A nomeação do novo prefeito do
Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF) – teólogo inquirido pela sua antecessora,
a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) – e a carta que o Papa lhe dirigiu levam-nos
a acreditar na inauguração de novo rumo para a guarda da fé.
Segundo Andrea Grillo – filósofo e
teólogo italiano, leigo, especialista em liturgia e pastoral –, “durante séculos
contamos com um exercício de razão teológica que se limitou a ‘condenar os
erros’ e que encontrou nisto a sua razão de ser”,
pelo que “não será fácil adquirir imediatamente um novo estilo”. Com efeito,
Santo Agostinho considerava que, na aprendizagem, somos guiados pela autoridade e pela razão, mas com a primazia
da autoridade, no plano temporal, e a prioridade da razão no plano substantivo.
E foi isto que, levado ao extremo, configurou o que se diz “dispositivo
Ratzinger”, nos fins do século XX, que urge superar, para recuperar a
relação dinâmica entre tradição e História, entre tradição e consciência,
segundo a índole pastoral do Concílio Vaticano II e que a CDF, como dispositivo
de bloqueio, impediu.
Uma carta a acompanhar a nomeação de
um prefeito é ato singular, mas o conteúdo torna-a paradigmática, ao reconhecer
que o dicastério em causa “usou métodos imorais”, pois, “em vez de promover
o conhecimento teológico”, perseguia possíveis “erros doutrinários”. Ora, o
Papa espera que o prefeito faça, “ definitivamente, algo muito diferente”.
O sistema de bloqueio vem de décadas.
Porém, a melhor Teologia pós-conciliar pedia a alteração do modo de agir na
tarefa de guardar a fé, primeiro, do Santo Ofício e, depois, da CDF – o que era
difícil, já que, durante séculos, a partir da Idade Moderna, cada
Estado se dotou de um órgão de controlo do conhecimento.
Todavia, com o nascimento da sociedade liberal, desapareceram, nos Estados, o Índice
de Livros Proibidos e o órgão de salvaguarda do conhecimento. Só
a Igreja preservou esse controlo, embora tenha abolido o Índice, subjacendo ao
controlo a ideia de que a liberdade de consciência é pecado.
Após o Vaticano II, houve um lento
movimento rumo à revisão, atribuindo, ao menos formal, ao processo de censura um
procedimento parcialmente controlável, com garantia de defesa para as partes
investigadas. Porém, em grande parte, eram procedimentos inquisitoriais, em
busca de erros e de inimigos. Era difícil influenciar o modo de a Congregação fazer
Teologia.
É claro que havia aqui imoralidade,
desde logo na forma como as pessoas eram tratadas. Grandes autores foram
investigados, bloqueados, impedidos de publicar e de lecionar. Porém, a parte
mais grave não atinge os indivíduos, que sofreram injustamente, mas as ideias,
tal como foram consideradas, ignoradas ou eliminadas. Uma das atitudes mais
imorais dos últimos 40 anos da CDF é a que tentou bloquear
qualquer discussão real. Onde havia um problema, era questão de o negar e
trazer a solução de volta a um nível tão inatacável como vazio.
Em plena pandemia, uma parte da CDF perdeu
tempo a reformar o rito de Pio V, confirmando a coexistência de duas
formas rituais do rito romano, contra todas as evidências teológicas de que a
CDF deveria ter agido de forma diferente. Por ocasião dos 50 anos do Concílio
Vaticano II, em 2012, uma nota sugeria que um aniversário
igualmente importante fosse o 20.º aniversário do Catecismo da
Igreja Católica (CIC), pelo qual o Concílio poderia/deveria ser lido.
Ainda antes, uma nota resolveu, negativamente, a extensão ao diácono da
ministerialidade da unção dos enfermos, recorrendo a citação da carta do Papa
Inocêncio I ao bispo de Gubbio, mas
eliminando dela as palavras que se teriam oposto à decisão tomada. Era negar
todos os movimentos, nos planos litúrgico, sacramental, institucional, a ponto
de pôr em jogo a obediência à fé, de modo a preservar as soluções do
passado sem possibilidade de mudança, que sempre se apresentava como ameaça à
fé.
Esta função indevida é assumida
pela CDF após o Concílio Vaticano II,
segundo o qual guardar a fé significa fazê-la caminhar
pela História, fazê-la criar novas evidências, permitir-lhe integrar
novas culturas e expressar novas sensibilidades. Uma CDF que se acostumou a
julgar tudo com o manual do CIC talvez tenha terminado
com a carta ao prefeito. Há décadas precisamos de uma instituição que permita o
crescimento da fé no diálogo, não na censura.
Já o Concílio Vaticano I passou
da ideia de compor uma suma dos erros modernos para um novo caminho, que o Vaticano
II ampliou e articulou melhor, mas a inércia do Santo
Ofício tem perpetuado uma identidade católica que só pode ser
salva, se condenar erros. Cabe ao novo prefeito “promover o
conhecimento teológico”, algo que não se identifica, antes de tudo,
com atos de condenação. Novo prefeito e novo estilo podem valorizar o precioso
trabalho que uma parte da Teologia, muitas vezes independentemente dos desejos
vindos de Roma, foi capaz de elaborar por 40 anos, pelo
menos.
Porém, a superação do dispositivo de
bloqueio diz respeito, de forma mais ampla, a um modo de interpretar a função
do magistério em relação à vida da Igreja. Enfim, é preciso britar o bloqueio
que marcou os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI, dando as mãos
a Francisco.
A partir da década de 1970,
difundiu-se, no discurso magisterial católico, um modelo de argumento que
garantiu a paralisia da orientação para a reforma e para os processos de
atualização que o Concílio Vaticano II reintroduziu na
vida da Igreja. É um estilo magistral, que se baseia numa estratégia
paradoxal: ao negar a sua autoridade, está a mantê-la totalmente.
No debate eclesial surgido a partir
das palavras proféticas de Francisco sobre a “Igreja em
saída” e sobre a “superação da autorreferencialidade”, ainda não se tinha compreendido
como tal prioridade, que o Papa enunciava desde os primeiros dias do seu
ministério – e que estava presente no seu texto apresentado à Congregação
dos Cardeais, antes do conclave – exigiria uma profunda revisão
do estilo com que a Igreja pensa e age, frente ao poder e à autoridade. Para
poder “sair da autorreferencialidade” e tornar-se “heterorreferencial” – isto
é, para não se pôr no centro a si própria, mas o Outro e
o outro –, a Igreja deve reconhecer que está
investida de autoridade real e eficaz, ou seja, deve confiar na possibilidade
de intervir, autoritariamente, na doutrina e na disciplina, no que pensa de si
e no que faz consigo, sem ceder à tentação de “impedir um repensar”, talvez em
nome da fidelidade à tradição. Se a Igreja pensa que o modo de ser fiel ao
Evangelho é continuar como antes – doutrinária e disciplinarmente –
convencer-se-á de que deve permanecer imóvel para ser ela. Fará da imobilidade a sua
obsessão.
Ora, Francisco quis responder a esta
tentação com dez anos de uma palavra profética, sobretudo para persuadir
a Igreja e o Mundo de duas
coisas: a fidelidade é mediada pelo movimento, pela
conversão, pela saída à rua, não pela estagnação, pelo medo e pelo fechar-se dentro de
muros; e, para se mover, precisa de reconhecer a autoridade de estar
na História da Igreja e da salvação de forma participativa e ativa, não como
espectador mudo e passivo ou como simples notário.
Todavia, este quesito encontra
resistência na inércia do modelo a superar e em alguns clichés, entre os quais
sobressai a redução da
autoridade à “renúncia à autoridade”, que se exprime na fórmula “non possumus”
(não podemos), constituindo um dos pontos-chave do magistério negativo,
autolimitação do magistério, mas que funciona como garantia da autorreferencialidade
eclesial, tendo entrado, com força, na experiência eclesial das
últimas décadas, em particular a partir do fim da década de 1970.
Há, no cerne dessa argumentação, um
raciocínio artificial, uma espécie de falácia, atribuível a Joseph Ratzinger,
vigente de 1977 a 2012. É um dispositivo teórico que atinge,
com indiscutível fineza retórica, um resultado pré-estabelecido: bloquear toda a
mudança e fazer prevalecer, afetivamente, e não conceitualmente, a primazia do
antigo sobre o moderno.
A contribuição desse modelo de
pensamento diz respeito, primeiro, ao arcebispo Ratzinger;
depois, ao prefeito Ratzinger; e, finalmente,
ao Papa Ratzinger. Não é fruto do “primeiro
Ratzinger”, livre de compromissos pastorais e capaz de estar no
desafio da reforma conciliar, mas do Ratzinger impressionado pelo “Maio de 68”
e revestido de responsabilidades crescentes a nível diocesano e, finalmente, a
nível da Igreja universal. E o cerne do argumento é fruto de indiscutível
competência teológica e da abdicação da razão, para dar espaço a um apego,
indispensável e assumido como uma auctoritas indiscutível, a
ponto de colar à “constituição divina da Igreja” apegos transformados em atos
de fé necessários.
Por isso, se atribui a tal raciocínio
a qualificação de dispositivo, pois não explica, racionalmente, mas corrobora,
retoricamente, e impõe, juridicamente, uma solução que não tem base sólida, a
não ser no afeto, pelo que evapora toda a instância
legítima de mudança, contrapondo-a, afetivamente, contra a tradição. Assim, o
raciocínio funciona, antes de tudo, como perfeito suporte teórico, quase como axioma
inquestionável, afirmando uma estrutura resistente e imóvel da Igreja, ante um
Mundo ameaçador e traiçoeiro, a que a Igreja não deve se curvar. Recuperando
temas e motivos do antimodernismo, o dispositivo
funciona como bloco contra um Concílio Vaticano II percebido,
não como recurso, mas como deriva.
A carta pastoral “Primeira
Confissão e Primeira Comunhão das Crianças” (1977), inverte o
sentido da tradição, para garantir a sobrevivência da práxis dita
mais tradicional, afirmando o primado do sacramento de cura sobre o sacramento
de iniciação, em tensão com o Concílio de Trento. Ratzinger usa a Didachê para afirmar o primado
da confissão individual sobre a comunhão eucarística – uso da auctoritas
anacrónico e sem evidência histórica.
E. W. Boekenfoerde questionou certo
modo de entender a doutrina eclesial em relação à liberdade da
Teologia e levantou dúvidas sobre a legitimidade de normas como a que define os
deveres do teólogo em relação ao magistério eclesial. Neste campo, o Código de
Direito Canónico (CDC) de 1917 (cânone 1324) estabelece: “Não basta
evitar a heresia, mas é preciso fugir dos erros que nela entram e observar as
disposições com que a Santa Sé proscreve e proíbe as más opiniões.” E o CDC de
1983 (cânone 752) reza: “Não assentimento de fé, mas religioso obséquio de
inteligência e vontade deve ser prestado à doutrina que o Sumo Pontífice ou o
Colégio dos Bispos, ao exercerem o magistério autêntico, enunciam sobre a fé e
os costumes, mesmo quando não tenham a intenção de proclamá-la por ato
definitivo; portanto os fiéis procurem evitar tudo o que não esteja de acordo
com ela.”
Passamos de uma leitura negativa para
uma leitura positiva do magistério e, portanto, para uma implementação radical do dispositivo de bloqueio,
pois obriga o teólogo a permanecer em silêncio, em relação à expressão magisterial.
Juridicamente, ou elogia ou se cala.
Com a carta Ordinatio
sacerdotalis, de que Ratzinger foi o grande inspirador, João
Paulo II declarou que “a Igreja não tem, de modo algum, a faculdade de
conferir a ordenação sacerdotal às mulheres”. Com uma declaração de “não
autoridade”, de que o prefeito esclareceu a natureza
não infalível, encerrou a questão, sem excluir que outras ordenações sejam
viáveis. E reconhece, embora não infalivelmente, uma tradição infalível. A
autoridade é prerrogativa do passado.
Em 2001, J. Ratzinger
inspirou a quinta Instrução sobre a Reforma Litúrgica Liturgiam authenticam, de resultou nova
versão do dispositivo de bloqueio, com a afirmação do primado
do Latim sobre as línguas vernáculas. O efeito dessa teoria foi duplo: a
paralisia da relação entre periferia e centro, na gestão das traduções litúrgicas,
e o esquecimento de que a vida eclesial não pulsa nas veias do latim, mas nas
línguas nacionais.
Na Páscoa de
2012, Bento XVI, em carta aos bispos alemães, sobre a questão do “pro
multis”, destacou a força do dispositivo de bloqueio: a tradução “fuer
viele (por muitos) impôs-se, afetiva e autoritariamente, enquanto no plano
conceitual era contraditada pela catequese que explicava que, “por muitos” significa
“por todos”.
A última etapa do caminho efetivo do dispositivo
encontra-se em 2007, com o motu proprio Summorum
Pontificum, pelo qual se cria um paralelismo de formas rituais do rito
romano, despojando-se da autoridade para orientar a liturgia eclesial
nos moldes da Reforma Litúrgica e restaurando os
ritos que a Reforma queria superar, sob a capa da denúncia das limitações e
distorções desta. Assim, o Magistério autolimita-se, perde poder.
Portanto, a Igreja não
reconhece nenhum poder da Reforma. O que foi em si mesmo perpetua-se,
sem possibilidade de orientação ou de conversão. E um princípio argumentativo,
em si negativo e puramente a-histórico, dá origem a graves efeitos
históricos: desloca-se o controlo dos bispos sobre a prática litúrgica
para o de um órgão central, a Comissão Ecclesia Dei. O dispositivo
de bloqueio não parou: bloqueou o desenvolvimento da Reforma e
gerou o “monstrum romanae curiae”, com consequências dilacerantes,
superadas a partir de 2021, mas com um rasto de efeitos difíceis de controlar.
***
Assim, o retorno de Francisco ao
Concílio vem marcado pela necessidade de restaurar a autoridade da ação
eclesial. A partir de 2017, cartas em forma de motu proprio modificaram
a relação entre o Latim e as línguas faladas (Magnum principium), a reserva masculina dos ministérios instituídos
(Spiritus Domini e Antiquum ministerium) e o paralelismo entre
diferentes “ordines” do rito romano (Traditionis custodes). Só assim sairemos da tentação da
autorreferencialidade, que postula nova abordagem da tradição. A Igreja não
se reconhece como História fechada ou como museu da verdade a preservar, mas
como jardim a cultivar.
Por isso, seria útil reler o pontificado
de Francisco, 10 anos depois do seu início, não como forma incerta e suave de ministério
pastoral, mas como o repensar da forma de tradição, com a qual a Igreja não
renuncia a exercer autoridade e, portanto, supera o “dispositivo de bloqueio” que J.
Ratzinger desenvolveu com delicadeza e com dificuldade em 40
anos. É a visão da tradição que cria uma certa descontinuidade entre Francisco e
os antecessores.
Francisco assume a necessidade de
exercer a autoridade que os antecessores imediatos tinham como que suspensa,
resultando, muitas vezes, em paralisia. Não é exagero dizer
que Francisco se começou a desvencilhar do dispositivo de bloqueio, mudando o
papel do apego afetivo, o papel da razão teológica e o destino eclesial do
magistério, no quadro de profunda continuidade com o Concílio Vaticano II e
de inevitável descontinuidade em relação ao regime controlado pelo “dispositivo
de bloqueio”, cujo impacto ainda não diminuiu, nem mesmo em alguns aspetos
do magistério de Francisco.
Por isso, o trabalho de escuta
sinodal pode fazer sair, decisivamente, da perspetiva imposta, há 40 anos, à
teologia católica pelo “dispositivo de bloqueio”. A questão da autoridade e das
formas de seu exercício permanece central, devendo ser abordada explicitamente:
tanto em termos de exercício diferente de poder como em termos de reconhecimento
de novos sujeitos autorizados, o que implica reformas dos corações pessoais e
dos corpos institucionais, mas sem o que o “dispositivo Ratzinger”
continue como o lugar-comum da identidade católica e do modo de pensar e de viver
a tradição dos discípulos de Cristo.
2023.07.18 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário