O Programa Alimentar Mundial (PAM) da Organização das Nações
Unidas (ONU), na avaliação da segurança alimentar, revela que 90% das famílias que
regressam ao Sudão do Sul (perto de 300 mil pessoas, nos último cinco anos) estão
em insegurança alimentar moderada ou grave e que os dados de rastreio recolhidos
na fronteira revelam que cerca de 20% das crianças com menos de cinco anos e
mais de um quarto das mulheres grávidas e lactantes estão subnutridas.
A
maioria dos que fugiram dos combates e atravessaram a fronteira do vizinho
Sudão com o Sudão do Sul são sul-sudaneses que “estão a regressar a um país que
já enfrenta necessidades humanitárias sem precedentes”. “Estamos a ver famílias
a trocar um desastre por outro, a fugir do perigo no Sudão, para se verem a
braços com o desespero no Sudão do Sul”, afirma Mary-Ellen McGroarty, diretora
do PAM no Sudão do Sul, advertindo que o PAM não dispõe de “recursos para
prestar assistência vital aos que mais precisam”.
Em
todo o Sudão do Sul, o PAM tem um défice de financiamento de 536 milhões de
dólares, para os próximos seis meses, e só conseguiu chegar a 40% das pessoas
em situação de insegurança alimentar com assistência alimentar até 2023.
Os sul-sudaneses “atravessam
a fronteira apenas com a roupa do corpo” e alguns são vítimas de roubo e de violência
na viagem, segundo o PAM, que teme epidemias na estação das chuvas.
Depois de se ter
tornado independente do Sudão, em 2011, o Sudão do Sul mergulhou na guerra
civil que fez quase 400.000 mortos e milhões de deslocados, entre 2013 e 2018.
O acordo de paz, assinado em 2018, previa o princípio da partilha do poder
entre os rivais Salva Kiir e Riek Machar no âmbito de um governo de unidade
nacional. Porém, as tensões e a violência continuam a assolar o país mais jovem
do Mundo, rico em petróleo, mas onde a grande maioria da população vive abaixo
do limiar da pobreza.
Já no
Sudão, a guerra iniciada, a 15 de abril, entre o exército, liderado pelo general
Abdel Fattah al-Burhan, chefe do Conselho Soberano de Transição, e as Forças de
Apoio Rápido (FAR – na sigla inglesa, RSF) de Mohamed Hamdan Daglo, seu antigo
adjunto, no organismo que assegura o poder desde o golpe de Estado de 2019, já fez
cerca de 7500 mortos, segundo a Armed Conflict Location & Event Data
Project, e desalojou mais de cinco milhões de pessoas – 2,8 milhões das quais
fugiram da capital Cartum, palco de incessantes ataques aéreos, de fogo de
artilharia e de combates de rua.
***
Cartum, que não conhecia a guerra desde a sua
conquista por Mohamed Ahmed Al Mahdi, em 1885, tornou-se o principal teatro de
guerra entre as RSF e as Forças Aéreas do Sudão.
No final de março passado, havia algum otimismo na capital, parecendo que
os envolvidos nas negociações que deveriam reorientar o processo de transição
democrática estavam amadurecidos. Com efeito, tinha sido anunciado que o dia 1
de abril era a data para a assinatura do acordo que reorientaria o processo; o
6 de abril, para a assinatura do texto constitucional transitório; e o 11 de abril,
para a apresentação do governo civil de transição.
Nas ruas, afirmava-se que os líderes do movimento islamita se tinham
reunido com a cúpula do exército para bloquear o processo e que se poderia esperar
um golpe de Estado. Ao mesmo tempo, os media locais noticiavam a
deslocação de 60 mil soldados das RSF, para o seu acampamento militar em Soba,
o seu posicionamento ao redor da base das Forças Aéreas do Sudão (FAS – SAF, na
sigla inglesa), em Méroe, a 436 km a norte da capital, e outra concentração de
tropas em El Fasher, a capital do Estado do Darfur do Norte.
Os meios de comunicação começaram a noticiar discrepâncias entre as SAF e
as RSF, no atinente ao processo de integração das segundas nas primeiras, para
formar um exército único. As SAF defendiam que o processo deveria culminar numa
liderança única para as forças armadas, corporizada por Abdel Fatah Al-Burhan, atual
chefe do exército, ao passo que as RSF queriam um civil como autoridade última
e comando supremo das forças armadas.
As RSF veiculavam, havia meses, a narrativa de que o exército regular (SAF)
representava o regresso ao regime islâmico, opunham-se à transição e
perfilavam-se como garantia de êxito do processo democrático. Embora a sua
posição não pareça muito credível, pois Hameidti, líder das RSF, apoiou Burhan,
líder das SAF, no autogolpe de Estado de outubro de 2021, que suprimiu a figura
do primeiro-ministro e bloqueou o acesso à presidência do Conselho Soberano de
Transição da componente civil. E foi este discurso que lhes pareceu justificar
um golpe de Estado para depor Abdel Fatah Al-Burhan, pois, como refere o
jornalista Osman Mirghani, as RSF e alguns civis da plataforma do Comité
Central para a Mudança e a Liberdade tinham até preparada a lista de ministros
para o novo governo.
As RSF eram milícias conhecidas como “janjawid” que operaram no Darfur, ao
serviço de Omar Al-Bashir, presidente do Sudão, entre 1989 e 2019, em operações
de limpeza étnica contra as tribos negras da região – acusação que levou o
Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, a condenar o presidente deposto,
que dotara as RSF de entidade jurídica como parte integrante do exército, para
operações ordinárias e para alguns serviços secretos de operações
extraordinárias, com competência especial para o controlo de fronteiras.
Quando o exército depôs Omar Al-Bashir, devido à pressão popular (Revolução
de 2019), as RSF traíram o seu mentor e envolveram-se no novo governo de
transição. O seu líder, Mohamed Hamdan Dagalo “Hameidti”, foi nomeado
vice-presidente do Conselho Militar de Transição (Presidência da República),
que lideraria o processo. Então, as RSF tinham só 20 mil soldados, mas controlavam
minas de ouro no Darfur e no Kordofan Ocidental.
O governo civil liderado pelo primeiro-ministro Abdallah Hamdok, que surgiu
como resultado do início do processo de transição, em agosto de 2019, iniciou a
reforma dos serviços secretos, que tinham sido responsáveis por torturas e
crimes inconcebíveis no novo Sudão a construir. Porém, era preciso redefinir o
seu papel e limitá-lo ao fornecimento de informações ao governo.
O general Abdel-Fatah al-Burhan confiou às RSF o desmantelamento dos antigos
serviços secretos. E as RSF aproveitaram o ensejo para ocupar os apartamentos,
edifícios e infraestruturas onde funcionavam os serviços secretos e incorporaram
alguns dos membros na sua estrutura.
O líder das RSF, Hameidti, foi responsável pelas negociações com diferentes
partes no conflito do Sudão e representou o país em visitas internacionais,
incluindo uma visita a Putin, em Moscovo, a 9 de fevereiro de 2022, com um
avião cheio de barras de ouro, como relatou o New York Times. A
sua dimensão internacional, não limitada à região de Darfur, o seu poder e a
sua ambição eram cada vez mais evidentes. A exploração de minas de ouro sob o seu
controlo e outras atividades das empresas registadas em nome de outros membros
da família e a permissividade do general Burhan permitiram-lhe aumentar o seu
ordenado e o tamanho do seu exército, que chegaria aos 100 mil soldados.
O general Burhan foi responsável pelo treino militar dos soldados de
Hameidti no Darfur, no início do século. Juntos, enviaram tropas para o Iémen,
para combater os Hutis em nome dos governos financiadores da Arábia Saudita e
dos Emirados Árabes Unidos (EAU), estando sedeadas, neste último país, as
contas bancárias das empresas de Hameidti e dos familiares, e orquestraram o autogolpe
de outubro de 2021 que expulsou os civis do governo de transição, quando se
preparava a entrega de Omar Al-Bashir ao TPI. Nenhum dos dois estava
interessado em que o ditador deposto falasse, nem podia aceitar, tranquilamente,
que um governo civil pusesse em risco a sua impunidade e os grandes interesses
económicos que o exército e a família de Hameidti administram. E é verdade que
a componente civil, inicialmente unificada contra a ditadura, se dividiu em
dezenas de elementos opostos onde o interesse pelo bem comum se perdia sob um
véu de interesses particulares e de pontos de vista opostos.
Apesar de tudo, Hameidti, afirmando publicamente, nos últimos meses, que o autogolpe
fora um erro, distanciava-se do companheiro de batalha e falava abertamente em
prol da componente civil do processo de negociações.
A assinatura do acordo de referência não ocorreu. O conflito armado eclodiu
em dois cenários: em Soba, ao sul de Cartum, e na base militar de Méroe, local
estratégico para o exército sudanês, porque de lá poderiam partir os caças para
desequilibrar os combates. As RSF não possuem força aérea. Em poucas horas, os
soldados de Hameidti ocuparam o palácio presidencial, os aeroportos
internacionais de Cartum e de Méroe e a sede da televisão nacional e cercaram o
quartel-general do exército, onde Burhan resistia ao comando das SAF e quase
foi capturado e morto. O exército sudanês foi apanhado em falso. E os soldados
das RSF, embora não tivessem passado por uma academia militar, eram mais
experientes no combate corpo a corpo, devido às recentes experiências na zona
Este da Líbia, ao lado do exército de Khalifa Haftar, no Darfur e no Iémen,
contra os Hutis, sempre com o financiamento dos EAU.
A capital do Sudão tornou-se, pois, o principal teatro de guerra entre as
RSF e as SAF. Durante a revolução, o povo sudanês saiu às ruas e arriscou a
vida para exigir um governo civil. Ficou muito entusiasmado quando Abdallah
Hamdok iniciou o seu percurso como primeiro-ministro do novo governo de
transição. Porém os comités de resistência de bairro continuaram a sair às ruas,
a exigir justiça pelos crimes perpetrados pelas SAF e pelas RSF contra os
manifestantes na revolução popular de 2019. E, quando, em outubro de 2021,
Burhan e Hameidti assumiram o controlo do país, os comités continuaram a
protestar, exigindo que ambos renunciassem e abrissem caminho a um governo
completamente civil. O seu ponto fraco terá sido a falta de proposta
alternativa bem articulada, mas o tempo demonstrou que a sua desconfiança em
relação aos dois grupos estava muito bem fundamentada.
Após testemunharem de perto como, em poucos dias, as RSF destruíram
estações de abastecimento de água e eletricidade, saquearam casas,
universidades, ministérios, escolas, bancos, lojas, violaram centenas de
mulheres, raptaram e não hesitaram em liquidar os cidadãos que se lhes
opusessem, e mesmo odiando os militares, os jovens dos comités optaram por
estes últimos, em vez de pensarem num país governado pelos primeiros. E a
guerra do Sudão, oculta por cúmplice véu de silêncio, espalhou-se por várias
regiões do país, causou mais de seis milhões de deslocados e destrói infraestruturas,
vidas, sonhos e projetos.
***
Entretanto, a Amnistia Internacional (AI), já a 3 de agosto,
no relatório “A Morte
Chegou à Nossa Casa: Crimes de Guerra e Sofrimento dos Civis no Sudão”, denunciou “crimes de guerra generalizados”
no Sudão, desde o início dos combates entre as RSF e as SAF.
O relatório documenta a morte de civis em ataques
deliberados e indiscriminados, assim como casos de violência sexual contra
raparigas de apenas 12 anos, ataques a hospitais e igrejas e pilhagens
generalizadas. Algumas das violações dos direitos humanos ali documentados,
como os ataques a civis, constituem crimes de guerra, sustenta Agnès Callamard,
secretária-geral da prestigiada organização não-governamental de defesa e promoção
dos direitos humanos, vincando que “os civis, em todo o Sudão, sofrem um horror
inimaginável a cada dia que passa”, enquanto as duas forças militares “competem
imprudentemente pelo controlo do território”.
A espiral de violência no Darfur lembra “a campanha de
terra queimada das décadas anteriores, por vezes envolvendo os mesmos atores”,
diz o relatório. E a tática da terra queimada consiste em destruir tudo o que
for útil ao inimigo, no avanço ou na retirada.
***
Há quem diga que o número de mortos, feridos e deslocados
será maior do que na Ucrânia. O certo é que a Ucrânia e o Sudão são os grandes desafios
para a ONU, em 2024.
2023.10.06 – Louro de Carvalho
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