A 1 de julho,
fez títulos, em diversos artigos do Diário
de Notícias (DN) online, o
assédio laboral na classe médica, com declarações de vítimas, da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), do
Diretor Executivo do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS), do bastonário da Ordem
dos Médicos (OM) e de uma advogada que se dedica ao tema.
O
assédio laboral é proibido e punido, nos termos da Lei n.º 73/2017, de 16 de agosto,
que reforça o quadro legislativo para a
prevenção da prática de assédio, procedendo à 12.ª alteração ao Código do
Trabalho (CT), aprovado em anexo à Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, à 6.ª
alteração à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), aprovada em
anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, e à 5.ª alteração ao Código de
Processo do Trabalho (CPT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de
novembro. E a Organização
Internacional do Trabalho (OIT) rejeita, in
limine, esta prática. Todavia, tornou-se realidade na classe médica e transversal
a muitas profissões. A OM e as estruturas sindicais assumem que é um
comportamento “reiterado”, “silenciado” e “sem punição”. E as vítimas resistem,
habituam-se ou desistem, sendo poucas as que avançam com queixas, pois impera o
medo de represálias e a falta de confiança nas soluções.
Assim,
ao invés do apregoado, o assédio é uma das principais razões do burnout, do absentismo e das saídas do
SNS. A proibição legal, mais antiga que a lei de reforço, mencionada supra, é
clara, mas é difícil fazer prova, sobretudo porque os assediantes são, habitualmente,
chefes. Não obstante, as narrativas feitas ao DN são de quem ainda crê na mudança. Ressalta o caso paradigmático
de alguém que avançou com queixas no sindicato, na OM, na Autoridade para as Condições do Trabalho
(ACT) e no Tribunal Trabalho (TT). Porém, na primeira audiência para
julgamento, a juíza pressionou o acordo, que foi aceite. E, três anos depois,
reativa os processos, porque o assédio se mantém, e o serviço considerou que o
caso era de conflito laboral.
A lei
proíbe esta prática desde 2003 (Lei n.º 99/2003,
de 27 de agosto, que aprovou o primeiro CT), precisamente há 20
anos, e define o combate a este comportamento como um direito de qualquer
trabalhador.
O
diretor executivo do SNS diz que o assédio é realidade que não se pode ignorar
e a prevenção e o combate do mesmo têm de ser uma prioridade das instituições públicas
e privadas.
O bastonário
da OM promete um canal informático seguro para receber denúncias anónimas.
A OIT,
que se manifesta, liminarmente, contra a prática do assédio moral no local de
trabalho, lançou, em 2021, uma campanha de sensibilização, para que todos os
Estados promovam e adotem códigos de conduta que travem o assédio. E, em junho
desse ano, aprovou o tratado internacional sobre violência e assédio no mundo
do trabalho, que passou a vigorar, no dia 25 – dois anos depois de ter sido
adotado pela Conferência Internacional do Trabalho (CIT), em Genebra. Em 2019, seis países ratificaram a Convenção sobre Violência e Assédio (Argentina,
Equador, Fiji, Namíbia, Somália e Uruguai), ficando legalmente vinculados às
disposições da Convenção, um ano após a ratificação, e a ter de reconhecer “o
direito de todas as pessoas a um mundo de trabalho livre de violência e assédio”.
A
advogada Maria Antónia Beleza, do gabinete jurídico da FNAM, com muita da sua
atividade dedicada às queixas e processos de assédio moral no trabalho, é
perentória, ao vincar: “Sem legislação mais dura, o assédio continuará a ser
uma prática reiterada.” E diz que o medo silencia a realidade, os juízes não
estão preparados para estes casos, as administrações são cúmplices dos
assediantes, a tutela devia ser mais interveniente e a Comissão para a
Igualdade “deveria estar mais atenta, porque há muito a fazer”.
Na verdade, o assédio laboral visa,
em última instância, levar o profissional a sair do serviço ou da unidade onde
está e a denunciar o contrato de trabalho – o que põe em causa a estabilidade
do emprego e da vida familiar. O/a médico/a pensa que, denunciando o contrato,
corre riscos, principalmente se tiver de ir para local distante de onde tem a vida
organizada. E prefere fazer o que define o próprio assédio que é ir aguentando,
isolando-se e tentando passar pelos pingos da chuva. Assim, evita ser o foco de
atenção, anula-se, não progride na carreira e chega à depressão, na tentativa
de esgotar, ao máximo, as hipóteses de não ter de denunciar o contrato. Além
disso, vem dos tribunais a dificuldade do ónus prova, com a dificuldade de
arrolar testemunhas.
A presidente da FNAM, Joana Bordalo e
Sá, assume que o assédio é prática reiterada na classe, ainda “silenciada” e
sem “punição”. Porém, chegam cada vez mais queixas, sobretudo depois de esta
estrutura ter lançado o Guia de Apoio no
Combate ao Assédio.
Nos últimos meses, o Sindicato dos
Médicos da Zona Norte (SMZN), que integra a FNAM, recebeu 18 queixas por
assédio laboral, cinco das quais depois de abril e do lançamento do guia. Nos
sindicatos das zonas Centro e Sul, há dez queixas a decorrer. Assim, aquela
dirigente sindical conclui: “Quase se pode dizer que o número
de queixas disparou este ano, mas, mesmo assim, ainda estão longe da dimensão
desta realidade.”
***
Já a 27 de abril, o Jornal de Notícias (JN) dava conta de que a FNAM, confirmando que há “cada vez mais queixas de assédio moral” a chegar aos
sindicatos e que a realidade é do quotidiano da classe, elaborou um guia de
informação para que os médicos saibam quais as situações que se enquadram neste
tipo de crime, as tipologias, como proceder e o apoio que podem ter.
A presidente da FNAM revela que o
alerta começou a soar, quando muitos profissionais pediam ao sindicato aconselhamento
e relatavam situações que configuravam assédio moral. Por isso, a FNAM decidiu avançar com a elaboração de um guia de informação
sobre o assédio, constante no seu site,
para que todos os médicos e médicas saibam “como agir nestas situações”, garantindo-se,
“desde logo, apoio, aconselhamento, proteção e sigilo total”.
Joana Bordalo e Sá dizia que “a
esmagadora maioria das situações que nos chegam são de assédio moral, porque
assédio sexual, felizmente, quase não existe”. O tema está a preocupar a classe e é
importante que seja abordado com clareza, pois, como salienta, “as situações
são mais recorrentes do que se imagina, fazem parte da realidade”. Dantes, “as
pessoas não tinham noção disto, aceitavam e habituavam-se”, embora
com sofrimento e acabando, muitas vezes, com burnout,
ou decidindo sair do SNS ou até da profissão. Hoje, a classe está mais
informada e queixa-se mais. Assim, o facto de haver mais queixas não significa
mais situações do que antes, mas a “mudança geracional na forma de encarar o
assédio e [de] prosseguir com as queixas”. Por outro lado, o aumento das queixas
está relacionado com a degradação das condições de trabalho dos médicos e com a
sobrecarga de trabalho. Com efeito, “o assédio moral contribui, em grande
escala, para o mau ambiente de trabalho, para o burnout.
Como refere o documento da FNAM, “o assédio é um comportamento contínuo,
praticado normalmente pelo empregador ou por um superior hierárquico,
manifestamente humilhante, vexatório e atentatório da dignidade, e que tem
consequências hostis no/a trabalhador/a.”
Segundo o CT, “é assédio todo o comportamento indesejado, nomeadamente
o baseado em fator de discriminação, praticado no momento do acesso ao emprego
ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou
efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe
criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou
desestabilizador” (artigo 29.º do CT).
O guia da FNAM alerta para o
facto de “o assédio no local de trabalho ter repercussões na saúde mental dos
médicos” e Joana Bordalo e Sá relembra que “as situações surgem, sobretudo, do
lado das chefias, intermédias ou de topo”, atingindo, sobretudo, “os
profissionais mais jovens”. Porém, qualquer médico pode vivenciar uma situação
destas: “Muitas vezes, nem sequer parte das chefias, mas de um colega que lança
uma frase insultuosa e que a vai repetindo ao longo do tempo, provocando sofrimento
e humilhação na vítima.”. Até pode surgir de inferior para superior que esteja
fragilizado.
Continua a haver “um medo enorme para
avançar com as queixas”: “Os médicos não se sentem seguros a usar os canais
internos institucionais, nos hospitais ou noutras unidades, para fazer a
denúncia e/ou receber a devida proteção, sobretudo quando o assédio é feito por
um superior hierárquico, sendo que, nos internos, é sempre pior, pois sentem-se
como o elo mais fraco e têm medo de sofrer represálias.” Ora, as próprias
unidades deveriam ter canais seguros de apoio aos profissionais, uma falha
colmatada por este guia, que tem o objetivo de elucidar os médicos sobre como
agir e o tipo de apoio que podem conseguir.
O documento da FNAM dá conta da dimensão que podem ter as situações de
assédio, sendo o “isolamento social” um dos principais indicadores, tal como “a
não-atribuição, sistemática, de funções efetivas, o esconder informações necessárias
ao desempenho de funções”, a perseguição profissional ou a definição de
objetivos com prazos impossíveis de atingir.
O mesmo sucede em casos de “desvalorização
sistemática do trabalho”, de “atribuição de funções desadequadas”, de “instruções
de trabalho confusas e imprecisas”, de “bloqueio contínuo do trabalho”, de “apropriação
de ideias, propostas, projetos ou trabalhos, sem identificar o autor”, de intimidação
ou [de] ameaças sistemáticas de despedimento” ou de criação de “situações de
stresse, para gerar descontrolo ou humilhação pessoal”, incluindo a
“humilhação por caraterísticas físicas, psicológicas ou outras”, bem como
divulgação de rumores, comentário malicioso, crítica sistemática em público,
gritos, intimidação e insinuação de problemas mentais ou familiares.
Sobre o assédio sexual, o guia menciona como exemplos: “insinuações
sexuais, piadas ou comentários – sentidos como ofensa, sobre o aspeto ou corpo –,
piadas ou comentários ofensivos de caráter sexual” ou, ainda, contacto físico não
desejado (tocar, mexer, agarrar, apalpar, beijar ou tentar beijar). Há, ainda, outras formas como a agressão
ou tentativa de agressão sexual e o aliciamento, através de pedidos de favores
sexuais associados a promessas de obtenção de emprego ou de melhoria das condições
de trabalho, ou o envio reiterado de desenhos, de fotografias ou de imagens da Internet, indesejadas e de teor sexual,
ou telefonemas, cartas, SMS ou e-mails indesejados, de caráter sexual.
A vítima deve “manter o registo dos factos ocorridos, nomeadamente o
local e datas onde ocorreram, o que foi dito ou feito, o que sentiu, quem
estava envolvido e potenciais testemunhas, cartas, e-mails e mensagens”; não deve falar da vida pessoal; deve
desencorajar o/a agressor/a, tentando ser sempre profissional; deve evitar
conversar com o/a agressor/a sós, tendo sempre por perto um/a colega de
confiança.
Segundo
o guia da FNAM, o assédio é moral,
quando se traduz em ataques verbais de conteúdo ofensivo ou humilhante, ou em
atos mais subtis, podendo abranger a violência física e psicológica, visando
diminuir a autoestima da vítima e, até, a sua desvinculação do posto de trabalho;
é sexual, quando os comportamentos são
de caráter sexual, como convites de teor sexual, tentativa de contacto físico
constrangedor e inoportuno, chantagem para obtenção de emprego ou progressão
laboral em troca de favores sexuais e gestos obscenos.
O assédio é identificável por comportamento indesejado, com incómodo injusto ou com
prejuízo para a vítima (tem alguma duração no tempo, não é ato isolado); pela
intenção imediata de exercer pressão moral sobre a vítima; pelo objetivo final
ilícito, eticamente reprovável, de obter um efeito psicológico de
constrangimento desejado pelo assediante.
Os tipos de assédio que se conhecem são: assédio
moral discriminatório, se se baseia em fator discriminatório, como
ascendência, idade, género, orientação sexual, situação familiar, situação
económica, etc.; assédio moral não
discriminatório, se se manifesta pelo seu caráter continuado e insidioso e
tem efeitos hostis; assédio
emocional-psicológico, se acontece por animosidade, antipatia, inveja,
desconfiança ou insegurança, normalmente para obter um efeito psicológico na
vítima; e assédio estratégico, se se
traduz em técnica perversa de gestão, com objetivos estratégicos definidos,
muitas vezes como meio para contornar as proibições de despedimento sem justa
causa, ou como instrumento de alteração das relações de poder no local de
trabalho ou para implementar determinados padrões de cultura empresarial ou de
disciplina.
***
A prevenção e o combate são
necessários na profissão médica e em todas as outras!
2023.07.02 – Louro de Carvalho
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