Logo que Bento XVI, o Papa emérito, foi sepultado na cripta da Basílica de
São Pedro, uma editora italiana lançou os primeiros exemplares do livro Nothing
but the Truth: My Life Beside Benedict XVI (“Nada mais do que a verdade: a
minha vida ao lado de Bento XVI”), pleno de afeto e de admiração por Bento como
pessoa, como teólogo e como papa.
O livro reitera insistência em como Bento XVI renunciou, em fevereiro de
2013, por vontade própria e plenamente consciente do que estava a fazer, e
aborda, uma por uma, algumas das que chama de teorias “absurdas”, que lançam
dúvidas sobre a validade da renúncia.
Apesar de Georg Gänswein deixar claro o total
reconhecimento de Bento XVI ao Papa Francisco como o Pontífice reinante e a
verdadeira afeição e admiração de Francisco por Bento XVI, admite que Bento e Francisco
não tiveram relacionamento tão amigável como o que se tem propalado.
Estava previsto o lançamento do livro, em Língua Italiana, para 12 de
janeiro, pela Piemme, editora que faz parte da empresa Mondadori, mas o texto
foi divulgado aos repórteres no final de 5 de janeiro, após o funeral de Bento XVI.
Gänswein escreveu que Bento ficava triste com as tentativas de o retratar a
ele e a Francisco como oponentes, “especialmente quando a observação vinha de
dentro do Vaticano”.
É certo que eram evidentes as diferenças entre os dois, no estilo e na
abordagem teológica, mas o problema era, “não tanto a existência de dois papas,
um reinante e outro emérito, como o nascimento e desenvolvimento de duas secções
de apoio, cada um afirmando que o seu papa estava certo e o outro errado.
Gänswein repete informações sobre o escândalo “VatiLeaks” de que o mordomo
de Bento XVI, Paolo Gabriele, saiu condenado por roubar e por entregar a um
repórter cartas e documentos papais particulares – caso que descreve como “diabólico” –
e aflora pormenores sobre o que chama “bomba” do papa emérito, dado como coautor
do livro em defesa do celibato sacerdotal do cardeal Robert Sarah, prefeito da
Congregação para o Culto Divino e os Sacramentos.
O livro de Sarah foi publicado em janeiro de 2020, quando Francisco
terminava a sua exortação (então ainda não publicada) em resposta ao Sínodo dos
Bispos para a Amazónia, que lançara a ideia de permitir a ordenação de homens
casados para comunidades remotas da região, o que foi percebido uma
condicionante da decisão papal.
Logo após o desaire das relações públicas por Sarah ter dado Bento como coautor,
sem a permissão de Bento, Francisco disse a Gänswein que deveria dedicar-se, a
tempo inteiro, a ajudar Bento, não precisando mais de cumprir as suas
responsabilidades como prefeito da casa papal.
O arcebispo contou-o ao Papa emérito, que respondeu, “meio a sério, de forma
irónica”: “Parece que o Papa Francisco não confia mais em mim e quer que sejas
meu guardião.”
Contudo, Francisco não o desligou, oficialmente, do cargo de prefeito da
casa papal, para o qual fora designado, em 2003, por São João Paulo II. Apenas
o dispensou do exercício efetivo das suas funções no Vaticano. Não obstante, Gänswein
escreveu que, às vezes, se sentia como “o servo de dois senhores”, sendo o secretário
de Bento XVI, ao mesmo tempo em que servia Francisco como prefeito da casa
papal. “A esperança de Bento de que eu fosse o elo entre ele e o seu sucessor
era um tanto ingénua, porque, já depois de alguns meses (nos dois cargos), tive
a impressão de que entre mim e o novo Papa não havia sido criado um clima de confiança”,
escreveu o arcebispo.
Bento XVI leu, no jornal do Vaticano L’Osservatore
Romano, a decisão de Francisco, em 2021, de restringir as celebrações da
missa pré-Vaticano II (em Latim, segundo o missal de São Pio V, reformado por
São João XXIII), condicionando uma permissão de Bento XVI, em 2007.
Gänswein escreveu que perguntou ao Papa emérito o que pensava da decisão de
Francisco. E ele respondeu: “O papa reinante tem a responsabilidade de tomar
decisões como esta e deve agir de acordo com o que acredita ser o bem da Igreja.”
Todavia, a nível pessoal, viu isso como “uma mudança definitiva de rumo” e
entendeu que era “um erro”.
O Vaticano
não reagiu, oficialmente, às críticas ao Papa argentino, amplamente divulgadas
na imprensa internacional, mas, a 9 de janeiro, o ex-secretário foi convocado para uma audiência a
portas fechadas com Francisco. O conteúdo da conversa não foi
divulgado, mas, segundo fontes fidedignas, o Pontífice estaria desapontado e
pediu discrição a Gänswein.
Neste sentido se entende que, em vésperas do lançamento do livro, Francisco tenha
advertido – aquando da recitação do Angelus
(oração que se recita em recordação do Mistério perene da Encarnação, três
vezes ao dia), que o Papa reza aos domingos e em outros dias especiais – que “a
intriga é uma arma letal que mata; mata o amor, a sociedade e a fraternidade”.
***
A
especulação sobre o futuro de Gaenswein aumentou após a morte de Bento XVI, a
31 de dezembro e aprofundou-se, uma semana depois, com a publicação das
memórias do arcebispo, Nothing But the
Truth: My Life Beside Pope Benedict XVI, em que relata a sua vida ao
serviço de Bento XVI e no desempenho do cargo de prefeito da casa papal, sob o
Papa Francisco, revelando intrigas palacianas, ajustando contas e lançando
Francisco sob uma luz desfavorável, britando a ideia, alegadamente construída, de
que a relação entre Francisco, ativo, e Bento, emérito, havia sido feliz.
Contrariava, assim, o histórico de visitas, algumas com ofertas, de Francisco
ao Papa emérito e os convites para algumas cerimónias, como alguns momentos do
Ano Jubilar da Misericórdia, a canonização de São João XXIII e de São João Paulo
II e, pelo menos, um consistório de criação de novos cardeais.
Gaenswein
parou de trabalhar ativamente como prefeito da casa papal em 2020, após a publicação
do livro do cardeal Sarah, que o colocou em apuros com Francisco, embora tenha
permanecido oficialmente no cargo até 28 de fevereiro. Entretanto, após a morte de Bento XVI, deixou o
Mosteiro Mater Ecclesiae, nos jardins
do Vaticano, onde viveu com Ratzinger até à sua morte (no último dia de 2022),
para se mudar para um apartamento no Vaticano.
O seu futuro
era uma incógnita, com alguns rumores a apontarem para uma espécie de exílio diplomático
na Costa Rica.
O
livro mais recente relata o afastamento de Gaenswein por Francisco, no Vaticano,
e descreve o Pontífice como insincero, ilógico e sarcástico, ao decidir-lhe o
destino.
Por conseguinte, o Vaticano determinou, em junho, o regresso
de Georg Gänswein, atualmente com 66 anos de idade, à sua diocese de origem no
sudoeste da Alemanha, a diocese de Friburgo, regresso que se concretizou a 1 de
julho. A decisão foi tomada pelo Papa Francisco e anunciada, em comunicado do
Vaticano, divulgado no portal de notícias Vatican
News.
De acordo com a Associated
Press, a diocese de Freiburg confirmou que Georg Gänswein deixaria Roma na
primeira semana de julho e que se fixaria naquela cidade alemã. Além disso, afirmou que, atualmente, nenhuma “outra função” lhe fora
atribuída.
A Associated Press
explica que, por norma, todos os secretários papais regressam às suas dioceses de
origem, após a morte do Papa que serviram. Mesmo assim, a agência de notícias
nota que o anúncio do Vaticano poderá mostrar que a relação entre Georg
Gänswein e o Papa Francisco é marcada por alguma tensão, uma vez que nenhuma
nova missão foi atribuída ao arcebispo alemão, que ainda é demasiado novo para
se tornar um prelado emérito, embora não para se reformar como funcionário do
Vaticano.
O
arcebispo de Friburgo, Stephan Burger, teve uma reunião com Georg Gaenswein,
após o seu retorno à Alemanha, disse a arquidiocese de Burger, em breve
comunicado publicado no seu site, em
17 de julho.
Segundo
o arcebispo Burger, é possível que Georg Gaenswein assuma tarefas não de
liderança pastoral, como crismas ou missas comemorativas locais. No
entanto, conduzirá “regularmente” serviços na catedral de Freiburg, como cónego
honorário, a partir deste outono.
***
É
natural que a relação entre dois papas, o reinante e o emérito, seja humanamente
impecável e tensa em termos da orientação disciplinar e até na definição das
prioridades em relação às matérias doutrinais a abordar aqui e agora (não se
conhecem divergências doutrinais). O mal está na tentativa de instrumentalizar um
contra o outro. O cardeal Sarah não tinha que fazer de Bento XVI coautor do seu
livro, nem devia ter publicado, no rescaldo do Sínodo sobre a Amazónia, nada sobre
a disciplina do celibato sacerdotal, tal como o arcebispo Gaenswein bem poderia
deixar de sublinhar o aspeto pessoal de Bento XVI sobre uma determinada medida
tomada por Francisco. Obviamente, ninguém é de ferro para aplaudir medida que
venha contrariar outra que nós hajamos tomado. Porém, Bento XVI reagiu como
devia: Francisco tem o dever de decidir segundo o que julga melhor para a
Igreja.
Por
isso, não admira que a Georg Gaenswein, de momento, não tenha uma liderança
pastoral autónoma, como o pastoreio de uma diocese. Mostrou que não sabe ser
discreto, quando necessário, e não se lhe reconhece ação de vulto para lá do
múnus protocolar.
2023.07.18 – Louro de
Carvalho
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