O
ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, em entrevista à TSF e o ao Jornal de Notícias
(JN), deixou críticas à atuação dos
deputados na comissão parlamentar de inquérito (CPI) à Transportes Aéreos
Portugueses (TAP), o que mereceu resposta contundente do próprio presidente da
CPI, o deputado socialista António Lacerda Sales, no que foi secundado pelas
deputadas socialistas, Alexandra Leitão e Isabel Moreira e por deputados do
Chega e do Bloco de Esquerda (BE).
“Acho que a transformação destas inquirições em noites de
inquirição sem paragem, em saber se falou ao telefone às 10 ou 10h05, em que os
deputados são uma espécie de procuradores do cinema americano de série B da
década de 80, e que, depois tudo isto, se transforma e é prolongada numa
telenovela ou naquele género de comentário, como se comenta os ‘reality shows’
nos canais noticiosos à noite, se isso não contribui igualmente para a
degradação da imagem das instituições e da democracia”, disse o governante, que
também criticou políticos, comentadores e jornalistas, pois “não percebem o mal
que fazem ao, por um lado, alimentar[em] o discurso apocalíptico sobre o
funcionamento das instituições” e por terem “uma leitura da realidade política
como se houvesse sempre um ciclo de apocalipse de 24 horas, que, depois, é
substituído por outro ciclo de apocalipse nas 24 horas seguintes”.
Apesar de entender que as CPI “têm
desempenhado um papel importante na valorização do Parlamento”, sustenta que devem
ser ainda mais valorizadas num cenário de maioria, pelo que “há uma reflexão a fazer
sobre a relação desta comissão de inquérito, a dinâmica comunicacional em torno do Parlamento e o papel dos
deputados”. E denuncia “as
inquirições prolongadíssimas pela noite dentro, sem pausa, o tom inquisitório
das perguntas [e] o tipo de preocupação com um tom telenovelesco que alimenta
um ciclo interminável de comentário”.
A isto o
presidente da CPI reagiu, em declarações à Lusa: “Isto parece-me
uma falta de respeito pelo trabalho dos senhores deputados, da comissão e do
próprio Parlamento. Relembro que o Governo responde ao Parlamento. Nenhum
político está isento de respeitar as instituições, por maioria de razão o Parlamento,
especialmente os ministros.”
Lacerda Sales, depois de frisar que os deputados fizeram um
“esforço de muitas horas e de muitos dias” – “mais de 187 horas de trabalho,
mais de 40 audições, muitos requerimentos e muita documentação” – e de referir
que, enquanto presidente da CPI à TAP, lhe cabe defender a “comissão e a
instituição Parlamento” e disse aguardar o ministro “se retrate destas
declarações”.
Porém, Pedro Adão e Silva, longe de se retratar, reafirma tudo e
dispõe-se a elaborar mais.
***
Alguns acusam o ministro da Cultura de ter faltado ao respeito ao
Parlamento, de infringir o princípio da separação dos poderes e de ignorar o
funcionamento do das CPI e do próprio Parlamento, tal como tentam colá-lo ao
núcleo político do Governo. E o governante, sabendo que o Governo emana e
depende do Parlamento, considera que em nenhum lugar está escrito que os
membros do Governo perdem o direito cidadão de escrutínio e de crítica.
Penso que o Ministro tem razão na crítica que dirige a alguma
atuação dos deputados, por exemplo, quando branqueiam a responsabilidade da
presidente da comissão executiva da TAP; quando esmiúçam pormenores
irrelevantes para o apuramento da verdade e só da verdade; quando insistem em
condenar a intervenção dos serviços de informação e segurança (SIS), que
responderam na comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e
Garantias; quando tentaram transformar o ex-adjunto do ministro das
infraestruturas num quase-herói; ou quando tentaram transformar uma
responsabilidade política em responsabilidade criminal, cuja alçada não é da
CPI.
Contudo, a Pedro Adão e Silva, que não terá ficado sensibilizado
por todos os itens de crítica aqui apontados, não parece ter ficado incomodado
com a indisponibilidade dos deputados do Partido Socialista (PS) para
discutirem factos relevantes da TAP conexos com o objeto da CPI, mas que não
ocorreram no horizonte temporal definido pela CPI (por exemplo, eventuais
indemnizações a antigos administradores, reuniões preparatórias autorizadas
pelo ministro das Infraestruturas da presidente da TAP com o grupo parlamentar
do PS, etc.). E não criticou a lenta e ambígua cooperação de vários ministros
com a CPI, bem como o PS por não querer explicar a intenção da reprivatização
da TAP, contrariada em carta de cidadãos bem fundamentada.
Por último, o ministro, em meu entender, excedeu-se nos termos da
crítica, por exemplo, ao chamar aos deputados “uma espécie de procuradores do
cinema americano de série B da década de 80”, ao assemelhar às “reality shows”
alguns comentários na CPI ou ao falar de “tom telenovelesco” ou de “discurso
apocalíptico”.
***
Criticar os comentários do ministro com base na separação dos
poderes ou na independência dos órgãos de soberania não passa de um exagero. O
sistema de contrapesos implica a moderação da tentativa de hegemonia de algum
dos órgãos do poder político, bem como a não ingerência de uns nos processos de
atuação dos outros. Porém, não prejudica a cooperação e a interdependência –
antes as postula –, bem como o escrutínio e a crítica. Ora, se Pedro Adão e
Silva tivesse produzido tais comentários antes de os trabalhos da CPI terem
chegado ao fim, teria desrespeitado a CPI e a Assembleia da República (AR); e,
se falasse, então, em nome do núcleo político do Governo, incorreria em
ingerência. Assim, o desrespeito consiste apenas na evitável utilização de
alguns termos e expressões.
Muitas vezes, os operadores do judiciário alijam para “os
políticos” a responsabilidade por aquilo que funciona menos bem na Justiça,
invocando a falta de meios (e os juízes aliam o sindicalismo laboral à
soberania do órgão que integram); e, escudados na norma constitucional de que “as
decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e
privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades” (artigo 205.º,
n.º 2, da CRP – Constituição da República Portuguesa), não gostam das críticas
dos demais órgãos, nem das dos cidadãos, que são perfeitamente legítimas, como
são as das partes, mesmo na fase processual (que têm direito a reclamação, a
recurso e a aclaração).
Embora o Governo seja responsável perante o Presidente da
República (PR) e perante a AR (ver CRP, artigo 190.º) e o primeiro-ministro (PM)
seja responsável perante o PR e, no âmbito da responsabilidade política do
Governo, perante a AR (ver CRP, artigo 191.º, n.º 1) – tal como os ministros
são responsáveis perante o PM e, no âmbito da responsabilidade política do
Governo, perante a AR (ver CRP, artigo 191.º, n.º 2) – é deprimente como os
deputados destratam, às vezes, o PM e os ministros. É óbvio que não ficam sem a
respetiva réplica. Porém, não havia necessidade.
Por outro lado, embora os membros do Governo devam comparecer na
AR, para responderem a perguntas e a pedidos de esclarecimento dos deputados (ver
CRP, artigo 177.º, n.º 2) e a comparecer nas comissões, quando tal seja
requerido (ver CRP, artigo 177.º, n.º 3), os deputados usam e abusam desta
janela constitucional, às vezes, solicitando explicações que nada adiantam.
É claro que um governo de maioria tenta-se a impor as suas
propostas à AR, mas também a AR tem legislado contra governos de minoria, com o
aval do PR, mesmo contrariando a lei-travão, constante do artigo 167.º, n.º 2,
da CRP, que inibe os deputados de proporem referendo, lei ou alteração de lei
que envolva, no ano económico em curso, aumento de despesas ou diminuição de
receitas do Estado previstas no Orçamento. Só o Governo pode tomar essa
iniciativa legislativa, que a AR aprovará ou não.
O PR tem sido useiro e vezeiro no condicionamento do Governo,
muitas vezes, em público, como, embora, menos vezes, se tem pronunciado
publicamente sobre temas em processo legislativo. E até acenou com a dissolução
parlamentar, caso os deputados não aprovassem o Orçamento do Estado para 2022,
em momento em que a AR discutia a proposta de lei do Governo.
Recentemente, o Ministério Público (MP) e o Conselho Superior da
Magistratura (CSM) pronunciaram-se publicamente sobre inconstitucionalidades da
proposta de lei de perdão e de amnistia em discussão na AR.
O ministro João Galamba foi apontado como não tendo respeitado a
independência da comissão técnica independente (CTI) para estudo da localização
do novo aeroporto, por ter dito que Santarém fica longe de Lisboa. Ora, a CTI
não ficou menos independente por isso. E o ministro não pode deixar de fazer
aviso à navegação, quando necessário. A CTI não é órgão de soberania.
Enfim, parece que os argumentos do respeito e da separação de
poderes são invocados por quem está interessado em arremessá-los como arma
política. De resto, políticos que nunca feriram a separação de poderes, não
tiveram em conta a interdependência ou não respeitaram os órgãos de soberania,
atirem a primeira pedra!
Todavia, é preciso assentar em que a não ingerência durante os
processos de atuação não impede, “a posteriori[u1] ”, o necessário escrutínio e a
crítica, embora com o normal comedimento nos termos.
A rejeição do escrutínio faz-me lembrar o caso do comerciante que,
vendo que um frade estava com relutância em pagar a importância estabelecida,
vociferou: “O irmão paga e não bufa!” Porém, o frade retorquiu: “Eu pago, mas
bufo!”
2023.07.13
– Louro de Carvalho
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