A operação
da Justiça a personalidades e a sedes do Partido Social Democrata (PSD), salvo
o tom quase displicente com que Rui Rio reagiu ao caso, gerou um raro consenso
à esquerda e à direita: o PSD considera a ação “desproporcional”; e as críticas
são transversais.
A sede do
partido, a sua sede distrital do Porto, a casa do ex-líder e a do
ex-secretário-geral adjunto foram alvo de buscas da Polícia Judiciária (PJ), com
forte dispositivo acompanhado pelo canal de televisão CNN Portugal. Porquê a televisão? Em causa estão suspeitas de uso
indevido de dinheiros público, com verbas pagas pela Assembleia da República
(AR), para as assessorias parlamentares, a serem, alegadamente, utilizadas pelo
partido para funcionários não-parlamentares. Também o ex-secretário-geral adjunto,
Hugo Carneiro (agora deputado) foi alvo de buscas, tendo ficado sem telemóvel e sem computador.
Francisco
Louçã, antigo deputado do Bloco de Esquerda (BE) considerou: “A utilização do
espaço público para criar uma perceção de culpa a alguém que pode ou não ser
culpado tem um efeito cancerígeno na confiança na Justiça.”
Ao Diário de Notícias (DN), o economista justificou a sua opinião, recordando que o
aparato mediático deixa entrever que “há um padrão muito repetido, em vários casos
políticos diferentes”, como o da detenção de José Sócrates, na manga do
aeroporto de Lisboa, em 2014. Porém, não sabe se isso significará a existência de “uma
instrumentalização da Justiça”.
Álvaro Beleza,
presidente da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES) e
membro da Comissão Política do Partido Socialista (PS), sustenta que “estamos
com um ataque às democracias no Mundo Ocidental” e que a intervenção judicial “podia ser mais sóbria”. Todavia, para este
socialista, há uma dimensão mais profunda, que tem a ver com a reforma
da Justiça. Embora confie nos
profissionais da justiça, que “são gente séria e dedicada”, defende que “deve
ser feita uma adaptação do sistema judicial ao século XXI” e que “isso é um
assunto relevante de que toda a gente parece ter medo de falar”, pelo que “os
dois principais partidos têm de tratar deste assunto”.
Também
Francisco Assis, presidente do Conselho Económico e Social (CES), deixou
palavras duras sobre o setor da justiça. “A associação espúria de alguns setores do sistema judiciário com um certo
mundo mediático constitui uma grave ameaça para a democracia”, declarou
em nota à Lusa, no dia das buscas
domiciliárias a Rui Rio.
Em relação
ao caso, Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República (PR), à saída do Centro
Ismaili, em Lisboa, ao início da noite de 13 de julho, considerou que há uma “dupla
natureza” jurídica em relação aos grupos parlamentares, que estudou na tese de
doutoramento, em 1985: “Uma das questões mais interessantes é saber qual a
natureza jurídica dos grupos parlamentares, [se] são órgãos do partido ou do
Parlamento, ou [se] são as duas coisas. Eu cheguei à conclusão [de] que eram as
duas coisas, tal como chegou à conclusão o Tribunal Constitucional (TC), pelo
menos num acórdão antigo que conheço. Esta dupla natureza torna muito difícil
saber o funcionamento e financiamento do dia-a-dia”, afirmou o chefe de Estado,
que insinuou que os estatutos do PSD e do PS perfilham a ideia de que os grupos
parlamentares são órgãos do Parlamento e do respetivo partido.
Hugo Soares,
secretário-geral do PSD, enviou uma carta à Procuradora-Geral da República,
Lucília Gago, sobre a atuação da justiça, que considerou “desproporcional”. À SIC, a procuradora prometeu analisar a
missiva do partido.
O PS
anunciou que vai apresentar uma
norma, na AR, para “esclarecer, de forma clara e cabal”, a gestão de recursos
entre partidos e grupos parlamentares. Segundo disse à RTP João Torres, secretário-geral adjunto,
é importante “fixar” o entendimento sobre este assunto.
Um grupo de
30 deputados do PSD – maioritariamente da ala próxima de Rui Rio – entregou uma
carta a convocar uma reunião de urgência do grupo parlamentar social-democrata,
defendendo que é o grupo parlamentar, a sua dinâmica funcional, os termos da
sua relação com o pessoal de assessoria técnica, a proteção dos seus
componentes, a extensão da liberdade da ação política partidária e da sua
relação com o grupo parlamentar, “a existência ou não de limites à forma como
desempenha a atividade legislativa e o escrutínio da atividade governativa, que
o justificam e exigem amplamente”. Em resposta, Joaquim Miranda Sarmento, líder
parlamentar do PSD, convocou a reunião para 18 de julho.
***
Não li a
tese de doutoramento do PR, mas li os estatutos do PSD e do PS. Obviamente, o
grupo parlamentar (GP) é considerado órgão do partido, tal como a AR legitima,
nos termos da Constituição a organização dos deputados em grupos parlamentares.
A questão não é essa e o PSD não precisa de que o PR venha em seu auxílio. O
problema é a legitimidade ou não de funcionários ou assessores dos partidos poderem
ser pago com verbas da AR.
A Lei do
Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais, aprovada pela
Lei n.º 19/2003, de 20 de junho, cuja última alteração lhe foi introduzida pela
Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril (e Declaração de Retificação n.º
17/2018, de 18 de junho), estabelece no artigo 3.º, de onde provêm as receitas
dos partidos: quotas e outras contribuições dos filiados; contribuições de
candidatos e representantes eleitos em listas apresentadas por cada partido ou coligações;
subvenções públicas, nos termos da lei; produto de atividades de angariação de
fundos; rendimentos provenientes do seu património designadamente,
arrendamentos, alugueres ou aplicações financeiras; produto de empréstimos, nos
termos das regras gerais da atividade dos mercados financeiros; produto de
heranças ou legados; e donativos de pessoas singulares, sujeitos ao limite
anual de 25 vezes (25 x) o valor do indexante os apoios sociais (IAS) por
doador.
O artigo
5.º, que regula a “subvenção pública para financiamento dos partidos políticos”,
estabelece, no n.º 4, que a cada GP, ao deputado único representante de um
partido e ao deputado não inscrito “é atribuída, anualmente, uma subvenção para
encargos de assessoria aos deputados, para a atividade política e partidária em
que participem e para outras despesas de funcionamento, correspondente a quatro
vezes o IAS anual, mais metade do valor do mesmo, por deputado, a ser paga
mensalmente”. E, nos termos do n.º 6, estas subvenções são pagas em duodécimos,
por conta de dotações especiais inscritas, para esse efeito, no Orçamento da AR.
Estas
normas não colidem com a do n.º 1, que estabelece: “a cada partido que haja
concorrido a ato eleitoral, ainda que em coligação, e que obtenha representação
na Assembleia da República é concedida, nos termos dos números seguintes, uma
subvenção anual, desde que a requeira ao Presidente da Assembleia da República”.
Também a
Lei de Organização e Funcionamento dos Serviços da Assembleia da República
(LOFAR), aprovada pela Lei n.º 77/88, de 1 de julho, cuja última alteração lhe
foi introduzida pela Lei n.º 24/2021, de 10 de maio (e Declaração de Retificação
n.º 17/2021, de 4 de junho), estabelece, no artigo 46.º:
Os GP
dispõem de gabinetes constituídos por pessoal de sua livre escolha e nomeação
nos seguintes termos: a) com dois deputados, inclusive: pelo menos um adjunto,
um secretário, um secretário auxiliar e outros funcionários; b) com mais de
dois e até oito deputados, inclusive: um chefe de gabinete e pelo menos um
adjunto, um secretário, dois secretários auxiliares e outros funcionários; c) com
mais de 8 e até 20 deputados, inclusive: um chefe de gabinete e pelo menos dois
adjuntos, dois secretários, dois secretários auxiliares e outros funcionários; d)
com mais de 20 e até 30 deputados, inclusive: um chefe de gabinete e pelo menos
três adjuntos, três secretários, três secretários auxiliares e outros
funcionários; e) com mais de 30 deputados: um chefe de gabinete e pelo menos três
adjuntos, três secretários, três secretários auxiliares e ainda, por cada
conjunto de 25 deputados ou resto superior a 10, pelo menos mais um adjunto, um
secretário, um secretário auxiliar e outros funcionários.
No
início de cada legislatura, os GP comunicam aos serviços da AR o mapa de
pessoal de apoio, com a indicação das categorias e vencimentos; e, no início de
cada mês os gabinetes dos GP comunicarão aos serviços da AR as horas
extraordinárias a processar aos funcionários dos GP.
As
despesas com as remunerações previstas não podem ultrapassar, anualmente, as verbas
que resultam do quadro seguinte: a) GP de dois deputados – 24 x 14 SMN (salário
mínimo nacional) + 6 x 14 SMN por deputado; b) de três a 15 deputados – 45 x 14
SMN + 6 x 14 SMN por cada deputado; c) com mais de 15 deputados – 60 x 14 SMN
mais: 6 x 14 SMN por deputado, para 15 deputados; 3 x 14 SMN por deputado, para
o número de deputados que exceda 15, até ao máximo de 40; 2,25 x 14 SMN por
deputado, acima de 40 e até 80 deputados; 1,8 x 14 SMN por deputado, acima de
80 deputados.
Os GP
podem alterar a composição do mapa de pessoal, desde que daí não resulte
agravamento da despesa global, e como definir o modo e o local de trabalho.
***
Embora o
PS, em resposta ao PR, questione o panorama político, ao propor alterações à lei
de financiamento dos partidos, querendo promover maior transparência e
responsabilidade na gestão dos recursos políticos, a questão está resolvida
pelas leis em vigor.
Concorde-se
ou não – a contribuição privada é muito limitada – e condicionada, a legislação
dá cobertura a que os funcionários dos GP trabalhem para o partido e aufiram remuneração
por esse facto, pois deixa à responsabilidade dos partidos a determinação do número
de funcionários do seu GP, do local e o tempo de trabalho, desde que não ultrapassem
os limites definidos.
Assim, sem
se fazer um juízo de valor sobre a forma de atuar, em si, dos investigadores, intervenção
da PJ, o aparato de que a comunicação social deu nota só revela uma leitura
acrítica da denúncia que espoletou a intervenção, pois os inspetores e peritos,
tal como os procuradores do Ministério Público (MP) devem conhecer as leis.
Não sei
se estaremos perante uma tentativa – intencional ou não – de ilegalização da
política, por via judicial, como admite Pacheco Pereira, ou se estaremos
perante um surto de intervenção no Estado de Direito, por parte de pessoas que olham
para o país através da folha Excel e com a mentalidade justicialista acima da própria
lei.
Poderemos
até estar em presença de um fenómeno demolidor da atual situação: o partido do
governo fragilizado por casos e casinhos (uns com fundamento, outros
mitificados); o grande partido da oposição em terreno movediço; e uma esquerda
quase sem voz. São circunstâncias objetivas propícias à escalada de forças sebastianistas
para, em nome da lei e da ordem, se imporem ao Povo. Não é despiciendo o dito
de Rui Rio: “Se o Presidente da República, a Assembleia e os partidos não tiverem coragem de dizer
‘basta’, haverá algum dia em que alguém vai dizer ‘chega’.”
Entretanto,
debatam-se as ideias, não andemos 60 anos a discutir uma obra, reine o bom
senso e resolvam-se os problemas do povo.
2023.07.14 –
Louro de Carvalho
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