Referia,
a 29 de setembro, o Expresso que
Paulo Branco, ex-responsável financeiro da Direção-Geral de Recursos de Defesa
Nacional (DGRDN), um dos acusados pelos crimes de corrupção e de branqueamento
na operação “Tempestade Perfeita”, implicou o ministro João Gomes Cravinho na
assessoria-relâmpago inventada para pagar 50 mil euros a Marco Capitão
Ferreira, ex-secretário de Estado da Defesa Nacional, que saiu do governo no
início de julho, por ter sido constituído arguido por corrupção e participação
económica em negócio. Segundo o que depôs, o então ministro da Defesa Nacional
“tinha concordado” ou até “pedido” para se fazer contrato de assessoria com
Capitão Ferreira para o compensar e “pôr as contas em dia” pelos trabalhos feitos
numa “comissão fantasma” a funcionar na órbita do seu gabinete.
A 27 de julho, Branco declarou a Celestina Morgado,
procuradora do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, que Marco
Capitão Ferreira participou no “Grupo Ninja” ou “‘Black Ops’ (expressões
militares), elaborando, clandestinamente, um estudo para a “revisão do setor
empresarial do Estado da Defesa”. O grupo, que trabalhava na sombra, integrava
outros elementos, como Catarina Nunes, que veio a ser presidente da idD (holding
das indústrias de Defesa), e Irene Paredes, à data, funcionária da DGRDN. Era a
“comissioni fantasmi”, segundo a classificação usada num e-mail por Capitão
Ferreira.
A existência da equipa, sem nomeação formal e a trabalhar pro bono, foi confirmada pelo ministro
dos Negócios Estrangeiros (MNE) à notícia da “Visão”. Um comunicado de Gomes
Cravinho, de 28 de julho, esclarecia que o trabalho de aconselhamento e estudo
de Capitão Ferreira para a reestruturação das indústrias de Defesa “não foi
remunerado”. Mas o governante distinguiu o contributo gracioso do “contrato de
assessoria prestada” à DGRDN “que foi remunerado” e pelo qual Capitão Ferreira
recebeu 50 mil euros mais IVA, em cinco dias, para assessorar a renegociação,
dos contratos de manutenção dos helicópteros EH-101.
Segundo Paulo Branco, que ligou as duas coisas, o
contrato-relâmpago para assessorar a DGRDN na negociação dos EH-101 terá
servido para pagar os trabalhos gratuitos da “comissão fantasma”, com apoio do
ministro. Porém, em resposta ao Expresso,
o gabinete do MNE refere que são dois processos distintos e que “não houve
qualquer orientação” de Cravinho para o contrato de assessoria à DGRDN servir
de compensação pelos trabalhos feitos.
A participação gratuita no “Grupo Ninja” e, depois, a
assessoria à DGRDN coincidiram no tempo, entre fevereiro e março de 2019. Paulo
Branco recordou, no interrogatório, que um dia, não sabendo precisar datas, Capitão
Ferreira lhe entrou na sala, acompanhado por Alberto Coelho a dizer que vinha
de reunião com o ministro, onde fora convidado para presidir à comissão
liquidatária da Empordef, que daria origem, depois, à nova idD, e assumir a presidência
desta. Alberto Coelho era o diretor da DGRDN, agora acusado de corrupção e
branqueamento na “Tempestade Perfeita”. E Capitão Ferreira seria nomeado
presidente da comissão liquidatária da Empordef (à época, a holding estatal
para as indústrias de Defesa), semanas depois de receber os 61 mil euros da
DGRDN. E Paulo Branco, um dos cabecilhas da teia, foi escutado a combinar com
os outros acusados passar histórias a jornalistas, para apontar ao poder
político e controlar a narrativa mediática. Foi o que fez no interrogatório:
apontou ao ministro.
Nas declarações ao DIAP, Branco lembrou que foi Capitão
Ferreira, depois da reunião com o ministro e com Alberto Coelho, quem lho disse:
estaria disponível para ser nomeado para a Empordef, mas há muitos anos que
trabalhava na Defesa e que esses trabalhos teriam de ser recompensados. Foi
então que Branco mencionou a cumplicidade de Cravinho na assessoria fictícia:
“O ministro da Defesa tinha concordado em fazer-se o contrato de assessoria e
pagar-lhe 50 mil euros, em retorno desses trabalhos.” E disse que aquelas duas
personalidades lho revelaram para ele operacionalizar.
Tais declarações contrariam o que o ministro disse, em
audição parlamentar na Comissão de Defesa, a 21 de julho. Então, o MNE omitiu a
criação do “Grupo Ninja”, cuja existência negara ao “Observador” e garantiu só ter
sabido do contrato de Capitão Ferreira, quando foi noticiado. E assegurou que
“não houve, em nenhum momento, qualquer indicação” da sua parte “a esse
respeito, até porque não” lhe “competia interferir no funcionamento interno da
DGRDN”. A decisão de contratar “foi única e exclusivamente da DGRDN e do seu
diretor-geral, assim como os termos do contrato, seja a duração ou o valor”.
Na mesma audição, o MNE disse desconhecer o visado antes de
exercer funções – “era uma das raras pessoas com conhecimento aprofundado nesta
área muito especializada” – e recusou apontar culpas, remetendo a dissipação de
quaisquer dúvidas para o “lugar próprio”. E, a 29 de setembro, declarou, em
comunicado enviado às redações: “Repudio, de forma veemente e inequívoca, a
sugestão feita na manchete do jornal Expresso,
baseado aliás em informações pouco credíveis, como fica claro pela leitura do
respetivo artigo.”
***
A 2 de outubro, Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do Partido
Socialista (PS), assinalou que as acusações contra Gomes Cravinho partem de um
arguido no processo “Tempestade Perfeita”, podendo o governante estar a ser
vítima de quem cometeu crimes no Ministério da Defesa Nacional. Esta posição
foi transmitida no aeródromo de Ponte de Sor, distrito de Portalegre, nas
reuniões descentralizadas da direção do grupo parlamentar do PS.
Interrogado se Cravinho tem condições políticas para
continuar no governo, depois dos últimos desenvolvimentos, Brilhante Dias pediu
leitura atenta da notícia do Expresso,
pois a notícia “diz, preto no branco”, que a personalidade em causa, arguida no
processo, é uma personalidade “que foi escutada junto de outros arguidos a
montar uma estratégia de envolvimento dos políticos”. Custa-lhe que se faça
política acusando o ministro, “quando se sabe que esse conjunto de pessoas, que
tem, naturalmente e legitimamente, direito à presunção da inocência, foi
escutada a procurar envolver políticos para desviar as atenções”. E repetiu a
tese de que a “área da Defesa precisa de uma auditoria geral”. “Hoje, temos
notícias que a auditoria está de facto a ocorrer por iniciativa da senhora
ministra”, vincou.
Também a 2 de outubro, o primeiro-ministro (PM), António
Costa, no final de entrevista à TVI e
CNN/Portugal, se insurgiu contra
fugas seletivas de informação na investigação “Tempestade Perfeita” envolvendo
Gomes Cravinho, mas prometeu avaliar politicamente eventuais futuras
consequências do processo, sem se antecipar à justiça.
Confrontado com a notícia do Expresso sobre
depoimentos no processo “Tempestade Perfeita”, que podem pôr em causa a atuação
do ministro, respondeu: “Não nos deixemos intoxicar por fugas seletivas
de informação, sobretudo quando, depois, aparecem escutas onde se percebe […] que
um arguido diz: ‘Vamos lá implicar os políticos para controlarmos esta
narrativa’. […] Não sei se é verdade, se não é verdade, porque eu não tenho
acesso às escutas.”
Disse não saber se Gomes Cravinho está a ser vítima da ação
de quem é suspeito de ter cometido crimes no processo e salientou que ninguém
está acima da lei. Se houver indícios relativamente a quem quer que
seja, a justiça atuará. Portanto, António Costa não se antecipa à justiça. E, observando,
pelo que leu, que há arguidos que, nas conversas entre eles, dizem
querer implicar o ministro, “para terem um escudo protetor”, desafiou
o Ministério Público a, se tem algo a apontar ao ministro ou a quem quer que
seja, que aja. Depois, avaliará. Porém, advertiu que não é
critério ser arguida uma pessoa, para ter de sair do governo, pois o estatuto
de arguido foi criado para proteção do investigado, pelo que “ser arguido não é
uma pré-condenação”. Reiterando a ideia de que não se mete na justiça,
porfiou a certeza de que a justiça “não se mete na política nem se guia
por critérios políticos”. Por isso, avaliará, em função do que acontecer, mas
não especula, muito menos com base em escutas que não conhece e “que objetivamente
ninguém devia conhecer”.
A 9 de outubro, Vítor Moita Cordeiro – escudado nas opiniões
da politóloga Paula do Espírito Santo, do embaixador Seixas da Costa e do
deputado Tiago Moreira de Sá, do Partido Social Democrata (PSD) – escreveu, no Diário de Notícias (DN), que o ministro se mantém “imaculado no plano internacional,
apesar das controvérsias”.
Para Seixas da Costa, não há fragilização da imagem internacional
de Cravinho, pois o caso é “uma questão luso-portuguesa” (pleonasmo). Porém, as
vozes de vários partidos insurgiram-se contra Gomes Cravinho e contra o governo.
O PSD, apesar de não haver processo que envolva o ministro, desafiou o PM a
avaliar se o governante tem condições para manter o cargo. O líder do Chega
propôs que Gomes Cravinho e a ministra da Defesa vão ao Parlamento esclarecer
dúvidas, sugerindo que, se não o fizerem, avançará com uma comissão de
inquérito. Dentro do seu partido, Cravinho foi amparado pelo grupo parlamentar.
O que está em equação é a importância
do MNE, para o país, com o protagonista do cargo rodeado de controvérsias. Paula
do Espírito Santo sustenta que é “uma das pastas mais importantes do
governo”, ponte fundamental entre Portugal e o exterior. “Sabendo que estamos a
falar num Estado democrático”, é fundamental que haja um Ministério dos
Negócios Estrangeiros forte, com
a imagem de credibilidade, a nível interno e externo. O cargo depende muito do suporte
institucional, que deve vir do PM, e do reconhecimento dos seus pares, no governo,
e dos seus pares no plano externo. Se calhar, é uma das pastas mais importantes
na coesão nacional e na relação de Portugal com o exterior, porque “não vivemos
sozinhos e não podemos olhar-nos enquanto regime como um Estado pária”, adianta
a politóloga.
Tiago Moreira de Sá, coordenador do
grupo PSD na Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, diz
que o MNE é “uma função de soberania absolutamente crucial”. E
cita a asserção de John F. Kennedy de que “a política interna apenas pode
derrotar-nos, enquanto a política externa pode matar-nos”, esclarecendo
que esta pasta lida “com assuntos que, no extremo, podem levar à paz e à
guerra”. Critica a tutela de Cravinho: “Nós não podemos ter, mas, em certo
sentido, temos, um meio Ministério dos Negócios Estrangeiros.” E lembra que a
pasta dos assuntos europeus está nas mãos do PM, ideia que pode ter algumas
virtudes, porque são cada vez mais os assuntos que tocam em vários ministérios,
mas, na prática, retalhou as funções do Ministério dos Negócios Estrangeiros. O
deputado aponta como “estranho” que os assuntos europeus estejam fora do MNE,
quando a “opção europeia” é “a prioridade da política externa”. Depois, o Orçamento
do Estado para os Negócios Estrangeiros é “indigno”, por ser muito baixo, “de
uma função de soberania e da mais importante função de soberania do país”,
situação a que se junta a “pesadíssima herança que vem do Ministério da Defesa”.
Segundo Paula do Espírito Santo, a
posição de Cravinho como governante “está comprometida” pela suspeição, pelo
menos, em responsabilidade política. Não há em curso nada contra ele no plano
jurídico e o que se lhe pode apontar, para já, é só no plano interno e num
ministério que já não tutela, “pela proximidade que tinha, e por ter que anuir
em determinadas decisões” que envolviam Capitão Ferreira, nos processos que ele
desenvolvia. Contudo, “publicamente, ele não dá sinal de que esteja
desconfortável”, diz a politóloga. De facto, desenvolve toda a sua atividade na
atual pasta e não há reflexo ou reconhecimento de culpabilização política neste
processo. E o PM já disse que, se ele fosse constituído arguido – ele próprio
já o foi – isso não significa muito, porque ser arguido não significa ser
culpado.
Se e quando houver, da parte da
justiça, alguma ação, o PM tirará conclusões. “Isto no plano interno. No plano
internacional, não me parece que haja qualquer fragilização”, vinca Seixas da Costa, antes de
fazer um retrato político do ministro. Neste, destaca-se o seu estatuto no
plano internacional estabilizado há anos, como embaixador em várias instâncias,
como governante e como quadro político-partidário. Segundo Seixas da Costa, os
seus contrapartes não estarão preocupados com estas notícias, sobretudo, quando
não há “concretização de qualquer tipo de ação de natureza judiciária que o
possa tocar”.
***
Falar de responsabilidade política (relevante, mas difusa) do
ministro tem poucas consequências: ou fica no governo ou sai. E, saindo, paga
por erros que não está a tempo de corrigir; e quem lhe sucedeu pode deixar
cometer os mesmos erros. Por isso, o importante será passar a pente fino todas
as contas e procedimentos de todos os departamentos do Ministério da Defesa
Nacional, bem como de todos os Ministérios sobre os quais recaia a mínima
suspeita, sendo esta a única forma de não se ficar a assobiar para o lado.
Responsabilizar criminalmente o governante com base na alegação de arguido em
processo é ignóbil: se há suspeita fundamentada, a justiça que funcione com
processo à parte. Deixar pairar a dúvida, condenar em praça pública ou usar
processos judiciais (é mais fácil) como arma de arremesso político-partidário é
que não! E discutir junção ou repartição de pastas, a propósito do MNE é
inútil. Também, por exemplo, o ministro da Educação só será meio ministro (já
não tem a ciência e o ensino superior) e ninguém o diz.
2023.10.09 – Louro
de Carvalho
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