A atribuição da causa da
inflação aos altos salários foi a asserção mais impopular e mais dúbia que a
presidente do Banco Central Europeu (BCE), Christine Lagarde, proferiu em
Sintra, em junho, no fórum anual dos bancos centrais da Zona Euro, a que juntou
a recomendação aos governos de pararem com as ajudas públicas às famílias e às
empresas, bem como a garantia de nova subida da taxa diretora dos juros, na
reunião de julho.
Tal postura discursiva, que
parece avaliar a crise inflacionista que grassa pela Europa e pelo Mundo fora,
segundo os critérios de avaliação do surto inflacionista da crise petrolífera da
década de 1970, suscitou críticas do Presidente da República (PR), Marcelo
Rebelo de Sousa, do primeiro-ministro (PM), António Costa, e da generalidade da
oposição.
Christine
Lagarde pode defender que se retirem apoios sociais e não se aumentem salários,
mas, em Portugal, a resposta será outra, garantiu o Governo, no rescaldo das
declarações da presidente BCE, que alimentou pedidos de cuidado aos banqueiros
centrais pelo PR – que solicitou “grande ponderação” no discurso sobre os
juros, na “na previsão do futuro e no apontar pistas de futuro” (o aumento dos
juros tem efeito de perturbação nas
pessoas, nas economias e nos mercados”, disse) – e de ação ao executivo
socialista da parte dos partidos da oposição, que sustentam que o Governo deve
responder ao aumento das taxas de juro, reduzindo impostos ou colocando os
bancos a pagar o agravamento dos juros.
Depois de o
Governo ter defendido, ao longo do último ano e meio, que a subida salarial
podia contribuir para uma espiral inflacionista, António Costa enfrentou Lagarde, garantindo que são para continuar
os apoios às famílias e às empresas, bem como o aumento de salários. O PM disse
que “o aumento dos lucros extraordinários tem contribuído mais para a
manutenção da inflação do que as subidas salariais” e que o facto de o BCE “não
compreender” a “natureza específica deste ciclo inflacionista” está a limitar “a
capacidade de o enfrentar”. “Se não acertamos bem no diagnóstico, a terapia
raramente acerta”, alertou. Ao longo de boa parte de 2023, o chefe do Governo
foi adiando respostas à subida de preços, com base no argumento de que a
inflação decorria da guerra na Ucrânia e, como tal, tinha caráter conjuntural.
Porém,
agora, espera que “possamos começar a retomar uma trajetória de política
monetária mais adequada àquilo que é fundamental”, isto é, “salvaguardar as condições de vida das
famílias, a capacidade de
as empresas investirem e de a economia continuar a crescer e de gerar emprego que gere salários melhores”.
Também a
ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, contrariou o BCE, lembrando
que, no passado, a austeridade foi o caminho errado e garantindo que,
independentemente das sugestões de Lagarde, “cabe a este Governo tomar as medidas
que considera necessárias”, as quais passam por combater a inflação e o aumento
dos preços da energia, proteger as
famílias mais vulneráveis e ter “medidas direcionadas à classe média”.
Foi uma estratégia “adequada e certa” no passado e que é para “continuar” no
futuro, disse. E, na comissão parlamentar de Orçamento e Finanças, Fernando
Medina mostrou apreensão, face à
continuação da política de subida de taxas de juro de forma prolongada, que tem
“riscos adversos”, que “começam a crescer”, e assumiu ter já transmitido a
Lagarde esta preocupação.
Os governantes
procuram demarcar-se das posições do BCE e passar a ideia de que a política de
apoios sociais e salários não é para travar, apesar da inflação, a par do
crescimento da economia, que se prevê situar-se em torno de 3%, neste ano. Aliás, no
próximo Orçamento do Estado, o Partido Socialista (PS) pretende apostar na
valorização dos salários da função pública e na redução de impostos, tendo já anunciado
um aumento das pensões, em 2024. Também os partidos da oposição repudiam as
declarações de Lagarde, tendo pedido ao Governo que aja internamente para
contrariar a política do BCE, através da redução de impostos, do aumento dos
salários ou da cobrança do aumento das taxas de juros aos bancos. E pedem que,
em Bruxelas, o Governo transmita a posição portuguesa sobre a política monetária
europeia de Frankfurt.
O Partido
Social Democrata (PSD) defendeu que tem de haver “valorização do nível salarial” e redução na cobrança de impostos, tendo exortado o Governo a
defender a “necessidade de haver equilíbrio” no Conselho Europeu. A Iniciativa Liberal (IL) considerou que, apesar
da “capacidade relativamente reduzida” de Portugal de “influenciar a política
de taxas do BCE”, devido ao “equilíbrio frágil” das contas portuguesas, o país
pode responder ao aumento dos juros reduzindo a carga fiscal. O Chega, lamentando as declarações da
responsável da autoridade monetária europeia, frisou que a resposta à inflação
não pode “sufocar as famílias e as empresas” e questionou o ministro das
Finanças sobre que mecanismos vai
utilizar em Bruxelas, como “advertir formalmente o BCE, fazer algum
pedido de esclarecimento formal ou uma proposta de alteração nas
orientações”.
O Partido
Comunista Português (PCP), acusando Lagarde de “profundo desprezo pelas dificuldades
das famílias” e da “opção política de ataque aos trabalhadores”, insistiu em que
o aumento das taxas de juro deve
ser pago através dos lucros da banca e não das famílias, a quem se
devem reduzir os impostos. No Parlamento Europeu (PE), os eurodeputados
comunistas promoveram um abaixo-assinado contra a subida dos juros. E o Bloco
de Esquerda (BE), que havia instado o presidente da Assembleia da República (AR)
a convidar a líder do BCE a falar sobre juros na AR, criticou-a por
defender que o “destino” dos trabalhadores é “empobrecer” e desafiou o Governo
a “obrigar os bancos a suportar uma
parte do custo do aumento das prestações ao crédito e a limitar as rendas”.
***
A passagem de
Christine Lagarde por Sintra, onde deixou uma mensagem sobre a necessidade de
contenção salarial, de aperto nos apoios públicos e de garantia de novas
subidas de juro, continua a ter reverberações em Portugal. E parece cada vez
mais improvável alinhar política monetária e orçamental num país onde os
salários subiram aquém do nível de preços e 90% do crédito à habitação é a taxa
variável. Por isso, está agendada a ida, na semana de 10 a 15 de julho, de uma
comitiva do PE, com o eurodeputado Pedro Marques, do PS, a Frankfurt, para
reforçar a posição que tem ecoado de Belém a São Bento e da esquerda à direita:
“Já tivemos um aumento significativo das taxas de juro”, pelo que é de “esperar
para ver os efeitos destas subidas”.
A 27 de julho, a taxa de referência voltará a subir 25 pontos base, para os
4,25%, e as divisões de opinião são notórias. Mário Centeno tem estado do lado
dos banqueiros centrais, que sustentam que há riscos de se ir longe demais, e a
sua vice-governadora, Clara Raposo, em entrevista ao Jornal de Negócios, criticou a trajetória: “Não sei se seria
necessário” novo aumento, disse. Do outro lado, está, por exemplo, Joachim
Nagel, governador do Bundesbank, para quem “ainda há muito caminho para fazer”.
Entre economistas, as posições também não se alinham. Vítor Constâncio, ex-vice-presidente
do BCE, defende que o BCE devia ter feito um compasso de espera, quando a taxa
de referência chegou aos 3,25%. Já Ricardo Reis, colunista do Expresso e professor da London School of
Economics, alinha por Frankfurt: “Vai ter de haver mais uma, duas,
possivelmente três ou quatro [subidas]. É isto que é necessário para controlar
a inflação”, disse na RTP.
Quem defende o aumento dos juros argumenta que é preciso trazer a inflação
para níveis próximos de 2% rapidamente, nem que seja necessário impor dor nas
economias, reduzindo consumo e rendimentos. E a meta está ainda longe. Nas
últimas previsões, o BCE aponta para a inflação de 3%, em 2024, e de 2,2%, em
2025. Apesar de os preços estarem a descer, teme-se que a inflação subjacente
(sem energia e alimentação), que perdura mais, se entrincheire.
Entretanto, Pedro Marques indica alguns argumentos que apresentará. Subir
juros pode não ter o efeito desejado. “Não há razão nenhuma para estar a culpar
os trabalhadores por esta situação.” A inflação foi provocada pelos lucros das
empresas. “Alguns setores aproveitaram o surto dos preços da energia e
apropriaram-se de lucros”, pelo que, se continuarmos a aumentar juros, parte do
efeito continua a ser apropriado pelas empresas, sem o efeito pleno na
economia. E as pessoas sofrerão mais.” É certo que a Reserva Federal começou
mais cedo do que o BCE a subir o preço do dinheiro (os juros já vão nos 5% e
podem aumentar mais), mas a Europa não é os Estados Unidos da América (EUA).
Estes “chegaram aqui numa lógica de sobreaquecimento do lado da política
orçamental”, o que não sucedeu na Zona Euro. A inflação que tivemos, neste
período, é quase mimética dos choques exógenos” e as políticas orçamentais ajudaram
a baixar os preços.
Outro argumento para o BCE fazer um compasso de espera é a trajetória da
inflação. Em Portugal, a inflação cai, há oito meses, e já baixou a fasquia dos
4%. Contudo, na Alemanha, subiu 6,4% em junho, fazendo soar os alarmes. E a
taxa de juro na Zona Euro é só uma.
O Governo está a recuar nos apoios aos combustíveis, à medida que o preço
do petróleo desce. Em tudo o mais, além das transferências para as famílias vulneráveis,
medidas de reforço salarial, do IVA zero e dos apoios ao crédito à habitação e
às rendas, admitiu que, em 2024, descerá o IRS de forma mais expressiva e
aumentará os salários na Administração Pública.
***
O surto inflacionista tem tido pouca influência dos
salários, embora as remunerações a acelerar possam criar algum risco de persistência
da inflação.
A década de 1970 ficou marcada pelo choque
petrolífero, espoletando um processo inflacionista, alimentado pelo aumento dos
salários reais, visível no reforço da fatia dos salários no produto interno bruto
(PIB) na atual Zona Euro. Mas, desta vez, não foi assim. Com os salários reais
a cair, têm sido os lucros das empresas a principal fonte das pressões internas
sobre os preços. Um estudo publicado pelo BCE no verão passado, intitulado
“Wage share dynamics and second-round effects on inflation after energy price
surges in the 1970’s and today”, constatava que, até aos primeiros meses de
2022, “os salários reais baixaram”, bem como a fatia dos salários no PIB. E
apontava os lucros das empresas como causa das pressões inflacionistas internas
na Zona Euro.
Desde então, o cenário pouco mudou. No conjunto de
2022, a parcela dos salários no PIB caiu. E nova análise do BCE, recém-publicada,
identifica os lucros unitários (derivados das contas nacionais) como a
principal fonte interna de inflação na Zona Euro. O estudo “How have unit profits contributed to
the recent strengthening of euro area domestic price pressures?” revela que “as
pressões internas sobre os preços, medidas pelo deflator do PIB, aumentaram em
força desde meados de 2021” – evolução para a qual contribuíram os custos
unitários do trabalho e os lucros unitários, com os lucros no papel principal.
“A contribuição dos lucros unitários tem sido particularmente grande ao longo
dos últimos três trimestres [os dois últimos de 2022 e o primeiro de 2023],
representando cerca de 60% do crescimento total do deflator do PIB.”
Os dados sugerem que os aumentos de preços pelas
empresas “excederam os incrementos nos custos, contribuindo para a subida na
inflação interna”. Em termos nominais, a variação homóloga dos custos do trabalho por
hora passou de 3,8%, no primeiro
trimestre de 2022, para 5% nos primeiros três meses de 2023. Em Portugal, a
subida foi de 1,2%, para 6,2%.
Quando a inflação dispara, como os salários não
aumentam tanto, os salários reais caem e os lucros aumentam. Só, num segundo
tempo, com o desaparecimento dos choques originais, os salários começam a subir,
enquanto os preços dos bens e serviços abrandam, diminuindo o contributo dos
lucros unitários e aumentando o contributo dos salários para a inflação.
***
Enfim, a crise incide os mais fracos e privilegia
os fortes. Estes não precisam de garagens para habitarem. Têm mansões e bons
automóveis, mas os pobres sem teto aumentam!
2023.07.08 – Louro de Carvalho
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