Três meses de guerra civil entre dois generais que disputam a presidência
do Sudão ocasionaram a brutal degradação da situação humanitária e o aumento da
diversidade de armamento, pelo que os delegados da Organização das Nações
Unidas (ONU) temem a repetição do primeiro genocídio deste século, no Darfur,
devido a milícias árabes e não-árabes que, em combate de fações opostas,
alimentam o ódio étnico.
Um fluxo internacional de armas atravessa o território. Segundo o israelita
Eli Cohen, ministro das Relações Exteriores, “o Irão contrabandeia para o Sinai
e para a Faixa de Gaza, pelo Sudão”. As Forças Armadas têm produções legítimas
de foguetes, de aeronaves, de tanques e de armas ligeiras, bem como de drones
turcos “Bayrakdar” e de aviões russos de combate “MiG”, beliscados pelas
antiaéreas das RSF.
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Darfur, que significa “terra dos Furis”, é uma região do
Oeste do Sudão, na fronteira com a Líbia, com o Chade, com a República Centro-Africana
(RCA) e com o Sudão do Sul. Divide-se em três Estados federais sudaneses: Garb
Darfur (Darfur Ocidental), Djanub Darfur (Darfur do Sul)
e Shamal Darfur (Darfur do Norte). Com a área de 503180 km² e com a
população de cerca de sete milhões de habitantes, carateriza-se pelo baixo
nível de desenvolvimento. Frequentam a escola 44,5% das crianças do sexo
masculino e 33,3% das crianças de sexo feminino. Predominam três etnias: Furis,
que dão o nome à região, massalites e zaguas, em geral negros
muçulmanos ou seguidores de outras religiões africanas.
A região é
cenário de disputas entre as populações árabes e as não árabes, na franja sul
do Deserto do Saara. Os não Árabes, separatistas, são alvos de ação
de extermínio empreendida por milícias árabes denominadas janjauidis, acusadas
de receberem apoio do governo sudanês. O conflito já fez mais de 200 mil mortos
e cerca de dois milhões de refugiados desde 2001, em quatro anos
de inércia diplomática entre
os países do Mundo. Segundo Ban Ki-Moon, além das causas sociais, económicas e
políticas, o conflito e a subsequente grave crise humanitária têm sido
intensificados por alterações climáticas que provocam períodos
alternados de grande seca e de chuvas, com inundações no Sul do Sudão, a partir da
década de 1970. A República Popular da China (RPC) vem sendo alvo de
críticas de organizações da sociedade civil, em muitos países, por defender, na
ONU e em outros fóruns internacionais, a não intervenção nos assuntos internos
do Sudão, mas com o comércio entre os dois países a crescer exponencialmente.
O Sudão tem a segunda maior zona económica do Mar Vermelho, atrás da Arábia
Saudita. Aprovou, no início de 2023, uma base naval russa de até 300 militares
e quatro navios. A Arábia Saudita, apoiante das milícias no Darfur, inviabiliza
outras parcerias de Al-Burhan, enquanto o maior exército da África Central, no
Chade, é um aliado chave da presidência.
A 23 de abril
de 2007, foi instituída a Autoridade Regional de Transição do Darfur (Transitional
Darfur Regional Authority), para supervisão do referendo no Dafur, em 2010.
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Desde abril de 2023, há duas fações em contenda intensiva: as Forças
Armadas do general Fattah Al-Burhan (que instaurou a lei marcial e pediu aos
jovens que se alistassem no exército) e as Forças de Apoio Rápido (RSF), do
general Hemetti. Ambas dispõem de armamento pesado: canhões, tanques, aviões e
drones. O conflito, que eclodiu no Norte de Cartum, alastrou para as províncias
de Kurdufan, de Darfur e de Omdurman. Segundo a Organização Internacional para
as Migrações, no Egito, no Chade, no Sudão do Sul, na Etiópia e na África
Central, há destruição de infraestruturas, centenas de civis mortos, 700 mil
refugiados e 2,3 milhões de deslocados.
Gillian Kitley, diretora do Alto Comissariado da ONU para os Direitos
Humanos no Sudão, recolhe testemunhos das violações do Direito Internacional
Humanitário e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, desde o início do confronto
entre os generais. Ambas as fações cometeram atrocidades. E Kitley, culpando as
RSF pela maioria, sustenta: “A utilização de áreas civis para fins militares, a
extorsão de habitações, a ocupação de escolas, de hospitais e de
infraestruturas críticas, transformaram Cartum numa cidade inabitável.”
Há injustificáveis homicídios, detenções incomunicadas e arbitrárias,
ataques aéreos contra áreas residenciais sem interesse militar, de que
resultaram vítimas civis. Sobressai o sequestro de 500 apoiantes do presidente
Al-Burhan. E, com 100 mil soldados e bases em todo o país, as RSF libertaram
individualidades da ditadura militar, como Ahmad Haroun, ex-ministro do
Interior, acusado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) de 20 crimes contra a
humanidade e de 22 crimes de guerra. Os cadáveres acumulam-se nas ruas, sem
intervalos entre confrontos. São constantes as pilhagens a bancos, a empresas e
a domicílios. E Abdelmagid, cônsul honorário de Portugal no Sudão, refere que
os Sudaneses perderam depósitos bancários e propriedades privadas e que cerca
de 70% da capital não tem água, nem eletricidade.
A 11 de julho, pelo menos 30 pessoas morreram, quando o exército sudanês
bombardeou um mercado em Omdurman, a cidade mais populosa do país no Estado de
Cartum. É o pior incidente com civis mortos desde o início do conflito. A
maioria das vítimas deste ataque ao mercado de Shaabi eram mulheres e crianças.
Fontes médicas dizem que as bombas foram disparadas da base militar de Karri,
controlada pelo exército do Sudão, em intensos combates com RSF.
No dia 8 de julho, morreram 38 pessoas na cidade, num dos mais mortíferos
ataques aéreos até ao momento, que atingiu o bairro de Dar es Salaam.
A situação degrada-se, mas a ajuda humanitária é bloqueada. Antes da
guerra, eram deslocados internos 3,8 milhões e o país acolhia 1,1 milhões de
refugiados do Sudão do Sul. “Falta comida, água, segurança”, expõe Clementine
Salami, representante de António Guterres no país, em entrevista à Al-Arabiya. Metade dos sudaneses, 24,7
milhões, dos quais “13 milhões são crianças”, carece de ajuda humanitária. Porém,
apesar dos 62 milhões de euros dos fundos de emergência e de apoio humanitário para
a mitigação do conflito, anota-se a escassez de ajuda internacional e de mediatismo.
E Gillian Kitley, vincando que “o serviço de ação humanitária continua, após os
assaltos aos armazéns e aos escritórios da ONU”, descreve assim a situação que
se vive na capital: “Os tiroteios e os bombardeamentos não cessam, as ruas
foram tomadas por militares. Há muitos mortos inocentes.”
A Human Rights Watch acusa Hemetti de execuções sumárias e de violações em
massa, num conflito que extravasa o Darfur. Os seus homens são pagos para
combaterem pela Arábia Saudita contra os Houthi, no Norte do Iémen. A Unidade
de Combate à Violência contra Mulheres, do Ministério do Desenvolvimento
Social, culpa os rebeldes por 88 episódios de abuso sexual em Cartum, em Niyala
e em El Geneina. Segundo a ONU, é difícil verificar todos os casos, mas as
vítimas identificam homens que vestem uniformes das RSF. Os estupros decorrem
nas ocupações de propriedade, contra civis em fuga, quando são parados nas
barricadas, e a população é alvejada nas ruas. E, como refere Abdelmagid, sobre
os hipotéticos massacres que atemorizam os observadores da ONU, não há
jornalistas no Darfur, pelo que ninguém sabe a gravidade da situação. Porém, incendiaram
cidades e vilas e há assassínios em massa. A RSF controla metade da província
de Darfur, na fronteira do Chade e da RCA.
Considerando muito preocupante “a erupção de violência étnica no Darfur”, a
diretora do Alto Comissariado de Direitos Humanos evidencia os ataques das RSF,
apoiados por milícias árabes, as “Janjaweed”, contra comunidades africanas
não-árabes na cidade de El Geneina e na região ocidental do Darfur. Vê no “discurso
de ódio” um indicador de perigo máximo, pois “assiste-se em vídeos e mensagens
online contra grupos não-árabes”.
Antes dos atuais confrontos, a ordem de advogados do Darfur denunciou que
os rebeldes queriam “encerrar as instituições estatais e espalhar o
anarquismo”. O governador da província, Minni Minnawi, ex-militante do Exército
Sudanês de Libertação não-árabe, exortou os residentes a pegarem em armas e a defenderem-se
dos ataques. O chamamento dos não-árabes no Darfur para o combate contra as RSF
aviva a memória do primeiro genocídio do século XXI, há duas décadas, na
região. Agora, ressurgem as notícias de aldeias incendiadas e de deportações
forçadas, após o avanço das forças de Hemetti sobre a região ocidental do
Darfur. O governador da cidade de El Geneina, Khamis Abakar, apelou a
intervenção militar estrangeira que impeça outro “genocídio”, mas foi
assassinado, há um mês, um dia após as declarações.
A cidade simboliza o poder negro e é residência da etnia massalit. Civis
são mortos aleatoriamente em grande número; as pessoas são atacadas em casa e
em campos de refugiados e mortas por causa da sua etnia. Segundo o The New York Times, as milícias árabes
que invadiram El Geneina, apoiadas pelas RSF, encontraram forte resistência de
combatentes armados, incluindo moradores que receberam armas do exército. Não
obstante, foram incendiadas dezenas de mercados, campos de deslocados e
unidades de saúde. As milícias foram de porta em porta, para encontrar alvos e para
atirar em civis desarmados. Sem comida ou água, milhares começaram a fugir da
cidade, mas foram mortos por atiradores, deixando os corpos nas ruas. A cidade
está sem eletricidade e sem telecomunicações, sob o controlo das RSF e das
milícias árabes. “Há deportações forçadas, centenas de civis assassinados na
região ocidental do Darfur e em El Geneina”, assume Kitley, apesar de a única
informação disponível advir de refugiados no Chade e de alguns trabalhadores
humanitários. “Há sinais alarmantes, como a dimensão étnica do conflito, a
capacidade de armamento e de organização dos assassinos – a História do Darfur!”
Este pode ser o começo do segundo genocídio na franja sul do Saara, neste
século, com o renascer do ódio entre comunidades negras africanas e muçulmanos.
Há 22 anos, não-árabes rebelaram-se, acusando o Governo de discriminação. A
ditadura militar de Omar Al-Bashir, para estancar a rebelião, armou milícias
árabes, as Janjaweed, que foram acusadas de assassinatos étnicos em massa. A origem
das RSF está nas Janjaweed. E, agora, as Forças Armadas sudanesas acusam-nas de
atacarem novamente comunidades africanas.
As condenações de Haia pelas violações, pelos crimes de guerra e pelo
genocídio no Darfur, não tiveram consequências, perpetuando-se a impunidade.
Não há esperança de paz, após os ignorados apelos de cessar-fogo. Quando o
conflito eclodiu, Vítor Ângelo, antigo representante da ONU para missões de
paz, advertiu que “esta guerra não é feita com fisgas”. E a diversidade de armamento
aumentou. A marinha capturou “snipers” e explosivos, no Mar Vermelho.
Os analistas da “All Eyes on Wagner” notaram atividade mercenária
russa no fornecimento às RSF, através da Líbia, sob controlo do general Hafter,
apoiado pela Wagner. As armas chegam-lhes da África Central e da Líbia. Apesar
de encerradas, as fronteiras são longas e o contrabando é fácil. A Wagner
apoia-os em armas e treino no terreno.
Os paramilitares e os rebeldes exploram minas de ouro no país. As produções
sob o controlo das RSF funcionam com tecnologia e segurança da Wagner e facultam
a exportação para a Rússia. As RSF admitem a capacidade de combate por dois
anos, pois as exportações do minério rendem dois mil milhões de euros anuais ao
Sudão. E, enquanto a Wagner apoia as RSF, a Realpolitik
do Kremlin é pró-Al-Burhan. O vice-chefe do Conselho Soberano, Malik Agar,
congratulou-se, ante a agência Sputnik,
“com o papel da Rússia em qualquer negociação de paz, visando 40 milhões de
dólares russos para causas humanitárias no Sudão. E Sergey Lavrov, ministro dos
Negócios Estrangeiros da Rússia, declarou-se apto a negociar a paz e a reforçar
a cooperação.
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A ONU teme que a guerra civil se torne interminável, mas nós só vemos
guerra na Ucrânia!
2023.07.16 –
Louro de Carvalho
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