na reparação, a nível pecuniário, mas sobretudo
psicológico.
Por fim, é de inteira justiça não
tomar a árvore pela floresta e lançar o labéu sobre todos os agentes ativos da
Igreja Católica.
2023.10.31 – Louro de Carvalho
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