Situado na
sociedade de Israel após o exílio e sob influência da cultura helénica, o livro
do profeta Zacarias apela fortemente à espiritualidade messiânica. O Messias é
apresentado sob diferentes formas: rei, pastor e servo do Senhor.
O oráculo tomado como 1.ª leitura da Liturgia da Palavra do 14.º
domingo do Tempo Comum no Ano A (Zc
9,9-10), convida a Filha de Sião ao júbilo pela vinda do Messias, a qual
significa a intervenção definitiva de Deus em favor do seu Povo. A cidade
jubilosa por acolher o cortejo de retorno do seu rei vitorioso sabe que se
trata de um cortejo de vitória, mas sem a pompa e a exibição das cortes
imperiais. Ao invés, a entrada do rei na cidade é singela, humilde e pacífica.
O cavalo de guerra, que simboliza força, poder e violência e que deveria ser
usado como montada para o rei, cede o lugar ao jumentinho, que simboliza
mansidão, serviço, humildade. Este rei pacífico e dócil, que não usa as forças
da agressividade, porá fim às guerras, destruindo os seus instrumentos de
morte, e iniciará a paz universal, que se estenderá até aos confins do
universo.
A História da Salvação revelou, inúmeras vezes, ao longo das
eras, que é através dos pequenos, dos humildes, dos pobres, dos insignificantes
que Deus realiza a sua vontade salvífica – tema a retomar no Evangelho desta
dominga. As primeiras comunidades cristãs viram no cortejo deste rei o anúncio
da entrada de Jesus Cristo em Jerusalém. No Evangelho, Jesus põe de lado a
rigidez da lei e convida a Humanidade, que sufoca sob o peso do pecado, a viver
a simplicidade do amor.
O Livro de Zacarias é um livro profético em 14 capítulos. Os biblistas
são unânimes em reconhecer que, entre os oito primeiros capítulos e os
restantes, há uma diferença tão grande em contextos, estilo, vocabulário e
temática, que se fala de dois livros num e de dois autores diferentes. E,
porque não se conhece a identidade do autor do segundo livro (capítulos 9-14), chama-se-lhe
Déutero-Zacarias, cujos oráculos são situados, pela maioria dos comentadores,
no final do século IV ou nos princípios do século III a.C.. O contexto parece
revelar a época posterior às vitórias de Alexandre da Macedónia, com o Povo de
Deus integrado no império helénico.
O livro está marcado por forte acento messiânico. Na primeira
parte (cf Zc 9,1-11,7), o profeta
anuncia a intervenção definitiva de Deus em favor do seu Povo, na figura do
Messias; na segunda (cf Zc 12,1-14,21),
os oráculos descrevem a salvação e a glória futura de Jerusalém.
O Déutero-Zacarias descreve, no texto em apreço, o regresso
do rei vitorioso. A cidade é convidada a alegrar-se e regozijar-se pois o rei,
“justo e salvador”, chegou humilde e pacífico, a contrastar com as exibições de
força, de poder, de agressividade dos grandes do mundo. Porém, dispõe da força suficiente
para destruir a guerra: aniquilará os instrumentos de morte – carros de
combate, cavalos de guerra, arcos de guerra – e proclamará a paz universal. O
seu reino irá “de um mar ao outro mar” e do “rio” (Eufrates) “até aos confins
da terra”: abarcará todo o mundo.
O Déutero-Zacarias deixa clara a preocupação de Deus com a
salvação do seu Povo. Na fase em que o profeta leva a cabo a sua missão, o Povo
de Deus conhece relativa tranquilidade, mas é um Povo subjugado, manipulado,
impedido de escolher livremente o seu destino e de construir o seu futuro. É
neste contexto que o profeta anuncia o rei justo e salvador, que vem ao
encontro do Povo, para o libertar e para lhe oferecer a paz, ou seja, a
harmonia, o bem-estar, a felicidade.
Deus não perdeu qualidades, nem mudou a sua essência. O Deus
que assim atuou ontem é o Deus que assim atua hoje e que assim atuará sempre.
Ao longo da nossa caminhada de todos os dias, experienciamos, frequentemente, o
desencanto, a frustração, a privação de liberdade. Todavia, somos convidados a
redescobrir o Deus que vem ao nosso encontro, que nos restaura a esperança e
nos oferece a paz.
Uma visão “americanizada” da vida e do mundo sustenta a
necessidade de forças armadas temíveis, do largo investimento em instrumentos
de morte cada vez mais sofisticados (incluindo as armas de fragmentação e as
armas nucleares), para impor, pela força e pelo medo, a paz e a segurança do mundo.
O Déutero-Zacarias diz-nos que a lógica de Deus é outra: Ele chega desarmado,
pacífico, humilde, sem arrogância, sendo, dessa forma, que salva e liberta os
homens.
***
No Evangelho (Mt 11,25-30), depois de
completar a catequese formativa no “discurso da Missão” e de enviar os
discípulos para pôr em prática os valores do Reino, anunciando a Boa Nova,
Mateus coloca-nos diante de Jesus, a ouvir as partilhas dos discípulos que
retornam da missão com as impressões e reações dos que ouviram o anúncio. O
Mestre percebe que os habitantes das grandes regiões e cidades estão cheios das
próprias verdades e se negam a abrir o coração à verdade salvífica do Reino dos
Céus. O Evangelho foi anunciado e rejeitado. As sementes foram lançadas, mas os
diferentes tipos de terreno não permitiram que elas nascessem e crescessem.
O trecho em
referência revela que Jesus sabe que o Evangelho é rejeitado pelos poderosos,
egocêntricos e autossuficientes, mas será acolhido pelos pequenos e considerados
invisíveis e insignificantes; a semente, lançada em terra fecunda, dará fruto
em abundância.
A catequese
desta dominga distribui-se por três momentos. No primeiro, Jesus dá graças ao
Pai por esconder a sua sabedoria dos que pensam já serem sábios e inteligentes
e, portanto, pensarem que não necessitam de nada nem de ninguém. No segundo, complementar
do primeiro, repete a ação de graças por Deus não Se esquecer dos pequenos e
desamparados, que são solícitos aos apelos divinos. Estes “sábios e inteligentes”
mencionados por Jesus são, possivelmente, os fariseus, os escribas e os mestres
da lei, que, ao fecharem-se na observação escrupulosa e obcecada da doutrina,
tornam a Lei fonte única e absoluta da salvação. Já os pequenos são,
primeiramente, os próprios discípulos, vindos da simplicidade, e os excluídos
(publicanos, prostitutas, doentes, órfãos, viúvas, etc.), os que Jesus
encontrava pelos caminhos tortuosos e empoeirados da Galileia e que eram
considerados amaldiçoados pelos “sábios e inteligentes”, por não conhecerem a
Lei na sua vastidão e na sua complexidade.
Nestas
asserções, Jesus esclarece que a sabedoria do Reino não é mero acúmulo de
conhecimento intelectual que adentra pelos olhos, alcança a razão, mas não
penetra e nem transforma o coração. A sabedoria elogiada por Jesus é fruto da
experiência de intimidade com Deus. Assim como alguns cristãos extremistas de
hoje, os mestres da lei, fariseus, escribas viam o conhecimento da lei como
sinónimo de conhecimento da vontade de Deus. Achavam que, por a conhecerem, já
tinham livre acesso a salvação e eram os donos do projeto de Deus. Por isso,
não abriram o coração para acolher o Verbo de Deus; e, fechando-se às propostas
do Evangelho, negaram-se a acolher Jesus e não aprenderam a viver em comunhão
com Deus e com o seu projeto salvífico.
A Lei tomada
como norma absoluta da vida dificultava imenso a vivência da fé para o povo
simples. Se, para alguém com conhecimento académico, era difícil decorar e
viver os 613 mandamentos, tal seria causador de angústia e desolação para
alguém que nem conhecia o Decálogo. Era um jugo escravizador, uma carga
pesadíssima.
Assim, a
última asserção de Jesus apresenta a novidade singular do Evangelho: a salvação
como dom gratuito e incondicional para todos os que aceitarem viver o projeto
que Deus Pai apresenta por meio do Filho. Se o Reino é semente lançada, todos
devem recebê-la; não cabe ao semeador decidir quem deve ou pode recebê-la; ele
lança a semente confiando no mistério da Graça que trabalha dia e noite para
que a semente cresça. A proposta do Reino é para todos, sem exceção: para os
que pensam já ser sábios e entendidos e para os que sabem que não são. Aos que
têm consciência da própria fragilidade e das feridas que o pecado impôs nas
suas vidas e querem a misericórdia para lhes curar as feridas e lhes oferecer
uma vida nova, a única exigência para ter acesso a este Reino é viver segundo o
Espírito Santo. É a isto que vem o convite do Senhor: quem se sente cansado,
venha até Ele, que Ele o aliviará. O seu jugo é suave e a sua carga é leve.
Nos versículos anteriores ao texto evangélico desta dominga,
Jesus havia dirigido veemente crítica aos habitantes de algumas cidades
situadas à volta do lago de Tiberíades (Corozaim, Betsaida, Cafarnaum), que
foram testemunhas da sua proposta de salvação e se mantiveram indiferentes. Demasiado
cheios de si próprios, instalados nas suas certezas e calcificados nos seus
preconceitos, não aceitavam questionar-se, a fim de abrir o coração à novidade
de Deus. Agora, Jesus manifesta-Se convicto de que a proposta rejeitada pelos
habitantes das cidades do lago encontrará acolhimento entre os pobres e
marginalizados, desiludidos da religião oficial e que anseiam pela libertação
que Deus tem para lhes oferecer. Acolhendo a proposta de Jesus e seguindo-O, os
pobres e oprimidos encontrarão o Pai, tornar-se-ão “filhos de Deus” e
descobrirão a vida plena, a salvação, a felicidade.
***
Na 2.ª leitura (Rm 8,9.11-13), continuamos
a acompanhar a catequese do apóstolo Paulo que, na sua maturidade missionária,
tenta despertar os cristãos vindos do judaísmo e do paganismo para viverem sob
o senhorio de Cristo e sem as divisões culturais. A salvação, que é dom divino
e gratuito oferecido a toda a humanidade, chega até nós através de Jesus Cristo
e atua em nossa vida pelo Espírito Santo. Cabe a cada um aceitar livremente
viver esta realidade salvífica. Aqui, são Paulo faz novamente uso das suas famosas
analogias de oposição: o Espírito e a Carne. Viver segundo a carne é viver
afastado de Deus e fechado à sua Graça, construindo projetos de egoísmo e
distantes dos valores do Reino. Ora, insistir em tais projetos produzirá morte
e destruição. Porém, viver segundo o Espírito é viver em permanente atitude de
escuta da Palavra, na abertura e na obediência ao desígnio divino e na doação
da própria vida, como ensinou e viveu Jesus. Ou seja, é ter o coração decidido
a fazer parte da comunidade dos discípulos e acolher a proposta do Reino do Pai
na pessoa de Jesus Cristo.
Acolhendo a
pessoa de Jesus e fazendo-se seus discípulos, todos passarão a ter como lei
absoluta o Amor, porque conhecerão a verdade do coração de Deus. Muitos presumirão
ser por demais arriscado ter como instância normativa da vida o amor, já que
vivemos numa sociedade que perdeu o sentido de tão sublime palavra. Todavia, é
preciso estar atento: o parâmetro de que falamos não é mera afetividade
interesseira que, muitas vezes, se disfarça, pretensiosamente, de pura
gratuidade; a norma essencial para ser discípulo e verdadeiramente humano é o
Amor que Se doou por nós na Cruz.
E quem ama
como Jesus conhece perfeitamente a norma moral porque o amor é a plenitude da
Lei (Rm 13,10).
Com efeito, “o sentido último de toda a norma moral é a caridade; toda a norma moral
não exprime senão uma exigência da verdade do amor” (São João Paulo II).
É aqui que o fardo pesado se torna um jugo suave e leve, porque todo aquele que
acolhe o Reino e se torna discípulo de Cristo tem a certeza de que está a ser
olhado por um coração manso e humilde (Mc 10,21), o
mesmo coração que nos contemplará no fim dos tempos, pois, no “entardecer de nossa vida,
seremos julgados pelo Amor” (São João da Cruz).
Os corações
sinceros e agradecidos acolhem o Reino e testemunham-no.
2023.07.09 – Louro de Carvalho
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