No Evangelho do 17.º domingo do Tempo Comum no Ano A (Mt 13,44-52), recorrendo à linguagem das
parábolas, Jesus exorta os discípulos que façam do Reino de Deus a sua
prioridade fundamental, devendo todos os outros valores e interesses passar para
segundo plano, face a esse tesouro supremo que é o Reino. E isto leva-nos a
repensar as nossas prioridades de vida e os valores sobre os quais a
fundamentamos, na certeza de que o cristão deve construir a vida sobre os
valores assumidos por Jesus.
Com esta perícopa evangélica, conclui-se a leitura do
capítulo dedicado às “parábolas do Reino” (cf Mt 13), em que, recorrendo a imagens e comparações simples,
sugestivas e questionantes, Jesus apresenta o mundo novo de vida e de liberdade
que oferece aos homens, sob o signo de Reino de Deus ou Reino dos Céus.
Em concreto, o trecho em apreço apresenta-nos três parábolas
exclusivas de Mateus, pois não constam dos outros três evangelhos canónicos, embora
apareçam num texto não canónico – o Evangelho de Tomé – mas com variantes em
relação à versão mateana. São elas a do tesouro que um homem encontrou, a do
negociante que, procurando pérolas preciosas, encontrou uma de grande valor e a
da rede que, lançada ao mar, apanha toda a espécie de peixes.
Para melhor entendimento da mensagem de Mateus, é de ter em
conta o contexto da comunidade destinatária deste Evangelho: arrefecimento do entusiasmo
inicial e iminência dos tempos difíceis de perseguição e de hostilidade. Por
isso, Mateus sente que é preciso renovar o compromisso cristão e chamar a
atenção dos crentes para o Reino, para as suas exigências, para os seus
valores.
O trecho evangélico desta dominga pode ser dividido em três
partes, convindo relevar, em cada uma, aspetos e questões que são marcas do
Reino, que não é de pompa e de poderosos exércitos, com cavalos e carros de
combate (tanques, aviões, fragatas, submarinos, mísseis, bombas e drones), mas
do rei que entra, manso e pacífico, na sua cidade montado num jumentinho
obediente, aclamado por crianças e pessoas simples.
Na primeira parte, as parábolas do tesouro e da parábola da
pérola (vv. 44-46) desenvolvem o
mesmo tema e apresentam ensinamentos semelhantes. O núcleo ideativo é, aqui, o
da busca e da descoberta do essencial do Reino de Deus e do seu valor e
importância. Ambas as parábolas sugerem que o Reino pregado por Jesus (mundo de
paz, de amor, de fraternidade, de serviço, de reconciliação) é um tesouro
precioso, que os seguidores de Jesus abraçam, acima de qualquer outro valor. Andando
à procura, encontram o tesouro, acolhem-no, reservam-no zelosamente,
desfazam-se de tudo o que se lhe oponha e adquirem-no. Daí, a alegria que se
sente e se partilha!
Os cristãos são, antes de mais, os que encontraram algo de
único, de fundamental, de decisivo: o Reino. E, encontrando um tesouro como este,
elegem-no como a riqueza mais preciosa, o fim último da própria existência, o
valor fundamental pelo qual se renuncia a tudo o resto e pelo qual se está
disposto a pagar qualquer preço. Mateus sugere, pois aos cristãos a quem destina
o Evangelho (adormecidos na fé morna, inconsequente) que é preciso redescobrir esse
valor mais alto, que dá sentido às suas vidas, e optar decisivamente por ele. O
cristão, confrontado, “pari passu”, com muitos valores e opções, deve sentir
que o Reino é o valor mais importante.
Na segunda parte, surge a imagem da rede que, lançada ao mar,
apanha diversos tipos de peixes (vv.
47-50). Na versão mateana, a parábola apresenta um ensinamento semelhante ao da
parábola do homem que semeou do trigo no seu campo e do inimigo que lá semeou
joio, pela calada da noite. O Reino não é condomínio fechado, onde só há gente
escolhida e santa, mas realidade onde as pessoas são acolhidas com alegria,
correndo-se o risco de o mal e o bem crescerem a par. Deus não tem pressa de
condenar e de destruir. Porque não quer a morte do pecador, dá-lhe o tempo
necessário e suficiente para amadurecer as suas opções e para fazer as suas
escolhas.
O Evangelho de Tomé dá à parábola uma coloração diferente: um
pescador sábio que pesca vários peixes fica só com o maior e lança ao mar os
demais. Aí a parábola contém mensagem alinhada com as duas parábolas da
primeira parte, pelo que alguns estudiosos sustentam que a versão do Evangelho
de Tomé é a versão primeva da parábola da rede e dos peixes. Porém, a nova
referência mateana ao juízo final constitui uma forma de exortação aos irmãos
da sua comunidade, no sentido de escolherem decididamente o Reino e porem em
prática a Palavra de Jesus.
A parábola na versão mateana distingue peixes maus e bons que
se apanham simultaneamente. E, enquanto se recolhem para os cestos os bons,
jogam-se fora os que não prestam. Porém, tiveram de se recolher todos na rede,
caso contrário muitos dos bons ficariam a pairar no mar. E essa operação de
discernimento (avaliação, decisão de exclusão), que se seguiu à operação de
inclusão, não se faz “de ânimo leve”, à pressa, mas “sentando-se”.
Paralelamente, transportando a parábola para as pessoas, é de
advertir que não cabe aos homens fazer a destrinça de bons e maus, mas aos
anjos; não agora, mas no fim do Mundo.
Na terceira parte, Mateus apresenta um breve diálogo entre
Jesus e os discípulos (vv. 51-52), no
qual temos a conclusão de todo o capítulo. Assim, o discípulo é aquele sábio ou
escriba instruído no Reino dos Céus, comparável ao pai de família que tira do
seu tesouro coisas novas e velhas. Assim, o discípulo compreende, acolhe o
ensinamento de Jesus, presta-lhe atenção e compromete-se com ele. Os cristãos
são, pois, convidados a descobrir o Reino, a entender as suas exigências, a
comprometerem-se com os seus valores. A referência ao escriba, que “tira do seu
tesouro coisas novas e velhas”, refere-se aos Judeus, conhecedores do Antigo
Testamento (AT), o “velho”, que são convidados a refletir essas velhas
promessas à luz da Palavra de Jesus, o “novo”. É nessa dialética exigente e
questionante que o discípulo encontra o caminho para o Reino; e, depois de o
encontrar, deve comprometer-se com ele, de forma decisiva, exigente, empenhada.
***
A 1.ª leitura (1 Rs
3,5.7-12) apresenta-nos o exemplo de Salomão, rei de Israel. Ele é o protótipo
do homem sábio – testemunha da sabedoria de Deus, em que participa por
concessão, e precursor do discípulo que saboreia o mistério do Reino de Deus –,
pois consegue perceber e escolher o que é importante, não se deixando seduzir por
valores efémeros. Na verdade, o Senhor apareceu em sonhos a Salomão e
disse-lhe: “Pede o que quiseres”. E Salomão, orante, confessando que fora
colocado no lugar do pai, no meio do povo escolhido, e não sabendo como
proceder, pediu um coração inteligente, para saber distinguir o bem do mal.
A súplica agradou ao Senhor, que lhe disse: “Já que não
pediste longa vida, nem riqueza, nem a morte dos teus inimigos, mas sabedoria
para praticar a justiça, satisfarei o teu desejo. Dou-te um coração sábio e
esclarecido, como não houve antes de ti, nem haverá depois de ti.”
O rei David morreu por volta de 972 a.C., após longo e
fecundo reinado, ocupado a expandir as fronteiras do reino, a consolidar a
união entre as tribos do Norte e do Sul e a conquistar a paz e a tranquilidade
para o Povo de Deus. Sucedeu-lhe o filho, Salomão, com trabalho meritório na
estruturação do reino. Organizou a divisão administrativa do território,
dotou-o de grandes construções (a mais emblemática é o Templo de Jerusalém),
fortificou as cidades importantes, potenciou o intercâmbio cultural e comercial
com os países da zona, incentivou e apoiou a cultura e as artes. Preocupado com
a constituição de uma classe política preparada para as tarefas da governação, recrutou
sábios estrangeiros, sobretudo egípcios, para a corte e rodeou-se de homens que
se distinguiam pelo saber, pela justiça e pela prudência, e que, além de
aconselharem o rei, preparavam os futuros funcionários para desempenharem
funções no aparelho governativo.
A corte tornou-se, pois, um viveiro de sabedoria. Os sábios
coligiram provérbios, redigiram máximas de caráter sapiencial, deram instruções
sobre as virtudes que deviam ser cultivadas para ter êxito e para ser feliz. Redigiram-se
crónicas sobre os reinados anteriores e publicaram-se textos sobre as tradições
dos antepassados. Terá sido então que a escola javista deu à luz algumas das
tradições que terão lugar fundamental no Pentateuco. Não admira que Salomão
tenha ficado na memória histórica de Israel como o protótipo do rei sábio,
“cuja sabedoria excedia a todos os orientais e egípcios” (1Rs 4,30).
Salomão é, historicamente, o primeiro rei que herda o trono.
Os seus predecessores não chegaram ao trono por herança, mas receberam-no das
mãos de Deus, segundo a visão dos catequistas bíblicos. Os teólogos de Israel
sacralizam o poder de Salomão e demonstram que, se governou o Povo de Deus, não
foi só por direito hereditário (contestável), mas pela vontade de Deus.
O trecho em referência pressupõe este contexto. O “sonho de
Gabaon” (cf 1Rs 3,5) é ficção
literária dos teólogos deuteronomistas (grupo que reflete a vida e a história
na linha das grandes ideias teológicas do Deuteronómio) com dupla finalidade:
apresentar Salomão como o escolhido de Javé e justificar a sua proverbial
“sabedoria”.
No AT, o sonho aparece, com frequência, como a forma
privilegiada de Deus comunicar com os homens e de lhes indicar os seus caminhos.
Aqui, há também um sonho: os catequistas deuteronomistas usam este recurso
literário para apresentar Salomão como o escolhido de Deus, a quem Javé
comunica o seu desígnio e a quem confia a condução do seu Povo. Este sonho está
estruturado na forma de diálogo entre Deus e Salomão. Começa por uma interpelação
de Deus, a que se segue a resposta de Salomão: consciente da grandeza da sua
tarefa e das suas limitações, o rei pede a Deus um coração sábio para governar
com justiça. A prece é atendida e Deus concede a Salomão uma sabedoria
inigualável, a que alia os dons da riqueza, da glória e da longa vida (estes
não constam da perícopa em referência).
Antes de mais, o texto deixa claro que, em Israel, o rei é o instrumento
de Deus, o intermediário entre Deus e o seu Povo. É através da pessoa do rei
que Deus governa, que intervém na vida do seu Povo e o conduz pela História.
Mais esclarece que Salomão não concebeu o seu papel como um privilégio pessoal
que podia usar em benefício próprio, mas como um ministério que lhe foi
confiado por Deus, à maneira dos carismas neotestamentários, que Paulo entende
como dons concedidos a uma pessoa para o bem da comunidade. Salomão estava
cônscio de que a autoridade é um serviço a exercer com sabedoria e cujo objetivo
final é a realização do bem comum.
Além disso, os autores deuteronomistas sublinham a qualidade
da resposta de Salomão: não pede riqueza nem glória, mas as aptidões
necessárias e a capacidade para cumprir bem a missão que Deus lhe confiou,
surgindo como o arquétipo do homem que sabe escolher as coisas importantes e
que não se deixa distrair por valores efémeros. E dizer que a súplica de Salomão
“agradou ao Senhor” é exortar os israelitas a optarem por valores eternos,
duradouros e essenciais.
***
A 2.ª leitura (Rm
8,28-30) convida-nos a seguir o caminho de Jesus. Esse é o valor mais alto, que
deve sobrepor-se a todos os outros. O projeto de Jesus não é acontecimento
casual, mas algo que, desde sempre, está previsto no plano de Deus. É o Reino
de Deus presente no meio de nós, apesar de não ser deste Mundo.
Aos que o acolhem, Deus chama-os a identificarem-se com o seu
filho Jesus, liberta-os do egoísmo e do pecado e fá-los, com Jesus, chegar à
vida nova e plena (justificação).
Neste sentido, o apóstolo fala “daqueles” que Deus “conheceu”
de antemão, que “predestinou” para viverem à imagem de Jesus, que “chamou”,
“justificou” e “glorificou”. Não obstante, estes versículos não devem ser
entendidos no sentido de que a salvação que Deus oferece se destina só a um
grupo de predestinados, que Deus escolheu de entre os homens de acordo com
critérios que nos escapam. A teologia paulina é clara: o desígnio salvador de
Deus está aberto a todos aqueles que O querem acolher. O que Paulo sublinha
aqui é que se trata de dom gratuito de Deus, previsto desde toda a eternidade.
***
Assim, urge que acolhamos o Reino que está disponível para
nós, não fechado e exclusivista, mas campo aberto, universal, disponível para a
descoberta, para a procura, para o acolhimento, para a alegria e para discrição
sábia.
2023.07.30
– Louro de Carvalho
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