A 6 de julho,
o bispo auxiliar de Lisboa D. Américo Aguiar, que preside à Fundação JMJ,
entidade promotora da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), a decorrer em Lisboa,
de 1 a 6 de agosto, em entrevista à RTP 1,
declarou não pretender converter ninguém a Cristo e à Igreja com este evento. Tal
declaração, retirada do contexto, basicamente uma das suas provocações
retóricas, mas assente em boa antropologia teológica, suscitou um coro de
contestação da parte de setores católicos conservadores, aliás na sequência de
algum incómodo sentido por setores políticos de alguma direita e de alguma
esquerda.
O aspeto político
das críticas tem a ver com algo que ele próprio revelou de que antes de ser
padre, fora autarca (deputado municipal) proposto por lista de um partido de
que não gostam os setores mais conservadores, como se isso tivesse de marcar, indelevelmente,
a personalidade do, mais tarde, sacerdote e, agora, bispo. Por outro lado, não
reparando que fora eleito para o episcopado (bispo titular de Dagno e auxiliar
do Patriarcado), apontaram como exibicionismo e acorrentamento ao poder
político vigente o facto de algumas figuras gradas do governo (incluindo o primeiro-ministro)
e da autarquia lisboeta terem estado presentes na sua ordenação episcopal, na Igreja
da Trindade, no Porto, e também o abraço trocado entre o bispo e o presidente
do Futebol Clube do Porto (FCP). Todavia, esquecem-se de anotar o facto dramático
que aconteceu no referido dia: da parte da amanhã, o ainda bispo eleito teve de
participar no funeral da mãe, que falecera inesperadamente; e, à tarde, ocorreu
a celebração da sua ordenação episcopal, das mãos do cardeal D. Manuel Clemente,
patriarca de Lisboa, de cuja iniciativa partiu a decisão papal da nomeação do
novo bispo auxiliar de Lisboa e que tinha sido bispo do Porto.
Por outro
lado, o presidente da JMJ foi envolvido nas acusações dirigidas ao governo e
aos autarcas de Lisboa e de Loures, pelo custo excessivo de alguns equipamentos
que sustentam a logística da JMJ, não acreditando que o responsável eclesiástico
não soubesse do monte das despesas orçamentadas. Não se reparou que o bispo
tentou pôr algum cobro ao excesso (até se disse, erradamente, que os
equipamentos ficaram mais baratos, quando a verdade é que os equipamentos diminuíram
de volume e de área) e dispensou a autarquia lisboeta do encargo com o palco do
Parque Eduardo VII, cujos encargos ficaram por conta da Fundação JMJ. Com
efeito, este parque não é um novo equipamento municipal, não havendo dali nada
que resulte em mais-valia significativa para o futuro, ao invés do Parque
Trancão-Tejo.
A crítica
teológica a uma asserção descontextualizada reduz-se a três itens: pretensa
incoerência em relação ao magistério do Papa Francisco – se não é para converter
os jovens, é de perguntar que vem fazer à JMJ o Papa Francisco, que até premiou
este bispo com um barrete cardinalício; desviante entendimento da fraternidade
humana desenvolvida na encíclica Fratelli
tutti; e formulação antievangélica da tarefa evangelizadora. Nestes termos,
há uma crítica é explícita ao bispo, que pretende, sob a capa do fazer pontes,
ficar de bem com todos, não percebendo que “fora da Igreja não haverá salvação”
(“Extra Ecclesiam non erit salus”), e uma crítica velada ao próprio Sumo
Pontífice, que faz más escolhas.
Entretanto,
para que não restem dúvidas, o futuro cardeal D. Américo Aguiar, que será
criado como tal no Consistório (reunião do Sacro Colégio) do próximo dia 30 de
setembro, prestou esclarecimentos à ACI
Digital, de que o site da Aletheia fez eco. “A JMJ é um convite a todos os jovens do Mundo
para uma experiência de Deus”, disse o bispo auxiliar de Lisboa e presidente da
Fundação JMJ Lisboa 2023. “Estas são as minhas convicções que sustentam a frase
por vós citada e, naturalmente, isolada do contexto de uma longa entrevista”,
disse, explicando à ACI Digital a
declaração feita por ele, na referida entrevista à RTP 1, de que a jornada não quer “converter o jovem a Cristo nem
à Igreja Católica”: “Nós não queremos converter o jovem a Cristo nem
à Igreja Católica, nem nada disso, absolutamente.”
“Nós
queremos é que seja normal que o jovem cristão católico diga e testemunhe que o
é; que o jovem muçulmano, judeu ou de outra religião também não tenha problemas
em dizer que o é e o testemunhe; aquele jovem que não confessa religião nenhuma
se sinta à vontade e não se sinta estranho porque é assim ou é de outra
maneira, e que todos entendamos que a diferença é uma riqueza. E o mundo será
objetivamente melhor, se nós formos capazes de colocar no coração de todos os
jovens esta certeza da Frateli tutti, de todos irmãos, que o Papa
tem feito um enorme esforço para colocar no coração de todos”, disse o bispo,
na entrevista à jornalista Alberta Marques Fernandes, da RTP 1, de 6 de julho.
Aliás, a 2
de julho, em entrevista ao programa “70x7” da RTP 1, o presidente da JMJ tinha feito um conjunto de asserções bem
menos polémicas, que não foram, por isso mesmo, comentadas, nem transcritas.
Parece que alguns só andam à cata de escândalos.
Ora, porque
o bispo foi escolhido, precisamente a pretexto da JMJ, é normal que tenha uma
série de entrevistas com os serviços do Vaticano e com o próprio Papa, tal como
tenha ido a Kiev e a Jerusalém, a convite de que de direito, para estar com os
jovens que não podem vir a Lisboa. Tudo isso dá fotografias e vídeos, que não
selfies.
Explicando-se,
D. Américo Aguiar disse que o que se quer, na JMJ: “[…] que todos estes jovens,
de todos os países do mundo, regressando às suas geografias e vidas desejem
mudar as suas vidas, mudar o Mundo. Queremos que se interroguem sobre as suas
vocações… sobre a razão da nossa alegria.” “A JMJ nunca foi, não é, nem deverá
ser um evento para proselitismos, antes pelo contrário, é e deve ser sempre,
uma oportunidade para nos conhecermos e respeitarmos como irmãos”. Segundo o
bispo, “a Igreja não impõe, propõe”: “Que bom estarmos todos disponíveis para
dar testemunho de Cristo Vivo e confiar na transformação que só Cristo Vivo
consegue operar nas nossas vidas.”
Bento XVI, numa
audiência com bispos do Cazaquistão e da Ásia Central, em 2008, disse
que “a Igreja não impõe, porém propõe, livremente, a fé católica, sabendo que a
conversão é o fruto misterioso da ação do Espírito Santo”. E, numa homilia na
solenidade da Epifania do Senhor, em 2019, Francisco disse que “Deus
propõe-Se, não Se impõe”. “O que nunca muda é o que Jesus nos pede: acolher o
outro como irmão”, disse D. Américo. “A descoberta da presença de Jesus Vivo
acontece diariamente no encontro entre todos os que se interrogam sobre Deus.”
Explica o
futuro cardeal: “A conversão acontece pelo testemunho, não pela imposição. A
conversão acontece no coração, não na razão. Porque assente no mistério maior
da Encarnação e na Ressurreição. Falamos de Deus, anunciamos o Filho,
experienciamos o Espírito. E todos podemos ser, somos e procuramos ser os
discípulos de Jesus que nos continua a dizer para anunciarmos a Sua Palavra,
para darmos testemunho do Seu Amor por todos.” “Falar de Cristo é anunciar o
Evangelho e anunciar o Evangelho é falar de Cristo. Cada JMJ é um imenso campo,
em que é lançada a semente. A semente da Palavra, do testemunho, da alegria, da
paz, do encontro, da reconciliação. Acreditamos que a terra é boa e a semente
dará fruto”, completou.
***
Na
verdade, ninguém converte ninguém. É Deus quem opera em cada pessoa a conversão,
respeitando a liberdade de cada um e dando-nos a ideia de que é a própria pessoa
que se converte, a qual mais não faz do que disponibilizar-se a aceitar a
iniciativa de Deus e a cooperar com Ele de coração e com boas obras. Jesus falava,
chamava e testemunhava a Palavra que recebeu do Pai, acolhendo, compadecendo-Se,
rezando e, obviamente, repreendendo. Porém, contra os prosélitos, não forçava
ninguém, embora visse as multidões como rebando sem pastor (cf Mt 9,36) e clamasse que a messe a
grande, mas os operários são poucos. E a receita era: Pedi ao Senhor da messe
que manda operários para a sua messe. (cf
Lc 10,2).
O
pregão da pregação do Reino era: “O Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos
e acreditai na Boa Nova.” (Mc 1,15). Ou:
“Convertei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus” (Mt 4,17). E o recado que os discípulos deviam dar no quadro da sua
experiência missionária à ordem de Jesus era: “Dizei primeiro: ‘A paz esteja
nesta casa. […] Curai
os doentes que nela houver e dizei-lhes: ‘O Reino de Deus está próximo de vós’.”
(Lc 10,5-9).
Depois,
o Ressuscitado declarou os discípulos (agora seus irmãos) enviados para perdoar
os pecados, pelo arrependimento de cada pessoa; fê-los testemunhas, desde a
Judeia até aos confins do Mundo, do essencial da missão messiânica (pregar o
arrependimento e o perdão dos pecados); e enviou-os a fazer discípulos em todos
os povos (ensinando a cumprir tudo quanto mandou), a pregar o Evangelho a toda
a parte e esperar que as pessoas aceitem o batismo em nome do Pai e do Filho e
do Espírito Santo (cf Jo 20,21.23; Lc 24,47; Mt 28,19-20; Mc 16,15-16).
Nada
há no Evangelho que leve os discípulos a pretender operar por si a conversão
nos outros. Evangelizar não é fazer proselitismo, hostilizar, excluir. É falar
respeitando, testemunhar acolhendo, escutar com paciência e responder com
simplicidade.
Dito
de outro modo, o apóstolo, integrado na comunidade apostólica ou em nome dela,
tem de ser como o semeador evangélico: “sair” a “semear” de mão cheia sem se
preocupar com a natureza do terreno (não lhe compete selecioná-lo) e deixar que
a semente caia onde lhe aprouver. Deve esperar que ela produza no bom terreno. Obviamente,
terá de cuidar de que ela germine e cresça e que os maus terrenos se assemelhem
mais ao bom terreno, mas sem forçar a natureza de cada um, e zelar pela manutenção
do bom terreno. Deve ter a paciência do homem do Evangelho que semeia o trigo
no seu campo e tolera que o inimigo tenha semeado o joio. E a sua paciência, em
vez de deixar arrancar o joio, com o risco de perder joio e trigo, dita o crescimento
conjunto de trigo e de joio até ao momento da colheita.
Concluindo,
a asserção do futuro cardeal revela boa antropologia teológica e sã antropagogia.
Quem sabe se não está a ser alvo da inveja e da despiciência que, por vezes,
eivam algumas figuras da Igreja e da Sociedade! Estou à vontade, pois não o
conheço pessoalmente. A única referência que dele tenho é um conjunto de declarações
e de iniciativas que situaram no merecido lugar o antigo bispo do Porto D.
António Francisco dos Santos, cujo lema episcopal – “In manus tuas” – assumiu,
como homenagem ao antístite de saudosa memória. Porém, dizer que a sua asserção
é antievangélica contraria a verdade e a alegria do Evangelho.
Ademais,
a máxima “Extra ecclesiam non erit salus”, enunciada pelos Padres da Igreja,
não pode entender-se ao pé da letra, nem mesmo em ambiente de Cristandade. A
doutrina da descida do Redentor à morada dos mortos mais não significa do que a
extensão da redenção (salvação) a todas as pessoas que dela carecem: as que
nasceram e morreram antes de Cristo e as que vivem e morrem em lugares aonde não
chega a pregação explícita do Evangelho. Sendo assim, porque, tal como apregoava
Justino, o mártir, Cristo, o Verbo seminal (Verbum
seminale, em Latim, ou Lógos spermatikós,
em Grego) não conhece barreira, nem fronteira, quem agir segundo a sua consciência,
a regra máxima das atitudes, e não enjeitar sinceramente a verdadeira Igreja (não
a que, por vezes, se lhe apresenta) será salvo. Enfim, como Cristo e a Igreja
não se separam, pois formam um só corpo místico (onde age Cristo age a Igreja),
pode dizer-se: ““Extra ecclesiam non erit salus”.
E
é por isso que todos – e não apenas, como querem dizer alguns, os que receberam
o batismo sacramental – somos irmãos. E isto não é retórica, nem invenção do
Papa Francisco, embora lhe caiba o mérito de equacionar o problema e o deixar
claro e universal.
Já
o Papa São Pio X, dito ultraconservador, quando passava por um cemitério
judaico, em Roma, rezava e abençoava. E, perante quem lhe manifestava
estranheza por esse gesto, respondia: “Eu faço a minha parte; e Deus fará o
resto!”
2023.07.28 – Louro de Carvalho
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