A Câmara
Municipal de Mafra e o Instituto para a Promoção da América Latina e Caraíbas
(IPDAL) organizaram, para os dias 27 e 28 de abril, o III “Mafra Dialogues –
Diálogo Inter-religioso e Paz Global”, que reuniu, no Palácio Nacional de
Mafra, influentes personalidades e organizações mundiais, para debate das
ameaças à paz e à segurança internacional.
Face à emergência de novos desafios
globais, surge a necessidade da elaboração de um roteiro de propostas que
mantenham a humanidade no caminho da procura partilhada de soluções pacíficas.
No programa, destacam-se
dois painéis – “Desafios
à Paz Global: Europa e Indo-Pacífico” e “Diálogo Inter-religioso”; a mensagem especial da Santa Sé, através
de videomensagem do arcebispo Monsenhor Paul Gallagher, secretário para as Relações com os Estados, da Santa Sé; e as palestras do cardeal
Dieudonné Nzapalainga, perito do Centro Internacional Rei Abdullah bin
Abdulaziz para o Diálogo Inter-religioso e Intercultural (KAICIID, na sigla inglesa) e Bispo de Bangui, e de José
Ramos-Horta, Presidente da República de Timor-Leste.
Merece, ainda, destaque a presença de Paulo Neves, presidente do IPDAL, de Hélder Sousa
Silva, presidente da Câmara Municipal de Mafra – a entidade anfitriã –, de Irene
Fellin, Special Representative for Women, Peace and Security, da Organização do
Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO), e de José Múcio, ministro de Estado da
Defesa do Brasil, que intervieram na sessão de abertura; de Elizabeth Spehar, UN (United Nations) Assistant
Secretary-General for Peacebuilding Support, que presidiu ao
encerramento dos trabalhos, no dia 27; e de Helena Carreiras, ministra
da Defesa Nacional de Portugal, que presidiu à sessão de encerramento.
No 1.º painel,
participaram Susana Malcorra, copresidente do International Crisis Grou; Duarte
Pacheco, presidente da União Interparlamentar; Jyun-yi Lee, Associate Research
Fellow, do Institute for National Defense and
Security Research (INDSR), Taiwan; Emilio Cassinello, diretor-geral
do Centro Internacional de Toledo para a Paz; Serge Stroobants, diretor para a
Europa do Institute for Economics and Peace; e Hanna Shelest, Security Studies
Program Director, Ukranian Prism.
No 2.º painel,
participaram Mónica Ferro, diretora do Escritório de Genebra, do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA);
o embaixador Adelino Silva, diretor executivo do Centro Norte-Sul do Conselho
da Europa; o rabino Daniel Goldman, copresidente do Instituto de Diálogo Inter-religioso
(IDI) da Argentina; Agustin Nuñez, diretor-sénior do Programa de África, do
KAICIID; e o Embaixador Arif Lalani, antigo Enviado Especial do Canadá para a
Organização de Cooperação Islâmica (este participou online).
***
O cardeal e arcebispo de Bangui, que tem desempenhado
papel crucial na recuperação da paz no seu país, a República Centro-Africana
(RCA) sustentou que, se queremos a paz na Ucrânia, precisamos de redirecionar
as energias, que têm estado focadas apenas num eixo, o do armamento, e passar às
linguagens do diálogo e da paz.
“Ouvimos demasiado a voz das armas, mas também há a
voz do diálogo para a paz”, afirmou, na sua palestra, no dia 28, frisando que
esse diálogo deve ser visto como “técnica de resolução de conflitos, que não se
foca no resultado final, mas na transformação que ocorre durante o diálogo”. “Durante
uma sessão de diálogo, em vez de nos focarmos em questões materiais, o foco
deve estar nas emoções. É apenas porque se concentra na esfera emocional que o
diálogo transforma as pessoas”, defendeu.
O cardeal exemplificou, praticamente, como as “emoções
tiveram um papel fundamental” na resolução de crises na RCA. Em 2017, na cidade
de Bangassou, a 750 km da capital Bangui, “os antiballakas, milícias que se
dizem cristãs, preparavam-se para atacar o seminário menor da cidade, onde os
muçulmanos se refugiavam. Estava o arcebispo em missão, naquela cidade, com Clarice
Manehou, presidente da coordenação feminina da plataforma das denominações
religiosas da RCA. Durante uma semana, dialogaram com os líderes dos
antiballakas para os dissuadirem do projeto. Ao oitavo dia, Clarice Manehou
ajoelhou-se diante do líder dos antiballakas, para lhe dizer, em lágrimas, que
era uma mulher, mas, acima de tudo, uma mãe e que todos eles tinham nascido de
uma mulher e que ela era como a mãe deles, pelo que os exortava a interromper aquele
projeto desastroso. Após alguns momentos de silêncio, a emoção tomou conta do
líder, que foi junto daquela mulher e lhe disse: “Mamã, ouvimos o teu recado”.
No dia seguinte, não só desistiram do plano, como também depuseram as armas, o
que “possibilitou o regresso dos muçulmanos à cidade”.
O cardeal Nzapalainga, que é um dos líderes da
Plataforma Inter-religiosa da RCA, com o líder da Comunidade Islâmica e com o
presidente da Aliança Evangélica do país, sustenta que experiências como esta
podem ser transpostas para a realidade europeia. E sugeriu tentar unir a
sociedade civil russa e ucraniana, em que muitas pessoas são contra a guerra; e
mostrar, na televisão, exemplos dessas pessoas unidas, como famílias russas e
ucranianas a rezar em conjunto. Na verdade, na ótica do cardeal e arcebispo, “há
pessoas que estão inativas e que podem dar o seu contributo” para este diálogo.
A posição do arcebispo de Bangui, no seu muito aplaudido
discurso, foi corroborada por Monsenhor Paul Gallagher, secretário para as
Relações com os Estados, da Santa Sé, que, numa mensagem em vídeo, abriu os
trabalhos do segundo dia do encontro.
Paul Gallagher defendeu que a paz “não se baseia na
dissuasão das armas”, mas exige um trabalho ao nível da educação. Ou seja, “a paz está também nas mãos de cada um de
nós”.
“A paz é algo mais desejado do que procurado, –
afirmou na sua mensagem – e esta é uma das razões pelas quais o Papa acredita
que se está a viver uma terceira Guerra Mundial”, com 27 conflitos em curso em
todo o Mundo e com os níveis de violência a aumentar.
Por isso, o chefe da diplomacia do Vaticano lançou um
apelo: “Temos de fazer mais. A paz precisa de especialistas, mas está também
nas mãos de cada um de nós”, adiantou, considerando que essa paz “não se baseia
na dissuasão das armas”, mas exige um trabalho ao nível da educação.
“Esperar que um conflito comece, para procurar a paz,
é recorrer a remédios, quando surge uma emergência”, disse, para vincar que “a
paz deve ser procurada dia a dia”, fazendo de cada pessoa “um arauto da paz” e
construindo “uma ordem segundo a justiça e a caridade”.
Quanto às religiões, destacou, “devem estar na linha
da frente da promoção da paz”. Até porque, na sua perspetiva, “é inegável que a
humanidade precisa da religião para alcançar uma paz duradoura, pois a religião
é uma bússola que nos orienta para o bem e nos afasta do mal”.
“As religiões ajudam a discernir o bem e a pô-lo em
prática”, referiu Paul Gallagher. E, se isso não acontece,
é porque são, muitas vezes, “instrumentalizadas”, o que “nunca deveria
acontecer”. E é por isso que o terrorismo, associado à acumulação de
interpretações incorretas dos textos religiosos”, é “deplorável”, acentuou.
E, concluindo que é muito importante que os líderes
religiosos sejam “verdadeiros homens de diálogo”, atuando como “mediadores”, disse
o que é o mediador: “Aquele que não retém nada para si, mas que se gasta
generosamente até se consumir, sabendo que o único ganho é a paz.”
O Papa Francisco é o melhor exemplo desse tipo de
mediador, avançou o rabino Daniel Goldman, copresidente do IDI da Argentina, que
se juntou ao evento por videoconferência. O rabino disse ter conhecido o então
cardeal Jorge Bergoglio, quando este era arcebispo de Buenos Aires, e partilhou
como foi importante que tivesse sido criado, com o seu impulso, o organismo a
que preside atualmente.
“Bergoglio organizou a primeira visita de um arcebispo
católico ao centro islâmico de Buenos Aires” e foi na sequência dessa visita,
em que Daniel Goldmann também participou, que o diálogo inter-religioso assumiu
um papel mais relevante na Argentina. “Ele, depois, transportou isso para o
nível internacional” e “é esse o caminho”, defendeu o rabino.
Também o arcebispo de Bangui havia referido o Papa como
um exemplo a seguir. “Desde 2013, o Papa Francisco enfatiza o diálogo e a
cooperação inter-religiosa como forma de promover a paz e a harmonia entre as
diferentes comunidades religiosas. Em particular, trabalhou para construir
pontes entre a Igreja Católica e o Islão, reconhecendo a importância dessa
relação no atual contexto global”, assinalou.
Dieudonné Nzapalainga recordou que, em 2014, Francisco
organizou uma reunião de oração no Vaticano com o presidente israelita, Shimon
Peres, e com o presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas, com o
objetivo de promover a paz no Médio Oriente e que essa reunião incluiu orações
de líderes judeus, muçulmanos e cristãos, tendo sido vista “como um símbolo de
esperança e unidade”.
“Em 2019, – assinalou – fez uma visita histórica aos
Emirados Árabes Unidos [EAU], onde conheceu o Grande Imã de Al-Azhar, xeque
Ahmed el-Tayeb, uma das figuras mais importantes do Islão sunita”. Foi durante
esta visita que ambos assinaram o “Documento sobre a Fraternidade Humana para a
Paz Mundial e Coexistência Comum”, que apelava precisamente a uma maior
cooperação e compreensão inter-religiosa.
A chave está, pois, em fazer como Francisco:
“reconhecer o outro como dom de Deus” e identificar os nossos “denominadores
comuns” – concluiu o rabino Daniel Goldman. Estas são as tarefas
“indispensáveis para alcançar a paz”.
***
É necessário que estas iniciativas se multipliquem e
levem os decisores internacionais a pensar mais na paz e menos nos nas
vindictas, nos interesses territoriais parcelares e nos negócios dos equipamentos
bélicos – sejam estes os das armas, os das munições, os dos mísseis e das bombas,
os dos veículos, os dos drones e dos robôs ou os dos computadores.
É preciso ouvir e seguir a vozes do diálogo e das
pontes. A paz acima de tudo!
2023.04.29 – Louro de Carvalho
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