Após
três domingos de Páscoa, em que proclamamos textos evangélicos diretamente
conexos com a ressurreição do Senhor – a aparição de Jesus às mulheres e, em particular,
a Maria Madalena; a visão do sepulcro vazio da parte de Pedro e de João; a caminhada
dos discípulos de Emaús, em que Jesus (sem eles O reconhecerem) lhes explicou,
pela Bíblia, tudo o que se referia ao Messias e Se lhes deu a conhecer aquando
da fração do pão; e as aparições de Jesus no Cenáculo aos Dez, na tarde do dia
da ressurreição, e aos Onze (com o desafio a Tomé), oito dias depois – somos
convidados a voltar aos discursos de Jesus anteriores à sua Paixão e Morte e a
entendê-los à luz da Páscoa do próprio Jesus, que tem de ser a nossa Páscoa.
Nestes
termos, a liturgia do 4.º domingo da Páscoa confronta-nos com o discurso de
Jesus, o Belo Pastor, sendo esta a componente messiânica a que nos dá a
singularidade do Messias que o Pai nos enviou, bastante diferente do que o Povo
de Israel esperava. Não é o rei ou o imperador cercado de enorme corte e
coadjuvado por numerosos exércitos, mas o rei-pastor. Não usa coroa, nem trono,
nem espada, nem cetro, mas o cajado, não para bater nas ovelhas, mas para Se
apoiar na caminhada e lhes apontar o caminho. Trono, coroa e cetro ficarão para
o fim dos tempos.
É
de salientar que, embora seja fundamental a cruz redentora, as representações
de Jesus, na primeva comunidade cristã, não são o Crucificado, mas o pastor com
a ovelha ao ombro. Quer dizer que os primeiros cristãos olhavam para o
Ressuscitado como o pastor, o guia, o amparo.
Por
isso, o 4.º Domingo da Páscoa é considerado o “Domingo do Bom Pastor”, pois todos
os anos a liturgia propõe, neste domingo, um trecho do capítulo 10 do Evangelho
de João, no qual Jesus é apresentado como o “Belo e Bom Pastor”.
Neste
Ano A, o trecho do Evangelho a proclamar e a meditar (Jo 10,1-10) insere-se na catequese joânica do Belo Pastor (ho poimên ho kalós). Esta imagem é
pretexto para identificarmos a missão de Jesus: a obra do Messias é conduzir o
homem às pastagens verdejantes e às fontes cristalinas, onde nos saciamos e de
onde brota a vida em plenitude, como fica plasmado no Salmo 23.
A
imagem do Belo e Bom Pastor não foi inventada pelo autor do 4.º Evangelho. O
seu discurso simbólico está construído com materiais do Antigo Testamento (AT),
em especial, do capítulo 34 de Ezequiel (Ez
34), a chave para compreender a alegoria do pastor e do rebanho.
Aos
exilados da Babilónia Ezequiel mostra que os líderes de Israel foram, ao longo
da História, maus pastores, que guiaram o Povo por caminhos de desgraça e de
morte. Ao invés, o próprio Deus assumirá a condução do Povo e porá à frente do
Povo um Bom Pastor, o Messias, que o livrará da escravidão e o conduzirá à
vida. E a catequese joânica sugere que a promessa – veiculada por Ezequiel – se
cumpre em Jesus.
O
trecho em referência deve ser entendido no contexto da denúncia da atuação dos
dirigentes espirituais judeus. No episódio do cego de nascença, tinha ficado
claro que os dirigentes não estavam interessados em acolher a luz e em deixar
que o Povo escolhesse a liberdade que Jesus oferecia. E Jesus avisa os dirigentes
de que veio chamá-los a juízo (krîma) por causa da sua má gestão como líderes
do Povo de Deus: preferiram as trevas da sua autossuficiência e impediam o Povo
de descobrir a luz libertadora que Jesus lhes trouxe.
O
trecho referente a este 4.º domingo, no Ano A, está dividido em duas partes.
Na
primeira (Jo 10,1-6), Jesus
apresenta-se como o Pastor, cuja ação se contrapõe à dos dirigentes judeus, que
se arrogam o direito de pastorear o rebanho do Povo de Deus, mas sem serem pastores.
Esses são mercenários (não buscam o bem da grei) ladrões e bandidos, que se
servem das suas prerrogativas para explorar o Povo e usam a violência para o
manter sob escravidão. Aproximam-se do Povo de forma abusiva e ilegítima: “não
entram pela porta”; foram eles que a usurparam; o seu objetivo não é o bem das
ovelhas, mas o próprio interesse e o dinheiro. Ao contrário, Jesus é o Pastor,
que entra pela porta: tem mandato de Deus e a missão foi-Lhe confiada pelo Pai.
Em
Ezequiel, o papel do pastor correspondia, primeiro, a Deus; e, no futuro, ao
enviado de Deus, o Messias, o descendente de David.
Ao
apresentar-se como Aquele “que entra pela porta”, com autoridade legítima,
Jesus declara-Se o Messias (Khristós)
enviado por Deus, para guiar o Povo às pastagens onde há vida em abundância. Entra
no redil das ovelhas, para cuidar delas, não para as explorar. A sua missão é
libertá-las das trevas em que os dirigentes as trazem e conduzi-las ao encontro
da luz libertadora.
Jesus
exerce a sua missão, começando por chamar as ovelhas, pronunciando os seus
nomes. Com efeito, conhece cada uma e com cada uma quer ter relação pessoal de
amor, de proximidade, de comunhão. Para Jesus, não há a massa, mas pessoas
concretas, com a sua identidade, riqueza e dignidade. Ninguém é obrigado a
responder-Lhe, mas os que Lhe responderem farão parte do seu rebanho. Jesus
conduzi-los-á “para fora”, para as pastagens verdejantes e para as águas
cristalinas.
Jesus
não veio instalar-Se na instituição judaica, geradora de opressão, mas veio
criar uma comunidade humana nova – a comunidade do novo Povo de Deus.
Depois,
o pastor caminhará diante das ovelhas e estas segui-Lo-ão. Indica-lhes o “caminho”,
que é Ele próprio (cf Jo 14,6), e que
leva à vida. As ovelhas seguem-No. Seguir traduz a atitude do discípulo,
instado a seguir Jesus no trilho do amor e do dom da vida, a fazer d’Ele a sua
referência fundamental e a aderir a Ele de todo o coração. As ovelhas “escutam
a sua voz”, porque sabem que só a voz de Jesus as conduz, com segurança, ao
encontro da vida definitiva.
Na
segunda parte (Jo 10,7-9), Jesus
apresenta-Se como “a porta”. Aqui, Ele já não é o pastor legítimo que passa
pela porta, mas é própria “porta”.
A
imagem da porta pode aplicar-se aos líderes que pretendem o acesso ao redil ou às
próprias ovelhas. No atinente aos líderes, sugere que ninguém pode ir ao
encontro das ovelhas, se não tiver mandato de Jesus, e que ninguém pode ir ao
encontro das ovelhas, se não tiver os sentimentos e a atitude de Jesus, que não
é a da exploração das ovelhas, mas a de lhes dar vida. No respeitante às ovelhas,
significa que Jesus é o único lugar de acesso para que as ovelhas encontrem as
pastagens de vida. Passar pela porta significa aderir a Jesus, segui-Lo,
acolher a sua proposta. As ovelhas que passam pela porta passam para a terra da
liberdade, onde não mandam os chefes que exploram e roubam, e onde acharão
pasto de vida em plenitude.
E
o trecho em causa termina com a reafirmação do contraste entre Jesus e os
dirigentes religiosos judaicos. Esses usam a grei para satisfazer os próprios
interesses egoístas, despojam e exploram o povo; mas Jesus só procura que o rebanho
viva em pleno.
***
O
trecho da primeira Carta de Pedro (1Pe
2,20b-25), utilizado como segunda leitura, apresenta-nos também Cristo como o
Pastor que guarda e conduz as suas ovelhas. O catequista insiste em que os
crentes devem seguir este Pastor. E segui-Lo é responder à injustiça com o amor.
Estamos
perante um excerto de uma perícopa em que o autor apresenta aos seus destinatários
um conjunto de conselhos sobre a conduta que os cristãos devem assumir em
várias situações, mais especificamente, sobre os deveres dos servos para com os
seus senhores.
No
centro desta catequese, está o exemplo de Cristo: sofreu, sem ter feito mal
nenhum; maltratado pelos inimigos, não respondeu com agressão e com vingança;
pelo dom da vida, eliminou o pecado que afasta os homens de Deus e uns dos
outros. É o Pastor que guia e guarda os crentes.
Para
descrever a atitude de Cristo, o catequista recorre ao quarto cântico do Servo
de Javé, o servo sofredor que não cometeu pecado algum e em cuja boca não se
encontrou mentira, que suportou pacientemente as injustiças e de cuja entrega
resultou vida para o seu Povo.
Estamos
perante um hino cristão da liturgia primitiva, que compara o sofrimento de
Cristo ao sofrimento do servo de Javé e o valor salvífico da morte de Cristo ao
da morte do servo.
O
catequista utiliza também imagem do pastor, de Ez 34. O profeta falava de Deus como “o bom pastor”, que viria
cuidar das ovelhas fracas, doentes e tresmalhadas. Ao ligar o tema do pastor ao
do sofrimento de Cristo, a Carta sugere que foi do sofrimento de Cristo que
resultou vida e salvação para a grei.
Do
exemplo de Cristo, tiram-se as consequências para a vida dos cristãos: como
Cristo, os crentes são instados a responder às ofensas e injustiças com bondade
e com mansidão. Isto é “uma graça” para Deus, ou seja, é uma atitude agradável
a Deus e que resulta da graça de Deus. Por isso os servos são aconselhados a
suportar, com paciência, as provações a que são sujeitos pelos seus senhores (a
luta contra a servidão não se faz de súbito: requer tempo). E mais ainda: o
cristão, seguidor de Jesus que sofreu sem culpa e que suportou os sofrimentos
com amor, deve rejeitar, em absoluto, o recurso à violência. É na mansidão que a
graça de Deus se manifesta.
***
No
entanto, não podemos desvalorizar o facto de a Liturgia da Palavra se ter iniciado
com a exortação de Pedro no dia de Pentecostes (At 2,14a.36-41).
Pedro
é o porta-voz de uma comunidade que, iluminada pelo Espírito, toma consciência
da necessidade de testemunhar Jesus, a sua vida, morte e ressurreição. O segmento
textual hoje meditado constitui uma catequese sobre a atitude correta para
acolher a salvação que Deus faz aos homens, por meio dos discípulos de Jesus. Os
homens e mulheres, sobretudo provenientes da diáspora, que escutaram, no dia do
Pentecostes, o discurso petrino representam a comunidade do antigo Povo de
Deus, destinatária primeira desse kérigma que a comunidade cristã primitiva é
chamada a propor.
Em
nome da comunidade, Pedro, convida a comunidade do antigo Povo de Deus a
reconhecer que rejeitou o Senhor (kýrios
– nome grego que traduz o nome “Adonai” hebraico – dado pelos judeus a Javé), o
Messias (Khristós, o “ungido” de
Deus, que veio concretizar as promessas de Javé ao seu Povo) e a tirar daí as consequências.
Face a essa interpelação, os ouvintes sentiram o coração “trespassado” (do
verbo “katanyssô” – “afligir-se profundamente”). Sentiram o “pesar”, sentiram “pontadas
no coração”, por terem contrariado a justiça. Estão arrependidos, abertos à mudança
de vida, à “metanoia”.
Por
conseguinte, com total disponibilidade, face à interpelação perguntam: “Que
havemos de fazer, irmãos?” É a atitude de quem reconhece, nas acusações, os
seus erros e limitações, de quem está disposto a reequacionar a vida. E Pedro
tem a resposta para cada crente: converter-se, ser batizado em nome de Cristo,
receber o Espírito Santo, entrar na comunidade e salvar-se desta geração
perversa.
A
conversão implica a mudança radical da mente, dos valores, das atitudes e dos
comportamentos, de modo que o coração se volte para Deus. No contexto
neotestamentário, a conversão é a renúncia à autossuficiência e a atitude de
quem acolhe Jesus como o salvador e O segue.
Pedir
o batismo é reconhecer que Jesus tem a salvação e a vida nova, optar por essa
vida que Jesus propõe e incorporar-se na comunidade dos que O seguem. Receber o
batismo significa receber o Espírito Santo, pois, ao optar por Cristo, o crente
acolhe, no coração, a vida de Deus, e a sua existência passa a ser animada pelo
dinamismo divino, que o recria, o vivifica.
***
Por
fim, acolher Jesus implica implorar que haja muitos que aceitem a liderança da
grei à maneira de Cristo, o único Pastor; reconhecer os que são bons líderes (bons
pastores) e cooperar com eles; rezar para que os maus líderes (que agem com a
mira no prestígio, no dinheiro ou no poder) se convertam; facilitar o trabalho
daqueles que têm de ir à frente da grei, para rasgar caminho, aparar os
primeiros embates e chamar as ovelhas para as boas pastagens e para as águas puras;
pedir aos condutores da grei que se coloquem no meio, como aglutinadores do
rebanho; solicitar aos líderes que se coloquem na cauda do rebanho, a incitar
as ovelhas que andam mais devagar e a amparar as mais doentes e pô-las a salvo;
ver os pastores e o rebanho com os olhos de Deus, não ignorando o mal, mas
relevando o bem. Acolher Jesus implica tornar-se, segundo a condição de cada
um, integrado na comunidade e assumir a sua tarefa de participação ativa no bom
pastoreio.
O
bom pastoreio – o apostolado do Reino – é um belo fruto da Páscoa!
2023.04.30 – Louro de Carvalho
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