A 27 de
junho, pelas 9h15, em Nanterre, França, faleceu, alvejado pela polícia, Nahel Merzouk, jovem francês de 17 anos de idade, de ascendência
argelina e marroquina. O incidente ocorreu, quando o jovem, condutor de viatura
sem documentos e em faixa de transporte público de passageiros (corredor BUS), se
recusou a parar, à ordem da polícia.
Cerca das 7h55, dois
oficiais da prefeitura de Polícia de Paris avistam, no corredor BUS, no
Boulevard Jacques-Germain-Soufflot em Hauts-de-Seime, Île-de-France, um Mercedes-AMG polaco
em alta velocidade, em direção à estação ferroviária de Nanterre-Université. Os
polícias mandam parar o motorista, Merzouk, que tenta fugir, após ser ameaçado com uma
bala na cabeça por um deles, às 8h16. Os dois passageiros fogem às 8h19. E o
funeral de Merzouk, declarado às 9H15, foi celebrado a 1 de julho, não sem ter
ocorrido uma vigília de protesto, a 29 de junho.
A polícia invoca legítima defesa, mas um vídeo divulgado nas
redes sociais mostra os polícias ao lado do carro conduzido por Merzouk e um
deles a disparar à queima-roupa, quando este arrancou. E Florian M., o
responsável pelo tiroteio fatal, indiciado por homicídio doloso ficou em prisão
preventiva desde o dia 29.
***
Em consequência, vasta onda de distúrbios civis vem assolando o
país: protestos, saques e motins em que são atacados símbolos do Estado, como
câmaras municipais, escolas, bibliotecas e esquadras, assim como outros
edifícios (restaurantes e supermercados). E foram incendiados carros e caixotes
do lixo.
Em Nanterre, logo no dia do incidente, os moradores
iniciaram um protesto frente à sede da polícia, que se tornou em tumulto,
quando incendiaram carros e lixeiras, destruíram pontos de paragem de autocarro,
dispararam projéteis e fogos-de-artifício contra a polícia e atearam fogo perto
dos trilhos da ferrovia. O tumulto durou até à manhã do dia 28 e estendeu-se
a outras áreas em Île-de-France, em Colmar e em Roubaix. No final do
dia, havia, pelo menos, 24 polícias feridos, 10 viaturas danificadas e 31
presos. Foram mobilizados 2 000 polícias e gendarmes, para lidar com
a violência. Em Viry-Châtillon, no Sul de Paris, jovens incendiaram
um autocarro. Mantes-la-Jolie, a 40 quilómetros a Noroeste de Paris, foi
bombardeada e incendiada a prefeitura, na noite do dia 27. Os confrontos
continuaram durante a noite, em toda a França, incluindo Toulouse, Lille,
Asnières, Colombes, Suresnes, Aubervilliers e Clichy-sous-Bois.
A
28 de junho, houve tumultos em Amiens, em Dijon, em Lyon, em Lille, em
Saint-Étienne, em Clermont-Ferrand e em Estrasburgo. Os media relataram incidentes
na região da Grande Paris. Houve fogos-de-artifício direcionados para a
Prefeitura de Montreuil, no extremo Leste de Paris, bem como para a prisão de
Fresnes. Em Toulouse, incêndios criminosos e confrontos entre 100
manifestantes e polícias no distrito de Reynerie resultaram em 13 prisões e 20
veículos queimados. Houve ataques a 27 delegações de polícia nacional
(sete, por incêndio criminoso), a quatro quartéis da gendarmaria, a 14
delegações municipais de polícia (10, por incêndio criminoso), a oito
prefeituras, a seis escolas e a seis edifícios públicos. Continuaram os
confrontos e a queima de veículos em Nanterre; foram atacadas delegações de
polícia em Suresnes, em Bois-Colombes e em Gennevilliers, e delegações
municipais de Meudon; foram ateados incêndios em bibliotecas de media, numa
máquina de construção, em Clichy-sous-Bois, numa escola, em Puteaux, e num
elétrico, em Clamart. Houve saques, em Colombes, e foram atacadas
prefeituras, em Meudon e em Châtenay-Malabry. No total, foram atacados
mais de 90 edifícios públicos. Em Paris, eclodiram confrontos nos 18.º e 19.º bairros
e foram ateados incêndios no 15.º bairro. Em todo o país, pelo menos 150
pessoas foram presas, 170 polícias ficaram feridos e danificados 609
veículos e 109 edifícios.
No
dia 29, mais de 6200 pessoas participaram numa marcha de apoio à família de
Merzouk, em Nanterre. À noite, as tensões explodiram. Autocarros e elétricos
pararam de circular à noite, para evitar danos, e várias comunas como
Clamart, Compiègne e Savigny-le-Temple decretaram o toque de recolher (Savigny-le-Temple
só para menores. Manifestantes em Marselha lançaram fogos-de-artifício
contra a polícia. Em Nanterre, manifestantes vandalizaram o Memorial aos
Mártires da Deportação, que homenageia as vítimas do Holocausto de Vichy,
na França, Em Nantes, um carro colidiu com uma loja Lidl, que foi
vandalizada e saqueada. A prefeitura de Clichy-sous-Bois foi incendiada.
Houve 875 prisões em todo o país, ficaram feridos 24 polícias e foram incendiados
40 carros. E fez-se uma marcha de vigília, em Nanterre, em memória de
Merzouk. Temendo agitação maior, Gérald Darmanin, Ministro do Interior,
destacou 1.200 policiais e gendarmes dentro e ao redor de Paris, a que
adicionou, depois, mais dois mil. E anunciou que o Governo enviaria 40 mil
oficiais para todo o país.
No
dia 30, manifestantes em Marselha atacaram a Bibliothèque l’Alcazar, a maior
biblioteca pública da cidade. O sistema de segurança impediu a entrada dos
manifestantes, mas o edifício teve janelas quebradas e danos causados pelo
fogo. O ministro do Interior instruiu as prefeituras do país a ordenar que
autocarros e os elétricos parassem o serviço às 21h e a proibir a venda e o
transporte de morteiros, de fogos-de-artifício, de latas de gasolina e de outras
substâncias perigosas. O presidente Emmanuel Macron, criticado
por assistir a um show durante a crise, cancelou uma viagem à
Alemanha, para tratar do assunto.
Tumultos
e protestos eclodiram em Caiena, capital da Guiana Francesa, a partir de
29 de junho, seguindo-se aos da França metropolitana. Os manifestantes incendiaram
vários bairros da cidade e os distritos de Cité Brutus, Mango, Novaparc e
Village Chinois. Um funcionário do governo de 54 anos foi morto por uma bala
perdida, enquanto estava na varanda de casa, no distrito de Mont-Lucas, em
Caiena. Polícias franceses baseados em Kourou usaram gás lacrimogéneo para
fazer dispersar a multidão que incendiou um autocarro e atacou um supermercado
no distrito de Soula, na comuna de Macouria. O prefeito, Thierry Queffelec,
condenou a violência e anunciou o encerramento antecipado do sistema de
transporte público de Caiena, a 30 de junho, e a proibição temporária da venda
e de transporte de gasolina, à noite.
Noutras
partes do Caribe francês, como Guadalupe e Martinica houve pequenas
manifestações. Martinicanos incendiaram latas de lixo e carros, em For-de-France,
em Le Carbet e em Le Robert, e jogaram objetos contra os bombeiros, que
responderam. Não houve violência em Guadalupe. Nos departamentos
ultramarinos e na região de Reunião, foram vandalizados prédios e carros e
foram jogados objetos contra a polícia, a partir do dia 28. Mais de 70
incêndios foram iniciados em toda a ilha, na noite de 1 de julho, uma queda em
relação às noites anteriores. Foram ateados incêndios na capital de Saint-Denis e
nas comunas de La Plaine-de-Palmistes, Le Port, La Possession, Le
Tampon, Saint-Benoît, Saint-Louis e Saint-Paul.
No
discurso em que denunciou as ações policiais, Macron pediu que os manifestantes
fossem pacíficos e que os pais que exerçam influência sobre os filhos. Criticou
os media sociais que promovem vídeos do conflito urbano e reclamou da violência
nos videogames que intoxicaram alguns adolescentes. O Ministério do
Interior pediu calma após o primeiro dia de agitação. O prefeito de
Nanterre, Patrick Jarry, expressando choque com o vídeo, declarou, em
conferência de imprensa, a 28 de junho, que a prefeitura passara por “um dos
piores dias de sua história”, instou os cidadãos a “parar esta espiral
destrutiva” e disse: “Queremos justiça para Merzouk; iremos obtê-la por meio de
mobilização pacífica.”
Os tumultos alastraram a Bruxelas, capital da Bélgica,
onde houve dezenas de prisões, e a Lausanne, na Suíça. E continuaram,
mesmo depois do funeral de Nahel Merzouk. Morreu um bombeiro e a polícia continua
nas ruas a “manter a ordem” na desordem instalada.
***
A
brutalidade policial e os protestos/motins andam a par, em França desde 2005 e,
sob a legalidade (?), desse 2017. Os motins
de 2005 surgiram em reação à morte de dois adolescentes muçulmanos,
eletrocutados, quando se escondiam da polícia numa subestação elétrica. O então
primeiro-ministro, Dominique de Villepin, e o ministro do Interior, Nicolas
Sarkozy, sugeriram que eram ladrões, o que não ajudou a acalmar a
situação. E o presidente Jacques Chirac declarou o estado de
emergência, os protestos duraram três semanas e mais de 4000 pessoas foram
presas.
Em outubro de 2016, pelas 15h00, dois carros da polícia
observavam um cruzamento em Viry-Châtilon. Cerca
de 20 jovens, menores, atacaram os veículos com barras de ferro e com pedras e,
depois, lançaram cocktails Molotov para os ocupantes. Uma
polícia e um assistente de segurança ficaram gravemente queimados. Também em
2016, gerou protestos a morte de Adama Traoré. E a sua irmã, Assa Traoré,
tornou-se a alma-mater do movimento Black Lives Matter, na França, e
a campanha faria eco, na França, dos protestos pela morte de George Floyd, em
2020.
Os protestos dos coletes amarelos, em
2018, e os excessos da polícia (usou uma brigada de motocicletas para conter
saques e ações violentas no quadro dos protestos contra a reforma de
previdência) levaram a maior perceção pública da brutalidade policial. Em 2020,
a opinião pública ficou chocada com o vídeo da violência policial perpetrada
contra um produtor musical negro, por não usar máscara. E, em abril de 2023,
mais de 260 mil pessoas assinaram uma petição malsucedida no site da Assembleia Nacional para
a dissolução da brigada, a famosa BRI.
***
O uso de perfis raciais em operações STOP e em verificações de identidade é
problema recorrente. Em 2016, o Tribunal de Cassação condenou o Estado por uso
perfis raciais para verificações de identidade, declarando que a prática é
discriminatória. Com base nisso, em outubro de 2020, um tribunal civil
parisiense concedeu 58500 euros a 11 demandantes que processaram o Estado por violência
policial, por verificação de identidade injustificada e por prisão indevida.
Em 2017, na sequência do incidente de 2016, com
a polícia, foi aprovada a Lei 435-1, a permitir que a polícia atire a veículo
cujos condutores não obedeçam à ordem de parar e sejam suscetíveis de, na fuga,
atentarem contra a vida ou integridade física da polícia ou de
terceiros. Daí resultaram 13 mortes por recusa de paragem, em 2022, mais seis
do que em 2021.
Segundo
a BBC, as 13 mortes conexas com a recusa
em submeter-se às paragens de trânsito em 2022, com os efeitos amplificadores
dos media, fizeram da memória dos distúrbios de 2005 uma das razões pelas quais
Macron e o establishment político
francês reagiram rapidamente a coisas calmas. Na sua presidência, já houve
violência urbana significativa à margem dos protestos dos coletes
amarelos e dos decorrentes das reformas do sistema de previdência.
O
Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), em declaração de 30 de
junho, instou a França a abordar seriamente as “questões profundamente
enraizadas de racismo e discriminação racial” nas suas agências de aplicação da
lei, e até 2 de julho, os Estados Unidos da América (EUA), a Turquia e
vários países europeus, incluindo o Reino Unido e a Noruega, pediram cautela
aos seus cidadãos na França e alertaram os turistas para ficarem longe das
áreas dos protestos. De facto, a França, nomeadamente a polícia, não tem atuação desprendida
da precipitação, da brutalidade e da marca racista. O país teima em não perceber
os sinais da sociedade, crivada de deserdados da sorte (Nahel vivia com a mãe e
não conhecia o pai). Há trabalho escravo de gente a viver nos arredores (em bidonvilles: bairros de lata).
O movimento
reivindicativo social e sindical é ultrapassado por movimentos inorgânicos,
assaz violentos, instrumentalizados e instrumentalizadores. A França, em vez de
insistir na proibição do véu e da burka islâmicos e de símbolos religiosos e de
outras culturas, deveria integrar, respeitando as culturas. Mas parece não ter
feito a redenção do colonialismo. O racismo estrutural mostra os tentáculos e o
antirracismo não é meigo. A classe média vive mal. Macron quer lei para a recuperação
de património danificado. É a vida!
2023.07.04 – Louro de Carvalho
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