A 1 de julho, o Papa Francisco agradeceu ao cardeal Luis Francisco
Ladaria Ferrer – em fim de mandato – o trabalho como prefeito do Dicastério
para a Doutrina da Fé (DDF) e de presidente da Pontifícia Comissão Bíblica e da
Comissão Teológica Internacional, e chamou a suceder-lhe, nos mesmos cargos,
Monsenhor Víctor Manuel Fernández, até agora arcebispo de La Plata, na
Argentina (Argentina), que tomará posse em setembro.
Aquando da nomeação, Francisco, citando a exortação apostólica “Evangelii
gaudium”, o documento programático do seu pontificado, declarou, em carta, que
lhe confiava
“uma tarefa muito valiosa”, a de “guardar o ensinamento que brota da fé”, para “dar razão à nossa
esperança, mas não como inimigos que apontam e condenam”.
O Pontífice, frisando que o
dicastério a que Fernández vai presidir,
em outros tempos, usou métodos imorais, pois em vez de se promover o
conhecimento teológico, se perseguiam possíveis erros doutrinais, diz esperar
que o prefeito faça “algo muito diferente”.
Enfatizou que Fernández, antigo reitor
da Faculdade
de Teologia de Buenos Aires, presidente da Sociedade Argentina de
Teologia e
presidente da Comissão de Fé e Cultura do Episcopado Argentino, em todos
os cargos votado pelos pares, teve, assim, valorizada a sua Teologia e o seu carisma.
Como reitor da Pontifícia Universidade Católica Argentina, incentivou a
saudável integração do conhecimento. Como pároco de “Santa Teresita”
e como arcebispo de La Plata, soube pôr o conhecimento teológico em diálogo
com a vida do Povo de Deus.
Considerando que, para as questões
disciplinares – conexas especialmente com o abuso de menores – foi criada uma
secção específica com profissionais competentes, Francisco pede ao prefeito que
dedique o seu empenho pessoal mais diretamente ao objetivo principal
do DDF: “manter a fé”. E sustenta que, para não limitar o sentido desta
tarefa, se deve esclarecer que se trata de “aumentar a inteligência e a
transmissão da fé ao serviço da evangelização, para que a sua luz seja critério
de compreensão do sentido da vida, sobretudo face às questões suscitadas pelo
progresso da ciência e pelo desenvolvimento da sociedade”, questões que,
acolhidas em renovado anúncio da mensagem evangélica, se tornam instrumentos de
evangelização, pois facultam o diálogo com “o contexto atual no que é inédito
na História da Humanidade”.
Além disso, a Igreja “tem necessidade
de crescer na interpretação da Palavra revelada e na compreensão da verdade”,
sem que tal implique impor uma única forma de o expressar. E, se “as diversas
linhas de pensamento filosófico, teológico e pastoral, se deixarem harmonizar
pelo Espírito no respeito e no amor, podem fazer crescer a Igreja”, num
crescimento harmonioso que preservará a doutrina com mais eficácia do que
qualquer mecanismo de controlo. É, pois, bom que a lição de Fernández expresse
que a Igreja “estimula o carisma dos teólogos e o seu esforço de
pesquisa teológica”, desde que “não se contentem com uma
teologia de gabinete, com “uma lógica fria e dura que pretende dominar tudo”,
pois a realidade é superior à ideia. Nesse sentido, deve a Teologia estar
atenta a um critério fundamental:
considerar “inadequada toda a conceção
teológica que, em última instância, questione a omnipotência de Deus e,
sobretudo, a sua misericórdia”. É necessário um pensamento que saiba apresentar, de forma convincente, o
Deus que ama, que perdoa, que salva, que liberta, que promove as pessoas e as
chama ao serviço fraterno.
E isso ocorre, se “o anúncio se foca no essencial, que é o mais belo, o maior,
o mais atrativo e, ao mesmo tempo, o mais necessário”. Há, de facto, uma ordem
harmónica entre as verdades da mensagem; e o maior perigo ocorre se as questões
secundárias ofuscam as centrais.
Ora, tendo em conta esta riqueza, a
tarefa do prefeito implicará particular cuidado em verificar que os documentos
do DDF e de outros tenham adequado suporte teológico, sejam coerentes
com o rico húmus do perene ensinamento da Igreja e aceitem o Magistério
recente.
***
Até à entrada em vigor da
Constituição Apostólica “Prædicate Evangelium”,
que põe todos os departamentos da Cúria Romana a focar-se na Evangelização e
agir sob este foco, a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) era a mais
antiga das nove então existentes e era a sucessora do Tribunal da Inquisição ou
Santo Ofício, instituição que perseguia os hereges – em muitos casos,
condenando-os à morte – e que durou até ao século XIX.
“É mais correto falar de ex-Santo Ofício”, sustenta a vaticanista Mirticeli
Medeiros, pesquisadora de História do catolicismo na Pontifícia Universidade
Gregoriana (PUG), em Roma. “É um herdeiro ‘direto’, digamos assim, mas a linha
de ação é diferente. Não temos mais a prática inquisitorial, não temos mais um
índice de livros proibidos, como naquele período.”
Não obstante, a CDF era um pouco a continuação do Santo Ofício, porque
tinha essa raiz e a ligação com o passado. E “a Igreja não o nega isso”, diz o
vaticanista Filipe Domingues, doutor pela PUG. “Mas não é a mesma coisa mais.
Não é justa essa constante comparação da CDF, como ela é hoje, com aquela
instituição do passado”, sustenta, esclarecendo: “Serve para garantir a unidade
da Igreja em torno das mesmas crenças, da mesma doutrina, da mesma fé. A todos
os temas de moral e de fé, que são os principais temas pelos quais a Igreja
precisa de orientação, conforme se apresentam novos desafios, a Congregação dá
as respostas.”
Domingues ressalta que, se o órgão, no passado, tinha o papal de apontar
e de condenar heresias, no contexto das disputas teológicas, “hoje tem uma
missão diferente”, a de ajudar o Papa a esclarecer como reinterpretar a nossa
fé, conforme mudam os tempos.
O teólogo e filósofo Fernando Altemeyer Junior, professor da Pontifícia
Universidade de São Paulo (PUC-SP), vê mais semelhanças com o Santo Ofício, pois
“continua com procedimentos inquisitórios medievais”, sem transparência e sem
regras democráticas e detém o caráter persecutório e de imposição, ainda que
Paulo VI e João Paulo II quisessem rejuvenescer e mudar a CDF, mas não o
conseguiram, por via da inércia de um poder concentrado. E Francisco ou realiza
esta reforma ou será engolido pela máquina.
As decisões são tomadas a partir de questões dogmáticas e de moral, após
consulta e estudos de peritos e a escrita de minutas e de processos judiciais.
Os inquiridos têm pouca chance de
defesa. “Em geral, são condenados ou entram para uma lista da Cúria e passam a
ser ostracizados” – diz o professor da PUC-SP. – “Atualmente, é uma comissão
que está acima da evangelização e da prática da caridade pastoral. Uma mudança
nevrálgica seria pô-la ao serviço do povo de Deus e das igrejas no mundo, e não
da burocracia eclesiástica e de sua leitura eurocentrada.”
***
A Igreja adotou prática inquisitória já no século XIII, na França. Não era
procedimento unificado: a perseguição aos dissidentes fazia-se de forma e com
intensidade diferente conforme a região.
O Santo Ofício surgiu na Idade Média, entre os séculos XII e XIII, para
combater os cátaros e os valdenses, considerados hereges e apóstatas. A
primeira versão da Inquisição, instituída pelo papa Inocêncio III, voltava-se
contra os cátaros, porque “acreditavam em dois deuses, tal como os gnósticos do
cristianismo primitivo: o bom e o mau, hostis um ao outro desde o princípio da
Humanidade. Para os cátaros, a matéria era essencialmente má, e o homem, um
alienado e condenado a viver no reino da perdição. O objetivo do ser humano era
ir ao encontro da perfeição e participar da comunhão do mundo espiritual. Criam
na redenção dos espíritos e na reencarnação, na transmigração das almas do
homem para o homem e do homem para os animais.
Considerada Inquisição Moderna, a estrutura da Santa Sé que padronizou
esse tipo de ação foi criada no século XVI, pelo papa Paulo III, a 21 de julho
de 1542, estabelecendo uma comissão de seis cardeais com a tarefa de
supervisionar questões de fé.
A criação dessa comissão surge na tentativa de restaurar uma estrutura, a
dos tribunais da Santa Inquisição, caída praticamente em desuso, em meados do
século XIV. Refundada no contexto de Reforma Protestante e estruturada num novo
modelo de Inquisição, mais rigoroso e minucioso, a comissão, denominada Santa
Inquisição Romana e Universal, tinha, a princípio, o caráter exclusivo de
Tribunal para as causas da heresia e de cisma. O papa Paulo IV, a partir de
1555, ampliou-lhe a esfera de ação, tornando-a competente para julgar também
questões morais de diferentes tipos. Em 1571, o papa Pio V criou a Congregação
para a Reforma do Índice de Livros Proibidos. Em 1588, o papa Sisto V promoveu
uma reforma na Cúria Romana, ampliando as atividades da Inquisição “a tudo que
pudesse direta ou indiretamente dizer respeito à fé e à moral”.
Segundo o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo
Fé e Cultura da PUC-SP, a prática inquisitória tem raízes no modo que a Igreja
Católica entendia como necessário para defender o cristianismo. “A Igreja
Católica e as igrejas protestantes representam dois modelos opostos de manter o
cristianismo vivo na História”, diz. “O protestantismo carateriza-se pela
flexibilidade doutrinal e pela subjetividade, que leva – em última análise – à
fragmentação, mas garante adaptação mais fácil às demandas da mentalidade
dominante, em dado contexto. O catolicismo busca estabilidade, universalidade e
objetividade, o que lhe garante unidade e universalidade, mas dificulta a
adaptação a momentos específicos.”
Embora a doutrina não seja estática, o seu dinamismo joga-se entre o
permanente e universal, e o contingente e particular, que se realiza nas pastorais
de fronteira e nas missões em terras não cristãs. É uma tensão que não se resolve
na posição de equilíbrio entre os dois polos, mas no domínio alternado entre
eles. Ora, inquirir é investigar. E era o que fazia o Tribunal da Inquisição,
como faz a Justiça hoje nos pleitos, havendo quem sustente que a Igreja,
segundo os documentos, sempre permitiu ao acusado o direito de defesa, e o
número de condenados é bem menor em relação ao número de acusados, ou seja, a
maioria foi declarada inocente.
***
Todavia, a CDF, com a sua organização até à “Praedicate Evangelium”, é
fruto de reestruturações ocorridas ao longo do século XX. O papa Pio X
reorganizou o órgão e rebatizou-o de Sagrada Congregação do Santo Ofício, em
1908. Na sequência da reforma do Concílio Vaticano II, em 1965, o papa Paulo VI
mudou-lhe o nome para Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Os métodos
foram atualizados e o caráter punitivo da condenação foi substituído pelo
caráter positivo da correção dos erros, juntamente com a custódia, preservação
e promoção da fé. E o Índex dos livros proibidos foi abolido.
No documento “Integrae Servandae”, de 1965, Paulo VI enfatiza que o
objetivo desse ministério da Santa Sé “é tutelar a doutrina e os costumes em
todo o mundo católico”, promovendo e corrigindo, em vez de condenar e de punir.
Contudo, no pontificado de João Paulo II, iniciado em 1978, grupos
progressistas da Igreja, como os da Teologia da Libertação, estiveram na mira
da CDF. Entre os brasileiros investigados e punidos, contam-se os teólogos
Leonardo Boff e Ivone Gebara, a quem foi imposto o “silêncio obsequioso”. O
pontificado de João Paulo II é considerado muito conservador, em que as
certezas da fé, os dogmas da fé e a moral cristã tradicional foram defendidos e
difundidos. De 1981 a 2005, foi prefeito da CDF o cardeal alemão Joseph
Ratzinger, que sucedeu João Paulo II na chefia da Igreja, com o nome de Bento
XVI. O cargo e sua atuação renderam a Ratzinger o apelido de “rottweiler de
Deus”.
Francisco segue por outra via, mística e intelectual, e com outro
princípio articulador: compaixão e verdade, construídas em diálogo poliédrico.
Superação da linha vertical, de cima para baixo, por uma circulação dialógica e
complexa do pensamento e das palavras. Dogma ligado à história viva e não mumificado
em tumbas e em sarcófagos de peritos murados.
Trabalhar nesse dicastério deu visibilidade a Ratzinger no Mundo romano”.
Pela sua trajetória académica, Ratzinger imprimir uma marca à CDF que nenhum
outro prefeito lhe imprimira. Entretanto, João Paulo II fez mais uma reforma na
antiga Inquisição. Em 1988, na reorganização da Cúria Romana, especificou o
funcionamento da CDF, frisando que a sua tarefa é “promover e salvaguardar a
doutrina sobre fé e moral em todo o Mundo católico”. Em 1997, novo documento
ressaltou o caráter de tribunal da congregação, a quem compete “julgar os
crimes contra a fé e os crimes mais graves cometidos tanto contra a moral como
na celebração dos sacramentos”. João Paulo II, em 2001, deu normas sobre como
diversos processos deveriam tramitar na CDF, normas que Bento XVI atualizou, em
2010.
Com a reforma de João Paulo II, o dicastério ficou dividido em quatro
setores: o doutrinal, ou seja, da redação de documentos que tratam da doutrina
católica e de consultoria doutrinal em relação a outros textos produzidos na
Santa Sé; o disciplinar, que examina, por exemplo, desvios de moral por parte
de sacerdotes, aparições atribuídas à Virgem Maria, delitos de sacrilégios,
excomunhões, etc.; o matrimonial, que avalia casos de dispensa do matrimónio
bastante peculiares; e o que cuida dos institutos tradicionalistas que não
aceitam o Concílio Vaticano II, mas se mantêm em comunhão com o papa. Todos os assuntos
são discutidos pelo colégio, que delibera, votando as questões. E todos os
pontos são submetidos ao papa para aprovação.
Analisam se a pessoa tem uma função de ensinamento na Igreja, ou por
exemplo, se um padre, um bispo, um catequista que tem a função de promover a fé
e a moral católica, mas não segue em conformidade. Aí, o dicastério pode tirar
o direito de a pessoa falar em nome da Igreja.
Até ao pontificado de Francisco, a CDF era o ministério número um na
Cúria Romana. Com a reforma que ele vem fazendo, o organismo, em termos de
hierarquia e importância, deu lugar à ao Dicastério para a Evangelização. A
ideia de Francisco é demonstrar que a promoção da experiência com Cristo vem
antes do ensinamento, da doutrina. É uma correspondência ao modelo de
evangelização adotado pela Igreja, na modernidade, que Francisco quer promover.
Posicionamentos recentes da própria CDF revelaram-se progressistas. Por
exemplo, foi sob a égide de Francisco que, em 2018, por exemplo, a Santa Sé
passou a considerar a pena de morte inadmissível, qualquer que seja a situação.
E, face a questões suscitadas sobretudo por grupos conservadores extremistas na
Igreja, questionando a legitimidade do uso de vacinas produzidas mediante
pesquisas com linhagens celulares a partir do tecido de embriões, o dicastério
publicou um documento segundo o qual “é moralmente aceitável utilizar as vacinas
anticovid-19 que tenham utilizado linhas celulares de fetos abortados no seu
processo de investigação e produção”.
Houve exemplos dramáticos de erros de condenação de Joana D’Arc, de Galileu Galilei, de Teilhard de Chardin, de Häring e, sobretudo, do dominicano queimado vivo Giordano Bruno. E, recentemente, mais de 200 teólogos e teólogas foram silenciados no pontificado de João Paulo II, entre os quais Boff, Gebara, Drewermann, Tissa Balasuriya, Congar, Schillebeeckx, Hans Küng, etc. Porém, Francisco tem, com sinais e símbolos, avançado anos-luz mais do que a CDF, pois assume as questões vitais e não ilusões de palavras e de discursos autofágicos. Ao tocar, falar, viver como bispo de Roma, sensível ao que ocorre no mundo, vem construindo uma nova Doutrina da Fé, sem anátemas nem condenações e aberta ao povo.
Agora, o DDF tem a secção doutrinal e a disciplinar. E, sem
esquecer nenhuma delas, o prefeito privilegiará a tarefa doutrinal, fomentando
o diálogo e procurando a Teologia com raiz no Povo. Importa que fulja, acima de
tudo a misericórdia e a ternura de Deus e que, na Igreja, a referência seja
Jesus Cristo, o rosto misericordioso do Pai, e o dinamismo seja o da
sinodalidade, do serviço e do amor fraterno, na perspetiva da Igreja em saída, preferindo
os pobres.
2023.07.15 – Louro de Carvalho
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