Todos os
dias, milhões de pessoas, no Mundo são vítimas de tráfico, de trabalho forçado
e de exploração sexual. Só em 2021, foram submetidos a exploração forçada
(trabalho, exploração sexual comercial e trabalho imposto pelos Estados) 27,6
milhões de pessoas.
Esse número
consta do relatório “Trabalho Forçado e Casamento Forçado”, de setembro de
2022, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Organização
Internacional de Migração (OIM) da Organização das Nações Unidas (ONU) e do
Walk Free Foundation, grupo australiano de defesa dos direitos humanos.
Segundo o
relatório conjunto da OIT e da OIM, 17,3 milhões de pessoas foram vítimas de
exploração de trabalho forçado, 6,3 milhões foram vítimas de exploração sexual
comercial forçada e 3,9 milhões foram vítimas de trabalho forçado imposto pelo
Estado, em qualquer dia do ano de 2021. Esses números incluem cerca de 3,3
milhões de crianças sujeitas a trabalho forçado, metade das quais são
exploradas sexualmente para fins comerciais.
A Walk Free
Foundation publicou, a 16 de junho, a sua análise com classificações por países,
na última edição do seu Índice Global de Escravidão (IGE ou GSI, na sigla
inglesa), nos termos do qual 28 milhões de pessoas foram submetidas a trabalho
forçado, no ano passado, enquanto outros 22 milhões foram submetidos a
casamentos forçados. Os casamentos forçados são frequentes nos Estados muçulmanos
e impostos, geralmente, por membros da família. Mulheres, migrantes, refugiados
e outras pessoas em crise são afetadas de forma desproporcional.
O GSI,
estimando que 50 milhões de pessoas, uma a cada 150, viviam na escravidão moderna
em algum momento de 2021 – um aumento de 40 milhões de pessoas, em relação a
2016 – enfatiza a necessidade de combater o tráfico e a escravidão. “A
escravidão moderna permeia todos os aspetos da nossa sociedade”, vincou Grace
Forrest, diretora fundadora da Walk Free, numa declaração de 16 de junho, sobre
o lançamento do GSI, explicando: “Ela [a escravidão] está tecida nas nossas
roupas, ilumina os nossos aparelhos eletrónicos e tempera a nossa comida. Na
sua essência, a escravidão moderna é uma manifestação de extrema desigualdade.
É um espelho voltado para o poder, refletindo quem, em qualquer sociedade, o
possui e quem não o possui. Em nenhum lugar, esse paradoxo está mais presente
do que na nossa economia global, por meio de cadeias de suprimentos
transnacionais.”
O GSI baseia
as suas estimativas em milhares de entrevistas com sobreviventes recolhidas em
pesquisas domiciliares representativas de 75 países. Na sua avaliação, a escravidão
moderna refere-se a situações de exploração em que a pessoa não pode recusar ou
sair, devido a ameaças, a violência, a coerção ou a engano. Inclui trabalho
forçado, trabalho prisional, servidão por dívida, casamento forçado, exploração
sexual comercial forçada e venda e exploração de crianças.
Pessoas que
fogem de conflitos, de desastres naturais, de repressão política ou migram em
busca de trabalho são particularmente vulneráveis.
O GSI, que
inclui o casamento forçado, classifica a Coreia do Norte como a pior: estima-se
que mais de uma em cada dez pessoas esteja em condições de escravidão moderna.
Na Eritreia, estima-se que cerca de nove em cada 100 pessoas sejam escravos
modernos. Cerca de três em cada 100 pessoas, na Mauritânia, são escravas, com
menos proporcionalmente na Arábia Saudita, na Turquia, no Tadjiquistão e nos Emirados
Árabes Unidos. Cerca de uma em cada 100 pessoas, na Rússia, no Afeganistão e no
Kuwait, estão na escravidão moderna.
Segundo o
relatório, mais de metade das pessoas que vivem na escravidão moderna estão nos
países do G20, que ajudam a alimentar a escravidão, importando produtos e
suprimentos que dependem do trabalho forçado. Entre os países do G20, a Índia
tem 11 milhões de pessoas em escravidão moderna, a China tem 5,8 milhões, a
Rússia tem 1,9 milhão, a Indonésia tem 1,8 milhão, a Turquia tem 1,3 milhão e
os Estados Unidos da América (EUA) têm 1,1 milhão.
O tráfico
humano e o trabalho forçado estão mais próximos de casa do que muitos
americanos pensam. O GSI, mencionando o uso de trabalho prisional forçado em
prisões americanas públicas e privadas, adverte que os trabalhadores migrantes,
no setor agrícola, nos EUA e no Canadá, são vulneráveis ao trabalho forçado e
que as cadeias de suprimentos para o mercado dos EUA correm o risco de usar
trabalho forçado. E alguns visitantes dos EUA no Caribe ajudam a alimentar o turismo
sexual, baseado na exploração sexual e no tráfico de menores.
O GSI
classificou os governos dos países em vários fatores relacionados à escravidão
moderna: como os países identificam e apoiam os sobreviventes; como funcionam
os sistemas de justiça criminal, para prevenir a escravidão moderna; a coordenação
e a responsabilidade antiesclavagista dos governos a nível nacional e regional;
como os países lidam com fatores de risco, atitudes sociais e outras
instituições que possibilitam a escravidão moderna; e até que ponto os governo
e as empresas eliminam o trabalho forçado da produção de bens e serviços. O Reino
Unido, a Austrália e os Países Baixos têm as respostas governamentais mais
fortes para a escravidão moderna, seguidos por Portugal e EUA. As respostas do
governo à escravidão moderna são mais fracas no Irão, na Eritreia, na Coreia do
Norte, na Somália e na Líbia.
O
departamento de Estado dos EUA divulgou, em junho, o seu mais recente Relatório
de Tráfico de Pessoas, que avalia países ao redor do Mundo com base em como os governos
trabalham para prevenir e combater o tráfico. Os EUA reconhecem o trabalho
forçado e o tráfico sexual como as “duas formas principais de tráfico de
pessoas”. “Todos os anos, milhões de pessoas são exploradas dentro e fora das
fronteiras”, disse o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, numa
mensagem de apresentação do relatório. “Elas são forçadas a trabalhar em
fábricas por pouco ou por nenhum salário; em culturas de colheita; na labuta em
condições terríveis, em minas, em canteiros de obras e em barcos de pesca; ou
no trabalho em casas particulares. Muitas vítimas são exploradas para sexo
comercial, adultos e crianças.”
O Departamento
de Estado classifica os governos em três níveis, de acordo com o cumprimento
dos padrões mínimos da Lei de Proteção às Vítimas do Tráfico dos EUA.
Para a
classificação de nível 1, os governos devem demonstrar “progressos apreciáveis”
contra o tráfico humano, em cada ano. Os países de nível 2 não atendem aos
padrões mínimos, mas fazem “esforços significativos” para isso. Uma lista de
observação de nível 2 inclui países de nível 2 que não estão a responder,
proporcionalmente, a um número significativo de vítimas de tráfico ou a um
aumento significativo do seu número. Os países de nível 3 não atendem aos
padrões mínimos e “não estão a envidar esforços significativos” para tanto.
Esses países de nível 3 podem enfrentar restrições de financiamento à
assistência externa por determinação do presidente dos EUA. E há 24 governos
classificados no nível 3: o Afeganistão, a Argélia, a Bielorrússia, a Birmânia,
a Camboja, a Chade, a China, Cuba, Curaçao, Djibuti, a Guiné Equatorial, a Eritreia,
a Guiné-Bissau, o Irão, a Coreia do Norte, Macau, a Nicarágua, Papua Nova
Guiné, a Rússia, Sint Maarten, o Sudão do Sul, a Síria, o Turcomenistão e a Venezuela.
A Líbia, a Somália
e o Iémen estão listados numa categoria especial. O governo da Líbia carece de controlo
efetivo sobre grandes extensões de território e o seu sistema judicial não
funciona de modo pleno, desde o derrube de Muammar Kadafi, em 2014. A guerra civil
e a crise humanitária no Iémen dificultam os esforços para obter informações
precisas sobre o tráfico ali, enquanto a Somália continua a enfrentar conflitos
civis e crises humanitárias.
O tráfico
patrocinado pelo Estado é um problema em alguns países. O relatório do
Departamento de Estado dos EUA culpa 11 governos por uma “política ou padrão”
documentado de tráfico humano, tráfico em programas financiados pelo governo,
trabalho forçado em setores do governo, escravidão sexual em acampamentos do
governo ou emprego ou recrutamento de crianças soldados. Esses governos são os
do Afeganistão, da Birmânia, da China, da Eritreia, do Irão, da Coreia do
Norte, da Rússia, do Sudão do Sul, da Síria e do Turquemenistão.
Blinken caraterizou
o relatório do Departamento de Estado como “uma chamada imediata à ação”.
“Enfrentar
um problema global como o tráfico requer uma coligação global, que abranja o
governo, as empresas e a sociedade civil”, disse na sua mensagem introdutória.
“Ao compartilhar recursos e informações, podemos equipar melhor as partes
interessadas da linha de frente, para rastrear e para responder às tendências
de tráfico em evolução. Ao fazer parceria com os sobreviventes, podemos
estabelecer melhor as políticas e as estratégias antitráfico informadas sobre o
trauma. E, ao alavancar a tecnologia, podemos abordar melhor o nexo entre
finanças e tráfico humano e detetar melhor a exploração online.”
***
Quanto a Portugal,
é de referir que é país de origem
(local de recrutamento de vítimas), de destino (local
de exploração de vítimas portuguesas e estrangeiras) e de trânsito (local por onde passam vítimas rumo a outros países,
para serem exploradas) de tráfico Humano.
Os dados divulgados no
Relatório de 2020, do Observatório do Tráfico de Seres Humanos (OTSH), fornecem
as seguintes informações sobre a realidade do TSH em Portugal: um total de
229 sinalizações (sendo 29 menores, com a média de idade de 12 anos); como
país de destino, 80 vítimas sinalizadas (23 das quais,
sinalizadas em Santarém, para fins de exploração laboral na agricultura); como
país de origem, 40 vítimas sinalizadas (Espanha é o país de
presumível exploração mais reportado); e como país de trânsito, três vítimas
sinalizadas (maioritariamente menores de idade, oriundas de países
africanos). As 17 nacionalidades sinalizadas, que são mais representativas das
vítimas sinalizadas, são a indiana, a moldava, a paquistanesa e a romena. Foi confirmado
um total de 36 vítimas.
Os
órgãos de polícia criminal registaram 41 crimes de TSH (menos 40, face a 2019).
Em Portugal, a maior parte das vítimas sinalizadas são do género masculino e adultas. São maioritariamente exploradas para fins laborais. As vítimas do género feminino adultas estão mais associadas ao tráfico para exploração sexual.
Entretanto, o Relatório Anual de Segurança Interna referente a 2022, publicado em março deste ano, revela que houve mais 50 sinalizações, no âmbito do TSF, do que no ano passado, fixando-se o número nas 358. Destas, 235 foram consideradas válidas.
Os
números podem parecer diminutos, mas serão grandes, se considerarmos a dimensão
populacional e territorial do país e a nossa ‘qualidade’ de país civilizado e “de
brandos costumes” (até nos dizemos pioneiros na abolição da escravatura e da
pena de morte). Por outro lado, têm surgido notícias de trabalho escravo em vários
lugares do país, com destaque para o caso de imigrantes em Odemira.
Nos
termos do artigo 160.º, n.º 1 do nosso Código Penal comete crime de TSF “quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar,
aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração,
incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a
escravidão, a extração de órgãos ou a exploração de outras atividades
criminosas”, por “violência, rapto ou ameaça grave”; por “ardil ou manobra
fraudulenta”; por “abuso de autoridade resultante de uma relação de
dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar”; por aproveitamento
de “incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima”;
ou por “obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a
vítima”.
Em
todo o caso, mais do que os números, importa considerar as pessoas, que não podem
ficar em situação degradante, pois a dignidade é prerrogativa de todos e de
cada um.
2023.07. 24 – Louro de Carvalho
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