A 17 de
julho, o porta-voz do kremlin, Dmitry Peskov, anunciou suspensão do acordo que permitia o escoamento dos cereais
ucranianos através do Mar Negro – um acordo de guerra essencial para o
combate à fome nos países mais necessitados, mas, de acordo com o Kremlin, não
estavam a ser respeitados os seus termos, no atinente à exportação de
fertilizantes e de produtos alimentares russos.
Dmitry
Peskov anunciou a suspensão do acordo em conferência telefónica com
jornalistas, acrescentando que a Rússia voltará ao acordo, quando as suas
exigências forem satisfeitas.
A decisão
foi duramente criticada pela União Europeia (UE), com Ursula von der Leyen a classificar
de “cínica” a posição russa.
O presidente
da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan, mediador do acordo, no verão passado, que já
prometeu falar com Vladimir Putin, disse acreditar que a vontade do presidente
russo era o regresso à sua implementação.
A Rússia
sublinhou que a decisão de suspender o acordo foi tomada antes do ataque à
ponte que liga a Crimeia ao território russo e que Moscovo descreveu como ato
terrorista.
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Na verdade,
a Rússia responsabiliza a Ucrânia pela explosão na ponte da Crimeia – que fez,
pelo menos, dois mortos, como foi confirmado pelas autoridades russas – e diz
que foi aberta uma investigação. Do lado ucraniano, não há confirmação, mas um
porta-voz do Serviço de Segurança ucraniano disse que pormenores sobre este acontecimento
serão revelados, quando a Ucrânia vencer a guerra.
Este é o
segundo grande incidente na ponte de Kerch, em menos de um ano. Em outubro de
2022, a ponte foi parcialmente encerrada na sequência de uma grande explosão,
tendo sido totalmente reaberta em fevereiro.
A ponte, de
19 quilómetros, sobre o estreito de Kerch, inaugurada em 2018, liga os mares
Negro e Azov e a Rússia à Crimeia, região que o Kremlin anexou em 2014, e é a
principal ligação terrestre entre a Rússia e a península da Crimeia, permitindo
a travessia ferro-rodoviária e construindo-se como umas das principais artérias de abastecimento
das tropas russas na Ucrânia.
Foram
divulgados poucos pormenores sobre o incidente, mas fotografias publicadas nas
redes sociais russas mostram danos numa faixa da estrada e um carro com a parte
da frente esmagada.
O tráfego na
ponte foi interrompido, por causa dos relatos de explosões e de mortes. Vyacheslav
Gladkov, governador de Belgorod, confirmou, no início do dia 17 de julho: “Começámos
a nossa manhã com a informação sobre a emergência que aconteceu na ponte da
Crimeia. Todos nós vimos um vídeo de um carro danificado com matrícula de
Belgorod. A informação de que dispomos, neste momento, é a seguinte: uma
rapariga ficou ferida, com ferimentos moderados, e já está sob a supervisão de
médicos. [...] O mais difícil é que os pais dela morreram, o pai e a mãe.”
Por sua vez,
o Comité Nacional Antiterrorista da Rússia diz
que o ataque foi conduzido por dois drones marítimos ucranianos.
Durante a
manhã, Andriy Yusov, porta-voz do departamento de inteligência militar da
Ucrânia, explicava que “a península é utilizada pelos russos como um grande
centro logístico para deslocar forças e bens para o interior do território da
Ucrânia”; e que, “naturalmente, quaisquer problemas logísticos são complicações
adicionais para os ocupantes”.
A Rússia diz que nenhum dos pilares da ponte foi
afetado, mas a extensão dos danos não é ainda clara. O governador Sergei Aksyonov esperava que o tráfego
ferroviário na ponte fosse retomado dentro de algumas horas. O canal do Telegram, Baza, que tem ligações aos serviços de segurança russos, publicou
fotografias que mostram uma faixa da estrada da ponte rasgada e um carro preto
com a parte da frente aparentemente destruída.
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Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), desde que o acordo entrou em vigor, mais de 30 milhões de toneladas de cereais foram escoados a partir dos portos do Sul da Ucrânia.
Porém, a 10 de julho, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, declarou morto o acordo para a exportação de cereais ucranianos, através do Mar Negro, afirmando que esta iniciativa não pode ser melhorada porque “não existe”.
A atual prorrogação do acordo, assinado no verão de 2022, em Istambul, pela Ucrânia e pela Rússia sob a mediação da ONU e da Turquia, terminava a 17 de julho de 2023. A par dos cereais ucranianos, o documento também abrangia a exportação de fertilizantes e de produtos alimentares russos. “Não sei como se pode melhorar algo que não existe”, afirmou o chefe da diplomacia russa, ao comentar o futuro do acordo, na conferência de imprensa do final da sexta ronda de diálogo estratégico entre a Rússia e o Conselho de Cooperação para Estados Árabes do Golfo.
Lavrov disse que, “na parte russa [...], nenhum dos pontos [do acordo] nunca foi cumprido”. “Há muito tempo, muitos meses, ouvimos dos representantes do secretariado da ONU, do secretário-geral [António Guterres], dos que foram encarregados de lidar com o assunto, que fazem esforços desmedidos [...] que não levaram a nenhum resultado”, afirmou o político russo perante os representantes da entidade árabe.
Não obstante, Lavrov observou que, apesar do fracasso da iniciativa, a Rússia está pronta para “satisfazer todas as necessidades, inclusive adicionais”, dos parceiros árabes. “Não há nenhum obstáculo para isso. E nenhuma condição é exigida que dependa de quem não pode cumprir os seus compromissos”, assegurou, numa alusão aos representantes da ONU.
O porta-voz do Kremlin salientou que, para já, “nada mudou em relação ao acordo, pelo que não se pode dizer nada de novo”, frisando que “a situação de facto é bem conhecida”.
Embora não tenha sido contundente a esse respeito, a Rússia tem, repetidamente, sinalizado que não pretende alargar a chamada Iniciativa dos Cereais do Mar Negro, alegando que, por um lado, se tornou um pacto comercial e não humanitário e, por outro lado, o memorando russo continua por cumprir.
Moscovo tem contestado os entraves às suas exportações de fertilizantes e de produtos alimentares, alegando que o seu setor agrícola está a ser prejudicado pelas sanções impostas pelo Ocidente, na sequência da invasão da Ucrânia.
As exigências da Rússia incluem a reintegração do seu banco agrícola, Rosselkhozbank, no sistema bancário internacional SWIFT (Sociedade para as Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais), o levantamento das sanções sobre as peças sobresselentes para a maquinaria agrícola, o desbloqueio da logística de transportes e dos seguros, o descongelamento de ativos e a reabertura do oleoduto de amoníaco Togliatti-Odessa, que explodiu a 5 de junho.
Perante as resistências do Kremlin em renovar o acordo, o que tem acontecido em cada momento de renegociação, várias notícias dão conta de que o presidente turco pode abdicar da assinatura de Moscovo e assumir ele próprio, através das suas forças navais, a escolta dos navios mercantes carregados com cereais no Mar Negro.
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Já a 1 de maio, a Rússia punha em causa o acordo dos cereais, pressionando o levantamento de sanções. E a África assistia à volatilidade de preços em alta. “Há vários bens alimentares cujos preços subiram em flecha. Francamente, tudo isto é um pouco complicado para os países africanos”, afirmou Clement Aka, residente em Abidjan, na Costa do Marfim.
A invasão da Ucrânia, muitas vezes apelidada de “celeiro do mundo”, lançou o pânico no mercado de venda de cereais. Apesar de terem estabilizado, os preços continuam demasiado elevados, para os países que dependem das importações para subsistirem.
Sébastien Abis, investigador do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (IRIS), refere que as principais zonas de compra, a nível mundial, são o Médio Oriente, o Norte de África, a África subsariana e o Sudeste Asiático. Estas quatro regiões representam dois terços, ou mesmo 70%, das importações mundiais de trigo por ano. A Argélia ou a Nigéria dispõem de lucros do petróleo que lhes permite comprarem trigo a valores um pouco mais elevados. Mas a Tunísia, o Mali ou o Sudão, como outros países atualmente instáveis, têm dificuldades em pagar mais pelo trigo no mercado internacional. É um equilíbrio delicado e com pouca margem de manobra: tudo depende da passagem segura dos barcos com cereais ucranianos no Mar Negro. Já por duas vezes, o frágil acordo que garante a circulação ameaçou cair.
Marion Jansen, diretora do Departamento de Comércio e Agricultura da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), salienta que, “sempre que há um debate sobre a renovação ou não do acordo, os preços voltam a tornar-se voláteis” e que “a volatilidade é má para os consumidores, sobretudo para os países pobres e famílias pobres”.
A Rússia dizia que não renovaria o compromisso, se o Ocidente não levantasse as sanções económicas até 18 de maio. E Gennady Gatilov, embaixador russo na ONU, declarou que “o acordo foi prolongado até 18 de maio, para incentivar a ONU a resolver cinco problemas sistemáticos que têm bloqueado as exportações agrícolas da Rússia”.
A UE abriu corredores rodoviários e ferroviários aos agricultores dos países do Leste europeu, a quem o aumento exponencial da oferta deixa em muito maus lençóis. “É uma autêntica segurança para a Ucrânia, e também uma segurança para certos países compradores, que a mercadoria possa passar pela Europa”, considera Sébastien Abis.
A Rússia e a Ucrânia têm grande papel no mercado dos cereais, mas não são as únicas. Os países importadores podem contar com a China, com os Estados Unidos, com o Canadá ou com a Índia. “Se há algo de positivo que saiu desta crise, é que os outros produtores conseguem compensar grande parte do que acontece nos países individualmente”, concluiu Marion Jansen.
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Todavia, nem a Rússia pode esquecer as suas grandes responsabilidades na eclosão do conflito, nem o Ocidente pode deixar de assumir que falhou, ao decretar sanções e mais sanções à Rússia, cujos efeitos recaem, principalmente, sobre a Europa, que vem suportando uma sofrida crise económica e social, por via da crise energética, e sobre os países mais pobres do Mundo.
É certo que podem diversificar-se os mercados, mas é preciso substituir os mecanismos de circulação e de distribuição existentes por novos, o que não se faz com facilidade. E criam-se novas dependências, que usualmente se tornam mais onerosas. A tendência não é ajudar, mas explorar as situações de fragilidade. Entretanto, tem de haver esperança.
2023.07.19 – Louro de Carvalho
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