A Bíblia serve-se de várias imagens para caraterizar o Povo
de Deus, nos novos tempos, a Igreja, tais como o rebanho, a assembleia
convocada, a esposa, o campo e a vinha.
A liturgia do 27.º domingo do Tempo Comum no Ano A, releva a imagem
da vinha de Deus, para falar do Povo que, tendo aceitado o desafio do amor de
Deus e prometido colocar-se ao serviço de Deus – serviço que exige a produção
abundante de frutos de amor, de paz, de justiça, de bondade e de misericórdia,
sob a imagem das uvas – tem só produzido agraços e maltratado todos os que vêm
em nome do Senhor, designadamente os profetas e o próprio Filho de Deus.
***
Na primeira leitura (Is
5,1-7), Isaías dá conta do amor e da solicitude de Deus pela sua vinha, que não
pode ter como contrapartida frutos de egoísmo e de injustiça. O Povo do Senhor
tem de deixar-se transformar pelo amor sempre fiel de Deus e produzir os frutos
que Deus aprecia – a justiça, o direito, o respeito pelos mandamentos, a
fidelidade à Aliança.
O profeta não fala de realidades abstratas e intangíveis. A
sua pregação refere-se a acontecimentos concretos e toca a realidade da vida,
com as inquietações e com as esperanças dos homens. Para perceber a sua
mensagem, convém situá-la na época e na realidade histórica que o profeta
conhece e sobre a qual é chamado por Deus a pronunciar-se.
A primeira fase do seu ministério desenrola-se no reinado de
Jotam (740-734 a.C.), época de relativa tranquilidade política, em que Judá se
mantém afastado das jogadas políticas das superpotências de então. Tudo parece
correr em clima de paz. Todavia, o olhar crítico do profeta deteta uma realidade
diferente. A sociedade de Judá está eivada de grandes injustiças e
arbitrariedades: os poderosos exploram os mais débeis, os juízes deixam-se
corromper, os latifundiários deixam-se dominar pela cobiça e montam esquemas
legais para se apropriarem dos bens dos pobres, os governantes oprimem os súbditos,
as damas finas de Jerusalém vivem no luxo e na futilidade, no desrespeito pelas
carências dos mais pobres. O culto floresce na abundância inédita de práticas
de piedade e de solenes manifestações religiosas; e todo o fausto cultual é
incoerente e mentiroso, pois não resulta da adesão a Javé, mas da tentativa de
acalmar as consciências e de “comprar” Deus.
Segundo o profeta, Jerusalém deixou de ser a esposa fiel,
para se converter numa prostituta. Dito de outro modo, a vinha cuidada por Deus
só produz frutos amargos e não os bons (justiça e amor) pedidos a quem vive
envolvido no ambiente da Aliança.
O “cântico da vinha”, um dos textos mais emblemáticos do
período em referência, terá sido, inicialmente, um “cântico de vindima” ou um
“cântico de trabalho”, que um poeta popular entoa para o seu círculo de amigos
ou de companheiros de trabalho. Mas, como sucede com as formas de expressão da
cultura popular, as palavras passam a evocar outra realidade.
Na cultura judaica, a vinha é um símbolo do amor. E o
“cântico da vinha” passa então a ser uma “cantiga de amor”, que descreve os
esforços do jovem apaixonado para conquistar a amada.
Por isso, Isaías recorre a esta “cantiga de amor” para
transmitir a mensagem que Deus lhe confiou.
A canção que o profeta-poeta canta é bela e o tema é
sugestivo. Tirando partido das sonoridades e do ritmo, o poeta põe em
alternância os sons doces da canção de amor com os sons ásperos da canção de
trabalho. Os interlocutores do amado, atentos e fascinados, escutam com prazer
a descrição das patéticas tentativas do poeta para conquistar a amada. Ouvem-no
falar dos trabalhos para construir a vinha, dos cuidados com ela, das ilusões,
dos sonhos; sorriem ante as alusões ao lagar (onde será feito o vinho do amor)
e à torre (donde o amado vigiará, para que ninguém entre na sua vinha e colha
os frutos do seu amor). Aprovam quando espera os frutos saborosos do amor que
cultivou. Revoltam-se quando a vinha só lhe ofereceu frutos azedos. Simpatizam
com o poeta, identificam-se com ele, partilham a sua desilusão.
De súbito, o poeta transforma o cântico em queixa e reclama
justiça. Interpela os interlocutores e exige-lhes um veredicto. Todos concordam
que o profeta-poeta tem razão e que tem todo o direito em tirar a vedação que
protegia a vinha, em não voltar a cuidar dela, em dar ordens às nuvens para que
não a fecundem com a chuva. Porém, quando o auditório, que ele tem na mão, já
pronunciou mentalmente o veredicto favorável, o profeta-cantor lança-lhe na
cara a acusação que vinha a preparar, nos moldes da pedagogia socrática: “A vinha
do Senhor do universo é a casa de Israel e os homens de Judá são a plantação
escolhida. Ele esperava retidão e só há sangue derramado; esperava justiça e só
há gritos de horror.” São eles, os recetores da canção, os elementos
constitutivos da vinha má, e não outros. Apontar os erros presumivelmente de
outrem é fácil; o pior é quando nos fazem ver que os erros criticados são
nossos.
A imagem da vinha aplicada ao Povo de Deus encontra-se
frequentemente na Bíblia. Os profetas e catequistas de Israel viram nessa
imagem um símbolo privilegiado para expressar a História de amor que Deus quis
escrever com o seu Povo, isto é, a Aliança. Neste apólogo, Deus é o vinhateiro
e Israel é a vinha. Foi Deus quem trouxe de longe (do Egito) estas cepas
escolhidas e as plantou em terra fértil (Canaã); foi Ele que removeu dessa
terra as pedras (os outros povos que aí habitavam) que podiam estorvar a
fecundidade da vinha, que cuidou e que amou a sua vinha.
Por conseguinte, Deus esperava que Israel praticasse o
direito e a justiça (“mishpat” e “zedaqa”) satisfazendo, fielmente, a Aliança;
esperava a vida em coerência com os mandamentos; esperava que Israel respeitasse
os direitos dos mais débeis. Todavia, o Povo atua em sentido contrário ao que
Deus pretendia: os poderosos cometem injustiças e arbitrariedades, os juízes
são corruptos e não fazem justiça ao pobre, os grandes praticam violências e
derramam o sangue do inocente, os órfãos e as viúvas veem espezinhados os seus
direitos, sem que ninguém os defenda.
Ora, porque Deus não pode pactuar com este esquema, prepara-Se
para abandonar a vinha. Assim, a lição fundamental é: o amor de Deus pretende
criar no coração do Povo uma dinâmica que leve ao amor ao irmão. Deus ama-nos,
para que nos deixemos transformar pelo amor.
***
No Evangelho (Mt
21,33-43), Jesus, retomando a imagem da vinha, critica duramente os líderes
judaicos que se apropriaram em benefício próprio da vinha de Deus e que
recusaram oferecer a Deus os frutos que Lhe são devidos. Jesus anuncia que a
vinha lhes será tirada e que será confiada a trabalhadores que produzam e que
entreguem a Deus os frutos que Ele espera.
O texto em apreço insere-se num bloco de três parábolas (cf Mt 21,28-32. 33-43; 22,1-14), que
ilustram a recusa de Israel em aceitar o desígnio de salvação que Deus oferece
aos homens através de Jesus. Jesus convida os opositores – os líderes
religiosos judaicos – a reconhecerem que se fecharam num mecanismo de autossuficiência,
de arrogância e de preconceito, que não lhes deixa abrir o coração e a vida aos
desafios de Deus. Esta é a segunda dessas três parábolas.
No tempo de Jesus, a terra estava, quase sempre, nas mãos de
grandes latifundiários que viviam nas cidades e que utilizavam vários sistemas
para a exploração das suas terras. Uma das formas preferidas (porque, para o
latifundiário, não implicava grande trabalho) consistia em arrendar as várias
parcelas do latifúndio, em troca de parte substancial dos produtos colhidos. Os
rendeiros eram, geralmente, camponeses que, tendo perdido as suas terras,
devido à pressão fiscal ou às más colheitas, viviam em situação periclitante:
descontados os custos da exploração, os impostos pagos e a parte que pertencia
ao latifundiário, mal ficavam com o indispensável para se sustentarem a si e à
família. Em anos agrícolas maus, o esquema significava a miséria absoluta.
Este quadro provocava conflitos sociais e o aparecimento de
movimentos campesinos que lutavam contra os latifundiários ou contra a carga
excessiva de impostos.
A parábola contada por Jesus coloca-nos no ponto de partida
da parábola da “vinha” de Is 5,1-7: um senhor plantou uma vinha, cercou-a com
uma sebe, cavou nela um lagar e levantou uma torre.
Contudo, a parábola de Jesus afasta-se do apólogo de Isaías.
Na versão de Jesus, o proprietário não explorou diretamente a vinha, mas
confiou-a a uns vinhateiros que deviam dar-lhe, a cada ano, determinada
percentagem dos frutos produzidos. Porém, quando os servos do senhor vinham
recolher a parte que pertencia ao amo, eram maltratados e assassinados pelos
vinhateiros; e, quando o dono da vinha enviou próprio filho a chamar os
vinhateiros à responsabilidade e ao respeito pelos compromissos, foi
assassinado.
A vinha de que Jesus fala é Israel, o Povo de Deus. O dono da
vinha é Deus. Os vinhateiros são os líderes religiosos, encarregados de
trabalhar a vinha e de fazer com que ela produzisse frutos. Os servos enviados
pelo senhor são os profetas que os líderes da nação perseguiram, apedrejaram e
mataram. O filho morto fora da vinha é Jesus, assassinado fora dos muros de
Jerusalém.
É um quadro de muito grave. Os vinhateiros não só não entregaram ao senhor os
frutos devidos, como, recusando toda a possibilidade de encontro e de
entendimento com o senhor, maltrataram e apedrejaram os servos que ele enviou e
assassinaram-lhe o filho.
Diante deste quadro, Jesus interpela diretamente os ouvintes:
“Quando vier o dono da vinha, que fará àqueles vinhateiros?” A comunidade
cristã primitiva encontrou a resposta para a questão. Na perspetiva dos
primeiros catequistas cristãos, a resposta de Deus à recusa de Israel foi dada
em dois movimentos: Deus ressuscitou o filho que os vinhateiros mataram,
glorificou-O e constituiu-O a pedra angular da nova construção; e decidiu retirar
a vinha das mãos dos vinhateiros ingratos e confiá-la a outros vinhateiros, um
povo que fizesse a vinha produzir bons frutos e que entregasse ao senhor os
frutos a que ele tem direito.
Entretanto, a Mateus não interessa tanto a questão do filho posto
como pedra angular da nova construção como a da entrega da vinha a um outro
povo. Ao sublinhar este aspeto, Mateus visa uma dupla finalidade.
Antes de mais, esclarece porque é que, na maioria das
comunidades cristãs, os judeus – os primeiros trabalhadores da vinha de Deus –
estavam em minoria: recusaram-se a oferecer frutos bons ao senhor da vinha e
recusaram sempre as tentativas do Senhor no sentido de uma aproximação e de um
compromisso. Por isso, o Senhor elegeu outros vinhateiros. O que é decisivo,
para a escolha de Deus, não é que os novos trabalhadores da vinha sejam judeus
ou não judeus; o que é decisivo é que estejam dispostos a oferecer ao Senhor os
frutos que devidos e a acolher o Filho que o Senhor enviou ao seu encontro.
Depois, Mateus exorta a comunidade a produzir frutos
verdadeiros que agradem ao Senhor da vinha. Estamos no final do século I;
passou o entusiasmo inicial e os crentes da comunidade de Mateus instalaram-se
num cristianismo fácil, descomprometido, instalado. O catequista Mateus
aproveita o ensejo para exortar os irmãos a despertarem e a saírem do
comodismo, a empenharem-se, a darem frutos próprios do Reino, a viverem com
radicalidade a via de Jesus.
***
Na segunda leitura (Fl
4,6-9), Paulo exorta os cristãos da cidade grega de Filipos – e todos os que fazem
parte da vinha de Deus – a viverem na alegria e na serenidade, respeitando o
que é verdadeiro, nobre, justo e digno, ou seja, os frutos que Deus espera da
sua vinha.
Os primeiros dois versículos do trecho em apreço integram uma
passagem mais longa, em que o apóstolo recomenda aos cristãos que vivam na
alegria. Esta alegria, que nada tem a ver com gargalhadas ou com otimismos
inconscientes, é a alegria que resulta da vida de comunhão com o Senhor, com
tudo o que isso significa em garantia de vida verdadeira e eterna. O cristão
vive na alegria, pois a comunhão com Cristo garante-lhe o acesso próximo (“o
Senhor está próximo”) à vida definitiva. Daí resulta a serenidade e a paz, que
permitem ao crente enfrentar a vida e sentir-se seguro nos braços de Deus Pai.
Ao crente resta cultivar a comunhão com Deus, entregando-Lhe, diariamente, a
sua vida “com orações, súplicas e ações de graças”.
Depois, Paulo recomenda aos filipenses seis qualidades que devem
cultivar e apreciar: verdade, nobreza, justiça, pureza, amabilidade e boa
reputação. Tudo isto é virtude, é digno de louvor. É esta a magna carta do
humanismo. Estes valores, não exclusivos do cristianismo, são valores sãos e
louváveis, igualmente propostos pelos moralistas gregos da época. No entanto, a
comunidade cristã deve estar aberta ao acolhimento de todos os valores humanos.
Os cristãos devem ser, antes de mais, arautos e testemunhas dos verdadeiros valores
humanos.
E Paulo recomenda, a seu exemplo, viver esses valores em
confronto fiel com o Evangelho.
2023.10.08
– Louro de Carvalho
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