É uma poderosa asserção de D. Américo Aguiar, criado cardeal-presbítero
no passado dia 30 de setembro, baseada na homilia papal da celebração do
Consistório de criação dos 21 novos purpurados e como subtil resposta às vãs
expectativas alimentadas por alguns observadores.
O curriculum vitae
de Américo Aguiar é tudo menos monótono: desde autarca e pároco a bispo
auxiliar, passando por vigário geral, líder executivo da Irmandade dos
Clérigos, presidente do conselho de administração do grupo Renascença e presidente da Fundação JMJ Lisboa 2023.
A um mês da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), o Papa
incluiu-o na lista, que publicitou, de 21 cardeais a criar em 30 de setembro, o
que, pelos vistos, foi surpreendente para si próprio.
É, fundamentalmente, a partir daí que algumas vozes, pegando
em asserções isoladas do contexto, entram em contestação, levadas por um errado
purismo teológico e pela inveja de o cardeal eleito, ainda novo, ter adquirido
visibilidade. A tudo o atingido foi respondendo, estribado no são pluralismo,
na verdade teológica e na convicção de que só se atiram pedras às árvores de
fruto.
Entretanto, algumas entidades, incluindo o Presidente da
República, pensaram que Francisco estava a dar um sinal de que o faria
patriarca de Lisboa – esquecendo que o Vaticano não convive bem com
adivinhações e presságios e que Francisco é surpreendente nas suas decisões – o
que não impediu que alguns viessem a dizer que era demasiado novo e que o
patriarca de Lisboa, por inerência, magno chanceler da Universidade Católica
Portuguesa (UCP), tinha de ser doutor.
Se isso tinha fundamento, não sei; o que sei é que bispos
como um bispo de Viseu, com quem trabalhei, um bispo do Porto, que bem conheci,
e um arcebispo de Braga, não doutores, presidiam aos atos solenes da UCP nas
respetivas dioceses. Também o atual patriarca não tem o título académico de
doutor e foi escolhido. No entanto, laconicamente, aponta-se o título da tese
que preparou, mas que não obteve o título, devido a ocupações pastorais (aliás,
como o Papa). Também a diretora da Faculdade de Teologia é doutora, mas em
História. Há, pois, nexos não indispensáveis. Pessoalmente, não me preocupam
esses títulos, presentes ou ausentes, pois os bispos são, sobretudo, “Pastores
da Igreja” e o seu doutorado é o da fé e da doutrina da fé.
Também se pensou na hipótese de chefiar um serviço na Cúria
Romana, mas há sempre um “mas”, para justificar expectativas não realizadas. É
óbvio que Américo Aguiar é novo, mas não para ser bispo, cardeal, arcebispo, patriarca,
etc. Poderá sê-lo para dirigir um dicastério, mas, sobretudo, tem de esperar
que os prefeitos respetivos terminem os seus mandatos ou atinjam a idade para
cessarem funções (75 anos). Estas eventuais limitações não impedem a nomeação
para membro de alguns dicastérios romanos, nem para aconselhar o Papa.
Quanto a Setúbal, é uma das novas dioceses, sem a “ferrugem”
das antigas, e um bom espaço pastoral. Aliás, não há, eclesialmente, dioceses
de primeira e de segunda categoria.
Não sei o que pensa o cardeal, mas, para nós, as suas
afirmações são revestidas do melhor sentido eclesial e da “colagem”, pela
positiva, ao ideário e as estratégias do Papa Francisco.
***
Na sua homilia, Francisco partiu duma passagem dos Atos dos Apóstolos (At 2,1-11), a narração do Pentecostes, um
texto fundamental, por significar o batismo da Igreja. Porém, o Pontífice
fixou-se na verificação dos Judeus, que então “residiam em Jerusalém”, de que
os circunstantes vinham de todas as partes do Mundo, conhecido ao tempo. E essa
lista de povos faz pensar nos cardeais, que são “de todas as partes do Mundo,
das mais diversas nações”.
Depois, surpreendentemente,
anotou que os pastores da Igreja, ao lerem a narração do Pentecostes, se
identificam com os apóstolos, quando aqueles povos diversos e de todos os
confins, que o Papa associava aos cardeais, não pertenciam ao grupo dos
discípulos, estavam fora do Cenáculo, integrando a multidão que se reuniu, quando
ouviu o ruído da “forte rajada de vento”. Os Apóstolos eram “todos galileus”,
ao passo que o povo que se reunira provinha “de todas as nações que há debaixo
do céu”, como o são os bispos e os cardeais de hoje.
Esta de
inversão de papéis revela interessante perspetiva que o Pontifice quis
partilhar. Trata-se de aplicar, agora, a experiência daqueles judeus que, por
dom de Deus, foram protagonistas do Pentecostes, ou seja, do batismo do
Espírito Santo, “que fez nascer a Igreja una, santa, católica e apostólica”. Tal
perspetiva sintetiza-se em “redescobrir,
maravilhado, o dom de ter recebido o Evangelho na nossa língua”. É,
pois, necessário, “repensar, com gratidão, o dom de termos sido evangelizados e tirados de povos que receberam
o Kerygma, o anúncio do mistério de salvação, e que, acolhendo-o,
foram batizados no Espírito Santo” e passaram a integrar a Igreja: “a Igreja
Mãe, que fala em todas as línguas, que é una e é católica”.
Assim, antes
de sermos apóstolos (sacerdotes, bispos, cardeais), somos pessoas desses
diversos povos do Mundo, o que “deveria despertar em nós a maravilha e a
gratidão por termos recebido a graça do Evangelho nos nossos respetivos povos
de origem”. Com efeito, na História e “na carne do nosso povo”, “o Espírito Santo operou o prodígio da
comunicação do mistério de Jesus Cristo morto e ressuscitado”, que nos
chegou “na própria língua”, nos lábios e nos gestos “dos nossos avós e dos
nossos pais, dos catequistas, dos sacerdotes, dos religiosos”. A fé, na
verdade, “é transmitida, ‘em dialeto’, pelas mães e pelas avós”.
Por isso, “somos
evangelizadores”, na medida em que guardamos no coração a maravilha de termos
sido evangelizados e sermos
evangelizados. É um dom atual, que deve ser continuamente renovado na
memória e na fé. Somos “evangelizadores evangelizados, e não funcionários”.
O
Pentecostes, tal como o batismo de cada um, não é um facto do passado, mas “um
ato criador que Deus renova continuamente”. E Igreja (e cada um dos seus
membros) vive deste mistério atual. Não vive de rendimentos ou dum património
arqueológico, por mais precioso e nobre que fosse. “A Igreja e cada batizado vivem
do hoje de Deus, pela ação do Espírito Santo.”
E,
dirigindo-se aos novos cardeais, o Papa disse que, à luz da Palavra, podemos
individuar esta realidade: os novos cardeais vieram de diversas partes do Mundo,
e o Espírito que fecundou a evangelização dos seus povos, agora renova neles a sua
“vocação e missão na Igreja e para a Igreja”.
Desta
reflexão, o Papa tirou uma consequência para os cardeais e para o colégio
cardinalício, expressa na imagem da orquestra: o colégio cardinalício “é
chamado a assemelhar-se a uma orquestra
sinfónica, que representa a dimensão sinfónica e a sinodalidade da
Igreja”.
E Francisco
sublinhou a “sinodalidade”, por estarmos nas vésperas da primeira Assembleia do
Sínodo que versa o tema e porque “a metáfora da orquestra pode muito bem iluminar
o caráter sinodal da Igreja”. Com efeito, a sinfonia “vive da sábia composição
dos timbres dos diversos instrumentos: cada um dá o seu contributo, ora
sozinho, ora combinado com outro, ora com todo o conjunto”. Sendo indispensável
a diversidade, “cada som deve concorrer para o resultado comum”, para o que “é
fundamental a escuta mútua”. Efetivamente, como diz o Papa, “se alguém se ouvisse
apenas a si mesmo, por mais sublime que possa ser o seu som, não serviria de
proveito à sinfonia”, acontecendo o mesmo, “se uma parte da orquestra não
ouvisse as outras”.
Por seu
turno, o diretor da orquestra está ao serviço do milagre que “é a execução duma
sinfonia”, pelo que “deve ouvir mais do que todos os outros e […] a sua tarefa
é ajudar cada um e a orquestra inteira a desenvolver ao máximo a fidelidade criativa”,
a fidelidade à obra a executar, mas criativa, capaz de dar alma à partitura, “de
fazê-la ressoar, de forma única, aqui e agora”.
Segundo o
Papa, “faz-nos bem espelhar-nos na imagem da orquestra”, para aprendermos a ser
“Igreja sinfónica e sinodal”. Assim a propõe, de modo particular, aos membros
do colégio dos cardeais, na confiança de que “temos como maestro o Espírito
Santo [é Ele o protagonista]: maestro interior de cada um e maestro do caminhar
juntos”. Com efeito, Ele “cria a variedade e a unidade, Ele é a própria
harmonia”, como referiu São Basílio Magno, ao afirmar: “Ipse harmonia est – Ele próprio é a harmonia.”
Por fim, o
Pontífice confiou-se e confiou os cardeais à “doce e forte guia” do Espírito
Santo e “à guarda solícita da Virgem Maria”.
***
É
neste contexto homilético de Igreja sinfónica e sinodal que se situa o papel
principal do 47.º cardeal português, enquanto bispo de Setúbal, a quem
Francisco, logo a seguir à entrega do barrete e do anel cardinalícios, exortou a
ter “Setúbal no seu coração”, o que o purpurado considerou “particularmente
bonito e inspirador”
Como
lhe foi atribuído o título da Igreja de Santo António de Pádua in Via Merulana,
o Papa disse-lhe: “Santo António de Lisboa ou de Pádua, agora entendam-se.” E,
sobre a atribuição deste título presbiteral, D. Américo Aguiar referiu: “Para
mim, é particularmente significativo que esta Igreja tenha sido a Igreja
titular do cardeal António Ribeiro e do cardeal [Cláudio] Hummes, o culpado do
nome Francisco.” São sinais, “recados e provocações que coloca no coração”. De
facto, D. António Ribeiro foi patriarca de Lisboa e D. Cláudio Hummes foi o
cardeal brasileiro que inspirou o Papa Francisco, ao dizer-lhe, após a eleição:
“Não te esqueças dos pobres!”
D.
Américo Aguiar conta que, ao subir a rampa da Praça de São Pedro, para receber
o barrete cardinalício, se lembrou de quando o Papa, no contexto da pandemia, a
subia sozinho e pareceu-lhe ter sentido o peso e a partilha dessa caminhada. Na
verdade, os cardeais, com a fórmula e com o juramento de fidelidade ao
Pontífice, ficam-lhe estreitamente vinculados à sua missão (não sei como alguns
se lhe opõem, por vezes, drasticamente). E o novel purpurado vincou: “A partir
do momento em que nos entregamos nas mãos de Deus, seja o que Deus quiser.” De
facto, hoje o aconselhamento ao Papa e a cooperação com ele não conhecem
barreiras geográficas, nem atrapalhações institucionais – digo eu.
Sobre
a ida para Setúbal, o cardeal já tinha referido, a 21 de setembro, quando foi
conhecida a sua nomeação: “Sou um fazedor e parto para Setúbal de mangas
arregaçadas”. E acrescentou, predisposto a descartar a ideia de que “ir para
fora é que é bom”: “Quando o soube, fiquei de coração cheio.” E dizia ter encontrado,
em D. Manuel da Silva Martins, o primeiro bispo da diocese, inspiração para o
trabalho pastoral e ter apreciado, em D. António Francisco dos Santos, e foi
bispo do Porto, a marca da disponibilidade e da proximidade.
E,
respondendo ao apelo da metáfora da orquestra sinfónica, a representar bem o
caráter sinodal da Igreja, considerou: “Não sou bom a música, mas faço parte de
uma orquestra sinfónica e sinodal. Agora vamos dar música. ‘Um homem do Norte
rapidamente se adapta a qualquer instrumento’.”
Esta
última frase, que serve de epígrafe a esta peça de reflexão, é do melhor que se
pode encontrar numa alma verdadeiramente eclesial. Digo-o de um hierarca que
não conheço pessoalmente, mas que reconheço pelo trabalho e pela visibilidade
globalmente extraordinária. Compreendo a inveja de outros, que não aceito,
pois, quem está incumbido de tarefas que, pela sua natureza, conferem
visibilidade, não pode nem deve furtar-se aos holofotes da ribalta pública.
Seria fugir às suas responsabilidades eclipsar-se ou impelir outrem para
responder pelo que é bom e pelo que é menos bom. Por isso, que o bispo de
Setúbal, cardeal-presbítero, siga em frente, faça seguir a sua Marinha
evangelizadora, litúrgica e sócio-pastoral e tenha êxito pastoral e pessoal.
2023.10.02 – Louro de carvalho
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